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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICA DA CULTURA

That's how

  

 

De quando em vez olhava para a televisão.

Via imagens e ouvia algumas palavras. Baixava a cabeça por desinteresse ou porque um pesado sono não lhe permitia outro movimento.

A idade já era muita.

Agora, agora estava de novo como se estivesse junto à janela do quarto da sua aldeia, a mão levantava a velha cortina. Da cozinha vinha o cheiro do almoço. Não havia fome. Contudo, sempre se imaginara a viver com muitos bens – ainda não sabia quais -, escolhida que fora entre as mulheres da aldeia que não tinha mulheres de ideias longas como ela, nem um pouco da sua estranha atração física. 

Entretanto os guinchos dos porcos a serem castrados ou mortos, incomodavam-na ao ponto de perguntar de novo à prima:

Ó prima, estão a matar um homem? Outra vez?

Na televisão, olhares de sofreres e guerras inexplicáveis e o creme antirrugas que já usava e que era caríssimo.

Enfim, estava agora ali naquele outro quarto em frente à televisão; sozinha, mas cheia de memórias, sobretudo daquelas que não queria ter. Mas era assim e pronto. Os comprimidos e as rezas acertavam-se na dose.

De qualquer modo usaria aquele creme e perfumes ostentosos entre outros luxos que mostraria a amigas da cidade, fazendo-as ficar boquiabertas, pois num mês de trabalho não ganhavam elas para aquele vestido que lhes era mostrado sem vergonha alguma, e ela a exibir olhando-as nos olhos, orgulhosa. Era assim.

Da aldeia desaparecera um dia numa camioneta que a levara definitivamente para a cidade onde os encontros certeiros se davam nos cafés por entre olhares que se entendiam de súbito, tão de súbito quanto se desolhavam até um dia ou nem isso.

Vá tome o seu chá. Não quer ver a telenovela, não? E ir à missa? Devia tentar sair do quarto. Bem, eu fico aqui um pouco enquanto lhe mudo a fralda, mas depois come a bolachinha.

De novo, olhava para a televisão. E sim, ele era um homem bonito. O da televisão ou o outro?, do café?, mas se calhar ele não tinha como lhe pagar o creme. E assim fora: cremes e todos os demais sustentaria ela: os dela e os dele.

Começou tudo de novo quando a cabeça lhe pendeu, a formiga gigante entrou-lhe pelo olho para um novo acesso ao fundo da memória.

E lá estava o nada. E o nada era tudo. E ela estava cheia do nada o que não era mau. Tinha dinheiro. E nunca do mal do mundo se apiedara ou agastara. Tinha sorte: nos carros, o lugar do morto nunca fora o dela.

Agora, bastava estar ali, assim, naquela casa de monos. Tal qual.

A morte não se esquecia de ninguém, e se atraso estava a acontecer, era por ter bens.

E amor?

Nem pensar que lhe subia aquela odiosa e muda raiva.

Ninguém a amara por ela, mas pelo dinheiro que conseguira, vindo de um trabalho que não dera canseira, é certo. De que se queixar, então?

O triunfo estava por ali, de algum modo. Tinha de estar. E os comprimidos também.

E abrira os olhos novamente. Na televisão uma mulher meia despida vendia lingerie.

E porquê, por que razão ele nunca mais lhe tocara? Ah, que ótimo!, poder enganar todos e nunca dizer que se ele morresse não lhe sentiria qualquer falta.

Virava agora os olhos para a parede nua.

Da televisão, escutava os gritos estonteados do concurso que sempre vira:

O preço certo.

 

Teresa Bracinha Vieira