Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Era no quarto o tempo do território imenso do instante
Era também por entre as arvores e todas as cores à beira-mar e à beira-céu
A porta da casa abrira-se momentos antes e com ela a memória iniciava-se
Não consigo olhar para si sem tremer. Fomos. Somos, não tenho palavras
Quero que saiba para onde vou uns dias. Ou antes não vou. Indo, fico mais aqui. Estarei lá só a pensar em si
Se me disser que sou o seu máximo denominador liberta-me com uma mentira, eu sei. Mas queria tanto ser o seu flagrante se a minha proposta por si aceite
Fechei o olhar. Tudo é secreto sem ser. O que possa parecer mais insignificante de si em mim é volúpia da significação
A consciência do seu corpo é meu nítido grito. Aviso de que a minha vida
É sua dependência
Em nome de si, amo
Ajude-me, parece-me que estou perto da morte e uso todos os símbolos como sinais de abraços que seguram
O meu propósito
E eis que mais nada lhe consigo escrever.
Hoje, já lhe enviei sete cartas
Todo o excesso se acumula. Beijo Penso na sua existência
Celebrávamos anualmente a Paixão de Cristo, mas com o perigo de não ir além de ritos muito certinhos, tantas vezes secos e insignificantes. Esquecêramos Pascal nos Pensamentos: "Jesus estará em agonia até ao fim do mundo. Importa não dormir durante esse tempo.” Agora, com uma guerra tenebrosa em curso, sabemos que a Paixão continua, e as personagens da tragédia são exactamente as mesmas.
Como acontece quase sempre, o poder religioso e o poder político ao mesmo tempo que se guerreiam juntam-se na defesa dos seus próprios interesses, que são os da manutenção e aumento incessante do poder. Assim, lá estão o sumo sacerdote Caifás -- não se tinha Jesus erguido, na continuação dos profetas, contra o poder sacerdotal, que se servia de Deus contra o povo? -- e a razão de Estado: era preferível matar Jesus a pôr em perigo as relações com Roma. Pilatos, o representante do Império, convenceu-se da inocência de Jesus, mas a Realpolik não podia permitir o incêndio da sublevação do povo contra o Império. Por isso, lavou as mãos -- a proclamação da inocência hipócrita! -- e condenou-o à morte dos escravos: a cruz, com a morte mais horrenda. Nesse dia, Pilatos e Herodes, que eram inimigos, reconciliaram-se. O nome de Pilatos é dos nomes mais vezes pronunciados ao longo da História, pois está inscrito na confissão da fé dos cristãos. Mas é tal o desconforto que há aquele dito aplicado a quem se encontra fora do lugar, melhor, num lugar indevido: estás aí como Pilatos no Credo.
Os soldados cuspiram-lhe, puseram-lhe uma coroa de espinhos, açoitaram-no… Significativamente, quando um lhe deu uma bofetada, Jesus, que tinha dito para dar a outra face, ele próprio não o fez, pois é preciso manter a dignidade: “se disse mal, diz-me em quê; se disse bem, porque é que me bates?” A multidão -- essa, exactamente a mesma --, no Domingo de Ramos, clamou: "Hosana, hosana" e, na Sexta-Feira Santa, gritou: "Crucifica-o, crucifica-o". Não se pode confiar nas multidões, volúveis e manipuláveis.
Judas atraiçoou o Mestre. Vendeu-o por trinta moedas de prata. Ele faz parte da longa história dos traidores. Mas, pensando bem, não tinha sido ele próprio “atraiçoado”? De facto, ele esperava e empenhara-se com um Messias político, que tomasse o poder. Não podia entender que a revolução de Jesus era outra: a transformação radical do coração e a partilha e o serviço. Há sempre equívocos que levam ao desastre. Quando viu o seu erro, foi confessar o seu engano, mas não encontrou compreensão; arrependido, não quis ficar com o dinheiro que, esprimido, derramava sangue, atirou-o para o Templo, e enforcou-se.
Pedro, no momento da prisão, puxou pela espada. Jesus, porém, mandou que a metesse na bainha, ficando a ecoar através dos tempos a palavra da não violência activa: quem mata com ferros com ferros morre. Pouco depois, o mesmo Pedro também se acobardou: quando uma jovem insinuou que ele era discípulo de Jesus, começou a jurar que nem sequer o conhecia. Depois, tomou consciência, arrependeu-se e chorou amargamente, confiando no perdão do amigo que pregara o amor aos inimigos.
