EM TORNO DE UMA MEMÓRIA...
No seu autobiográfico "Joseph Anton - A Memoir", Salman Rushdie conta-nos que Anis, seu pai, era um "godless man", mas um homem sem deus que sabia e pensava muito acerca de Deus ("a godless man who knew and thought a great deal about God"). E continua (a tradução é minha): "O nascimento do Islão fascinava-o, porque era a única das grandes religiões do mundo a ter nascido no contexto da história registada, e cujo profeta não era uma lenda descrita e glorificada por ‘evangelistas’ escrevendo cem anos ou mais depois da vida e morte do homem real, nem um prato recozinhado para fácil consumo global pelo brilhante prosélito São Paulo, mas antes um homem cuja vida estava largamente registada, cujas circunstâncias sociais e económicas eram bem conhecidas, um homem vivendo num tempo de profunda mudança social, um órfão que cresceu até se tornar num bem sucedido mercador com tendências místicas, e que viu um dia, no Monte Hira, próximo de Meca, o Arcanjo Gabriel levantado sobre o horizonte e enchendo o céu e instruindo-o paras que ´recitasse´ e assim, lentamente, criasse o livro conhecido como a Recitação: Al Corão". Não nos demoremos no simplismo (e quiçá algum azedume feito ironia) com que Rushdie contrapõe ao registo histórico de Maomé a recordação histórica de Jesus. Sobre o Jesus histórico tem-se falado e escrito muito (com seriedade de investigação e honestidade intelectual, ou sem uma nem outra). Do que conheço, posso recomendar, a quem tiver tempo e particular interesse na investigação histórica, os quatro volumes do "Jesus, A Marginal Jew - Rethinking the Historical Jesus", do Prof. John P. Meier, padre e universitário americano, e, ao comum da gente como eu, o "Jesus de Nazaré" do Papa Bento XVI (que tem o carisma de ser uma interrogação histórica e teológica da figura temporal e intemporal de Jesus Cristo, feita por um crente que é Papa) e o belíssimo "Jésus" do historiador francês (conhecido biógrafo de Luís XIII, Luís XIV e Luís XVI) Jean-Christian Petitfils. Esta última obra, trabalhada sobre um conhecimento muito atualizado das investigações históricas e bíblicas (arqueológicas e exegéticas) "filma-nos" um Jesus que se move na cultura social, religiosa e política do seu tempo. E assim nos vai abrindo uma porta sobre o mistério da fé cristã. Voltando a Salmon Rushdie, lembramo-nos do tal Arcanjo Gabriel, encontrado já noutras paragens, muitos séculos antes do bom Maomé... O que nos ajuda a perceber melhor como Rushdie conclui ser "a estória do nascimento do Islão fascinante, por ser um evento dentro da história que, portanto, enquanto tal, fora obviamente influenciado pelos eventos e pressões e ideias do tempo da sua criação; e que historicizar a estória, tentar perceber como uma grande ideia fora formatada por essas forças, era a única achega possível ao assunto"... "A Revelação teve de ser assim entendida como um evento interior, subjetivo, não como realidade objetiva, e um texto revelado tinha de ser escrutinado como qualquer outro texto, utilizando-se todas as ferramentas da crítica literária, histórica, psicológica, linguística e sociológica". Em virtude desta convicção foi Salmon Rushdie anatemizado por uma "fatwa"... Entre cristãos, dentro e fora do "christian belt" também encontramos apego a leituras literais da Bíblia. Mesmo entre católicos se instala o receio de questionar, investigar, encontrar o desconhecido, o simplesmente novo. E todavia, a Igreja que, por tantos séculos manteve a Bíblia aberta apenas na sua versão latina da Vulgata, e se foi reservando a capacidade de propor à leitura dos fiéis diferentes trechos dela, conta hoje com um número elevado de escolas de arqueologia e exegese bíblica de alta qualidade científica, na esteira da École Biblique de Jerusalém que, guiados pelo Padre Lagrange, os dominicanos franceses fundaram, já no séc. XIX, na Cidade Santa. Do conhecimento crescente que assim vamos tendo da história e da sociedade do tempo de Jesus, por exemplo, tal como do cotejo de textos em grego, hebraico e aramaico, de forma a datar mais precisamente os originais e a melhor entender o significado de palavras e expressões, resulta uma interpretação cientificamente mais fundamentada que obriga a um exercício teológico renovado, e novo também na sua atenção e resposta às preocupações e sinais dos tempos hodiernos. Para a Igreja Católica, a Revelação não se esgotou na Bíblia, antes é um processo objetivo pela ação do Espírito Santo que Jesus (o Emmanuel, a pessoa de Deus incarnado na história dos homens) deixou para que se prosseguisse a Redenção pela conversão até à visão final de Deus. Neste sentido, está sempre dentro e no coração da história, acompanha-a, não se repete como uma recitação, como na tradição islâmica preponderante. Por isso, em todos os planos da vida humana, na cultura, na economia, na sociedade, na política, o papel do cristão não é estático, como o de quem só assiste, observa e conserva. O Cristianismo não tem teocracia possível, nele, a presença do Deus transcendente no mundo e na história faz-se pela conversão de cada um ao apelo da Revelação subjetiva, na comunhão da Igreja. Por isso, foi sempre importante que os seus pastores não caíssem na tentação de um autoritarismo tentacular e totalitário. A liberdade da reflexão teológica, num clima eclesial de promoção do diálogo, é essencial ao cumprimento do mandato vital da fé cristã. Aqui fica o testemunho de um leigo.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 09.11.12 neste blogue.