A FORÇA DO ATO CRIADOR
A cidade como teatro e o ser como atividade estética.
Richard Sennett em The Fall of Public Man acredita que o mundo é ainda uma peça de teatro (theatrum mundi). A cidade é um palco. A existência é uma atuação contínua. A tradição cristã, por exemplo, acredita que Deus é o único espectador que nos observa sempre.
A ideia de que o ser humano adota ininterruptamente diferentes papéis para conseguir viver, concebe pois a vida social como uma experiência estética contínua.
Para Sennett muito mais importante do que cultivar a auto-expressão deve-se sim desenvolver a capacidade de atuar, de modo a garantir a existência de uma cultura com vida pública.
Esta ideia de que o mundo é uma peça de teatro considera que todo o ser humano é um ser criador por excelência, é um ser capaz de representar, de se adaptar, e de se recriar constantemente.
Esta visão do theatrum mundi, para Sennett, contém uma verdade fundamental: a capacidade de atuar só é possível se houver na infância condições, espaço e tempo para brincar.
Sennett explica que ao longo do séc. XIX assistiu-se a uma descrença gradual na capacidade expressiva de cada indivíduo. Por isso, elevou-se a figura do artista, como sendo o único capaz de fazer manifestamente e livremente, aquilo que as pessoas comuns não conseguiam fazer no dia a dia.
Porém, é através do ato de brincar, durante infância, que se prepara uma pessoa para a futura experiência estética social. Segundo Sennett, o ato de brincar prepara-nos para vivermos uns com os outros em civilidade. Prepara-nos para os diferentes papéis que futuramente teremos de adotar, leva-nos a considerar e a testar certas condutas e ensina-nos a olhar para as convenções como um conjunto de regras de comportamento que nos permitem a aproximação ao outro. Através do ato de brincar e ao tornar um conjunto de certas convenções como credível, a criança está a desenvolver a capacidade de explorar, mudar, questionar e redefinir a qualidade dessas mesmas convenções.
“…people can playact with each other for purposes of immediate sociability but the terms on which they do so are still of contriving expression at the distance from the self; not expressing themselves, but rather, being expressive. It was the intrusion of questions of personality into social relations which set in motion a force making it more and more difficult for people to utilize the strengths of play.” (Sennett 2017, 331)
Ora, para Sennett a intromissão da personalidade nas relações sociais põe em causa a necessidade do ato de brincar. Desde o séc. XIX, que esta intrusão sobrecarrega o gesto expressivo com uma dúvida autoconsciente e repetida: será que o que estou a mostrar aos outros é realmente aquilo que sou?
Através do ato teatral o contacto social pode dar-se de imediato. O indivíduo ao ser puramente expressão/representação, distancia-se do eu. Sennet explica que sempre que o eu se apresenta em situações impessoais transforma-se num peso e dificulta a atuação na vida pública.
A sociedade moderna fragmentada, pessoal e íntima faz acreditar que o domínio público deixou de existir, que é impossível criar uma distância entre o ser social e o eu e que é inimaginável actuar em qualquer situação da vida: “An intimate society encourages uncivilized behaviour between people and discourages a sense of play…” (Sennett 2017, 332)
Ana Ruepp