Entre Jesus, que representa o amor e a paz, e Barrabás, que representa a violência, a multidão foi incitada a escolher Barrabás.
Os discípulos de Jesus, quando viram tudo perdido, fugiram todos apavorados. Embora forçado, um homem de Cirene ajudou Jesus a levar a Cruz; na vida, pode haver sempre um Cireneu. Inesperadamente, um simpatizante tímido -- Nicodemos -- emprestou o túmulo. Os dois ladrões, que seriam dois terroristas, mesmo na iminência da morte, tiveram comportamentos diferentes: um arrependeu-se, o outro, desesperado, continuou a blasfemar. As mulheres foram quem manteve a dignidade: acompanharam-no até ao fim.
Antes de morrer, Jesus implorou o perdão para a Humanidade, também para aqueles que o torturavam e matavam: "Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem". E rezou aquela oração misteriosa que atravessa os séculos, transportando a dor e o clamor todo do mundo: "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?"
Neste drama todo, o que mais impressiona é que Deus a quem Jesus tratava com ternura como Abbá -- Pai querido, Mãe --, não respondeu. As suas últimas palavras: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.”
Aparentemente, foi a derrota e o fim. Mais um crucificado.
Por isso, o enigma do cristianismo é este: Porque é que os discípulos, que, apavorados, tinham fugido, lentamente voltaram a reunir-se e foram anunciar, dando a vida por isso, que aquele Crucificado é o Messias, o Enviado de Deus e é nEle que está a salvação?
O que é que se passou? A revolução de Jesus é a revolução da imagem de Deus. Nunca ninguém tinha dito, por palavras e obras: Deus é bom, Pai e Mãe de todos. E não tolera a opressão da religião e do poder. Foi uma coligação de interesses religiosos e imperiais que assassinou Jesus. Ele não fugiu, não se desdisse, foi até ao fim, para dar testemunho da Verdade e do Amor. Foi neste quadro que os discípulos, reflectindo sobre o modo como Ele se relacionava com Deus, sobre o modo como viveu, como morreu, foram fazendo uma experiência avassaladora de fé de que Ele, o Crucificado, está vivo em Deus para sempre. O Deus infinitamente poderoso e bom não podia abandoná-lo à morte.
Desde então, na expressão de George Steiner, é em Sábado que vivemos: entre a Sexta-Feira Santa, as suas dores, os seus horrores…, e o Domingo de Páscoa, com a esperança da vida plena para todos os crucificados.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 16 de abril de 2022
“My purpose, however, was to make a garden of joy.”, Niki de Saint Phalle
Tal como o nome indica, o Jardim do Tarot (1979-2002) de Niki de Saint Phalle (1930-2002) tomou como inspiração o ofício hermético do Tarot. As cartas do Tarot são usadas desde a Idade Média para prever o futuro. Esta actividade, pouco compreensível para o indivíduo comum, é descrita como sendo o espelho da alma. Niki de Saint Phalle utiliza, no seu Jardim do Tarot todo o potencial inexplicável, sobrenatural e imagético intrínseco de cada carta do Tarot para conceber todos os objectos que nesse jardim se erguem. Em 1979, os príncipes de Caracciolo deram a Niki de Saint Phalle uma montanha em Capalbio, na província de Grosseto, em Itália, e a artista passou os últimos vinte anos da sua vida a criar o primeiro parque de escultura monumental concebido por uma mulher. Já no início dos anos sessenta, Niki tinha mencionado a enorme vontade em construir um jardim com esculturas baseadas nas cartas de Tarot. Os objectos representam cartas como: The Sphinx, The Empress, The Falling Tower, The Sun, The High Priestess, The Magician, The Dragon, The Emperor’s Castle, The Justice, The Tree of Life, The Wheel of Fortune, The Temperance, The World, The Hermit, The Oracle, Death e The Devil. Cada espaço, objecto e escultura pensadas por Niki tem uma forma, cor e tatilidade distintas. Cada um, à sua maneira, funciona como um reflexo de nós próprios e do cosmos incontrolável que nos rodeia.
