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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Por uma nova ciência do espaço urbano.


Em 1972, Henri Lefebvre em entrevista (Régnier, Michel. 1972. “Entretiens avec Henri Lefebvre.” L’Office National du Film du Canada. Youtube.) explica que o período urbano atual ainda é pensado de acordo com os princípios estabelecidos durante o período industrial. Para Lefebvre todas as noções símbolos, ideias, conceitos, práticas e representações deveriam ser repensados para de facto passarmos a um período verdadeiramente urbano.


Os problemas urbanos são problemas mundiais e devem portanto ser atualizados. O espaço urbano ainda não foi na realidade reformado, porque as noções de tempo e de espaço numa cidade ainda estão por desvendar. Sendo assim o espaço segrega-se, a população dispersa-se e todos os elementos da sociedade dissociam-se da vida social. Na opinião de Lefebvre, ainda está por descobrir a solução para a reunião e o encontro entre as pessoas que habitam uma cidade.


Nunca na verdade foi feita uma reforma urbana, tal como aconteceu na primeira metade do séc. XX com a reforma agrária. Marx, Engels e Lenine pensaram que a força mais eficaz que seria capaz de questionar a estrutura da antiga sociedade e assim conceber uma sociedade completamente nova, seria a classe operária e o proletariado e assim se deu a reforma proletária sobre o solo cultivado. Porém semelhante reforma não se deu na cidade.


Para Lefebvre a questão da propriedade do solo construído, do solo da cidade é tão importante quanto a questão do solo cultivado. A cidade precisa de uma reforma urbana, que seja profunda o suficiente para ser capaz de influenciar toda a sociedade e toda a sua estrutura. Para Lefebvre, vivemos numa sociedade de classes e isso está bem visível na forma com a cidade está construída.


A questão da especulação imobiliária tornou-se uma questão preocupante, porque sem mecanismos eficazes de controlo da força do mercado imobiliário e dos interesses instalados, por parte do estado, nunca se irá permitir que nenhum planeamento, por melhor que seja, se cumpra.


Para Lefebvre, grave é sobretudo a questão do solo construído que é ainda e sobretudo controlado pelo capital privado. O solo da cidade é tão importante como o solo cultivado. Sem uma reforma urbana nem arquitetos, nem planeadores sozinhos serão capazes de transformar uma cidade e por conseguinte fazer emergir uma nova sociedade.


Ao mesmo tempo que a sociedade atual se urbaniza cada vez mais, assiste-se a uma espécie de ruralização do fenómeno urbano. Assiste-se a uma assimilação num determinado meio de comportamentos, valores, atividades e atitudes consideradas rurais. Aqui ruralização significa que as pessoas vindas de um meio rural para a cidade não se conseguem adaptar e integrar a nível cultural, social e económico. Simultaneamente assiste-se também a uma reruralização do campo - que contribui para uma maior separação entre a cidade e o campo. Os subúrbios e as periferias não são uma síntese harmoniosa e não ajudam na transição entre estas duas realidades. Segundo Lefebvre, a urbanização da sociedade e a sua simultânea ruralização gerou um processo dialético contraditório.


Ao falar em segregação, Lefebvre refere-se aos espaços particulares que as diferentes camadas e classes de uma determinada sociedade ocupam. Ao estar tudo separado, através do fenómeno moderno da funcionalização, a vida social e pública deixa de existir. Lefebvre explica que no passado as cidades não apresentavam espaços especializados e tinham uma vida urbana intensa - por exemplo a praça do mercado ao apresentar um conjunto de atividades e ao ser polifuncional permitia o encontro entre pessoas mas também permitia a expressão de opiniões e decisões políticas por parte de um ou vários grupos.


Para Lefebvre, um espaço especializado é um espaço morto. A comercialização dos espaços supõe que cada espaço esteja separado para que possa ser vendido e comprado. A especialização do espaço, na opinião de Lefebvre é um fenómeno que advém da divisão do trabalho em parcelas, é consequência de uma sociedade profundamente especializada. Cada espaço de uma cidade atual é preenchido por uma determinada atividade que ocorre num momento preciso do tempo. Se esse momento termina, por qualquer motivo, a atividade perde-se e o espaço esvazia-se. Vivemos, por isso numa sociedade que se constrói através de infinitos espaços fragmentados, isolados e perdidos.


Lefebvre explica que entre 1960 e 1970 foram colocadas ilimitadas esperanças no urbanismo. Durante essa década acreditou-se ser possível fazer do urbanismo uma ciência nova, eficaz e reformadora da vida social. Mas na verdade, o urbanismo por si só, por enquanto, reduz-se a um conjunto de considerações ideológicas e de ações concretas que equilibram uma determinada vontade pública e um interesse privado específico. O urbanismo atual deseja somente a rentabilidade imediata e corresponde a medidas de curto prazo.


Lefebvre adianta porém que não se deve abandonar a ideia de criar uma nova sabedoria ou ciência do espaço, que não se funda através de leis administrativas mas que se gera sim por uma nova longa elaboração da noção de espaço e da noção de tempo-espaço. Esta nova noção de espaço deverá prender-se naturalmente à noção de espaço habitável - e está nas mãos dos filósofos e dos poetas encontrar o verdadeiro significado de habitar. A ideia de espaço como: vivência, presença, memória, multiplicidade, complexidade, permanência, obra de várias atividades humanas, constante relação com um lugar e com o cosmos, materialização de pequenas realidades (onde se pode conhecer e sentir mais, permitindo a construção de diferentes interpretações e pontos de vista diversos acerca da ideia de que se tem do mundo) - é uma ideia poética muito poderosa e poderá reformar a cidade em que vivemos.


“Le Corbusier a cru faire un travail révolutionnaire mais en réalité il a fait le project architectural du capitalisme monopolistique d'état et aussi du socialisme d'état!”, Henri Lefebvre (Régnier 1972)

 

Ana Ruepp