“I realized the entire project was meant as a permanent expression of her undying love for (Jean) Tinguely as much as her obsession with her work and making her dreams reality.” (Groom 2008, 89-90)
Pensa-se que Niki terá tomado como referências a escultura Cyclop, de Jean Tinguely em Milly-la-Forêt em França e o Parque Güell de Antoni Gaudí, com os seus mosaicos e formas orgânicas, antropomórficas e grotescas. À medida que o projecto avançou e se desenvolveu a Niki de Saint Phalle passou a viver na cabeça da The Sphinx. Para conseguir financiar este enorme projecto, construído com a colaboração de inúmeros ajudantes, Niki desenhou perfumes, lenços, gravatas e diversas peças de joalharia. Niki de Saint Phalle sempre se interessou imenso pelo mundo dos sonhos, e pelo espaço ocupado pelo inconsciente desconhecido. Ao imaginar uma sociedade mais igualitária e humana através das suas Nanas (numa eterna homenagem à origem do mundo), Niki também se arrisca a fazer referência a tudo aquilo que se perde quando crescemos e nos tornamos adultos. No Jardim do Tarot, outros deuses são evocados e opõem-se aos deuses do conformismo, da apatia e do materialismo.
“Art, to most people is something terribly serious and people refuse to realize that joy is something terribly serious too.”, Niki de Saint Phalle
Com o seu Jardim do Tarot, Niki ensina-nos a olhar para o outro lado do espelho. O outro lado é tão profundo quanto o lado em que estamos e ao qual chamamos realidade. Os espelhos têm a qualidade de rejeitar todo o tipo de obscuridade e trazer movimento, vida, cor, brilho e luz. Talvez o Jardim do Tarot evoque essa voz profunda e latente que em nós existe desde que nascemos. Stephen Nachmanovitch em Free Play. Improvisation in Life and Art. escreve que as experiências, as dificuldades e os sofrimentos inerentes ao nosso crescimento podem servir para desenvolver e fazer durar essa voz latente ou original, que transportamos e que nos liga ao que é eterno, mas infelizmente essa voz acaba por ser ignorada, calada e enterrada. A realidade que nos é dada a conhecer através do mundo instituído, está infinitamente condicionada por suposições subentendidas que construímos após múltiplas experiências quotidianas. É por isso que a experiência oferecida pela arte, tal como acontece no Jardim do Tarot, nos parecem extraordinárias. O Jardim do Tarot, e todas as experiências criativas, na verdade ensinam-nos a ver a eternidade, e a redescobrir a voz latente através do mais pequeno e subtil gesto.
“Vírus” de André Ruivo (2022) com prefácio de João Pinharanda, é uma leitura ou aventura gráfica dos tempos a que fomos condenados por esta nova peste designada como COVID-19, ou mais simplesmente como Corona-Vírus.
UMA TRADIÇÃO NACIONAL
Comecemos pelo princípio. O livro de hoje é uma crónica gráfica. «A tradição nacional desta linha de fino humor é forte – vem de Bordalo a Carlos Botelho, de Sam a Luís Afonso, por exemplo. No caso de André Ruivo (como no de Bordalo) o leve desvio / deslocação do ponto de vista que provoca a situação humorística não é apenas detetável no discurso escrito mas é também visualmente acentuado pelas perspetivas urbanas, as vistas de janela, as distorções anatómicas». Quem o diz é João Pinharanda, compreendendo que, mais de dois anos depois do início da pandemia, e quando a espada de Dâmocles continua sobre a nossa cabeça, é necessário iniciarmos a tarefa de tirar conclusões sobre um estranho tempo em que nos vimos envolvidos e que, por certo, voltará a repetir-se. Estamos longe de estar libertos de confinamentos, quarentenas, distâncias, máscaras etc. No fundo, fomos nós que desarranjámos a máquina do mundo. A capa do livro é bastante clara, ao pôr-nos perante um rosto velado que esconde o seu sorriso, ou será riso ou será agastamento e raiva? É estranho que não venhamos apresentar o essencial deste livro com episódios caricatos sem o desenho inicial de uma boca a sorrir-se. Afinal, quando lemos o velho “Album das Glórias”, lá encontrámos Rialto, Ribaixo, Ripouco… Aqui, nem muito nem pouco, nem assim-assim, apenas um boneco enigmático, sem sombra de riso, tapado por uma máscara. Tão só um olhar espantado, e tudo o mais nos vai intrigar, quando começamos a folhear o livro.
O QUE AINDA FALTA
«Falta talvez um desenho nesta série. E poderia ser mais um auto-retrato, onde se visse o autor injetando grandes doses de humor através das finas agulhas dos seus desenhos. Na realidade cada desenho deste livro é uma dessas doses. A toma não é intravenosa mas ocular. As doses administradas pelo artista parecem homeopáticas, tal é a leveza de cada cartoon, mas cada um deles é um poderoso projétil lançado pelo farmacêutico Ruivo, que é cientista sem diploma, e que não usa as pessoas como cobaias mas como amostras do tecido social, como casos de estudo». É ainda João Pinharanda, o crítico contaminado (pelo vírus ou pelo humor?), quem insiste na caracterização deste contributo vacinal, uma vez que ao vermo-nos tantas vezes ao espelho nesta reunião de comentários ilustrados percebemos que o nosso lado picaresco é dos mais importantes que devemos cultivar. Carlos Botelho dava os seus “Ecos da Semana” com leituras quotidianas desenhadas de estórias que todos os dias a cidade protagoniza. Leitão de Barros fazia, assim, os seus “Corvos”. E em cada apontamento, em cada desenho, encontramos oportunidade para muitas lembranças e para uma dose apreciável de paciência e de sentido de ridículo, que tantas vezes esquecemos, por nos levarmos demasiado a sério. Démos vários exemplos, clássicos e para levar muito a sério, mas o mais importante é compreendermos que o quotidiano dá-nos mil oportunidades para fazermos da realidade uma verdadeira oportunidade para nos desmancharmos a rir. Poderíamos ainda lembrar Stuart de Carvalhais, Almada Negreiros, Emmérico Nunes, Francisco Valença, António Antunes, João Fazenda… Mas atenhamo-nos a este livro e aos seus episódios. Nós, os leitores, somos contaminados gostosamente com este vírus, que André Ruivo nos transmite, por transmissão ou como vacina com várias doses de reforço. E, ao mesmo tempo, não só contraímos este vírus, certamente benigno, mas também ganhamos o saudável sentido de nos sentirmos desprotegidos e ridículos, cientes de que este humor funciona como verdadeiro anti-corpo, homenagem ao Dr. Jenner e à sua fantástica capacidade de compreender como uma pobre vaca (com as mulheres que a ordenhavam) se tornou salvadora de muitas vidas pela inoculação vacinal do vírus. Também André Ruivo desejou. A janela permitia fazer amigos. E dentro de casa, todos fomos percebendo, que não foi apenas a família que foi confinada, mas também uma grande Arca de Noé de pequenos bichos, como baratas e percevejos, pulgas e tudo o imaginável, que povoam os cantos das nossas casas e de que tardiamente nos apercemos. Eis um dos efeitos do confinamento. Liberdade para respirar o ar da cidade, para transportar os alimentos, para sair a passear o animal de companhia, percebendo que nós é que somos a sua companhia, e que a bicharada torna-se pretexto para podermos pôr um pé na rua. O nariz de fora merece especial atenção, pois de nada serve. É como trazer a máscara na barba. É um adereço inútil. E os milhares de especialistas merecem atenção, não pelo que nada dizem, mas por terem aparecido como gafanhotos com estantes psicadélicas nas suas costas. Alguém pergunta policialmente: “E o senhor que faz na rua?” – Eu? Deve ser confusão… - Hoje fui à Rua! Foi cá uma emoção! – “Não se fechem demasiado”. “Que dia é hoje?” – Estou completamente perdido. “E o que é abraçarmo-nos a nós próprios?” – Mas quem mete medo ao vírus? E o Doutor pergunta: Onde lhe dói? – “Nas orelhas Senhor Doutor”. E que máscara usa? A do Carnaval ou a do vírus? Mas o Carnaval já passou há muito. Os diálogos sucedem-se, cada um mais estranho do que outro… E as estatísticas falsas e as datas verdadeiras misturam-se como dados imaginários. Qual a diferença entre teletrabalho e televida? Ou será vice-versa? André Ruivo explica exaustivamente.
No seu autobiográfico "Joseph Anton - A Memoir", Salman Rushdie conta-nos que Anis, seu pai, era um "godless man", mas um homem sem deus que sabia e pensava muito acerca de Deus ("a godless man who knew and thought a great deal about God"). E continua (a tradução é minha): "O nascimento do Islão fascinava-o, porque era a única das grandes religiões do mundo a ter nascido no contexto da história registada, e cujo profeta não era uma lenda descrita e glorificada por ‘evangelistas’ escrevendo cem anos ou mais depois da vida e morte do homem real, nem um prato recozinhado para fácil consumo global pelo brilhante prosélito São Paulo, mas antes um homem cuja vida estava largamente registada, cujas circunstâncias sociais e económicas eram bem conhecidas, um homem vivendo num tempo de profunda mudança social, um órfão que cresceu até se tornar num bem sucedido mercador com tendências místicas, e que viu um dia, no Monte Hira, próximo de Meca, o Arcanjo Gabriel levantado sobre o horizonte e enchendo o céu e instruindo-o paras que ´recitasse´ e assim, lentamente, criasse o livro conhecido como a Recitação: Al Corão". Não nos demoremos no simplismo (e quiçá algum azedume feito ironia) com que Rushdie contrapõe ao registo histórico de Maomé a recordação histórica de Jesus. Sobre o Jesus histórico tem-se falado e escrito muito (com seriedade de investigação e honestidade intelectual, ou sem uma nem outra). Do que conheço, posso recomendar, a quem tiver tempo e particular interesse na investigação histórica, os quatro volumes do "Jesus, A Marginal Jew - Rethinking the Historical Jesus", do Prof. John P. Meier, padre e universitário americano, e, ao comum da gente como eu, o "Jesus de Nazaré" do Papa Bento XVI (que tem o carisma de ser uma interrogação histórica e teológica da figura temporal e intemporal de Jesus Cristo, feita por um crente que é Papa) e o belíssimo "Jésus" do historiador francês (conhecido biógrafo de Luís XIII, Luís XIV e Luís XVI) Jean-Christian Petitfils. Esta última obra, trabalhada sobre um conhecimento muito atualizado das investigações históricas e bíblicas (arqueológicas e exegéticas) "filma-nos" um Jesus que se move na cultura social, religiosa e política do seu tempo. E assim nos vai abrindo uma porta sobre o mistério da fé cristã. Voltando a Salmon Rushdie, lembramo-nos do tal Arcanjo Gabriel, encontrado já noutras paragens, muitos séculos antes do bom Maomé... O que nos ajuda a perceber melhor como Rushdie conclui ser "a estória do nascimento do Islão fascinante, por ser um evento dentro da história que, portanto, enquanto tal, fora obviamente influenciado pelos eventos e pressões e ideias do tempo da sua criação; e que historicizar a estória, tentar perceber como uma grande ideia fora formatada por essas forças, era a única achega possível ao assunto"... "A Revelação teve de ser assim entendida como um evento interior, subjetivo, não como realidade objetiva, e um texto revelado tinha de ser escrutinado como qualquer outro texto, utilizando-se todas as ferramentas da crítica literária, histórica, psicológica, linguística e sociológica". Em virtude desta convicção foi Salmon Rushdie anatemizado por uma "fatwa"... Entre cristãos, dentro e fora do "christian belt" também encontramos apego a leituras literais da Bíblia. Mesmo entre católicos se instala o receio de questionar, investigar, encontrar o desconhecido, o simplesmente novo. E todavia, a Igreja que, por tantos séculos manteve a Bíblia aberta apenas na sua versão latina da Vulgata, e se foi reservando a capacidade de propor à leitura dos fiéis diferentes trechos dela, conta hoje com um número elevado de escolas de arqueologia e exegese bíblica de alta qualidade científica, na esteira da École Biblique de Jerusalém que, guiados pelo Padre Lagrange, os dominicanos franceses fundaram, já no séc. XIX, na Cidade Santa. Do conhecimento crescente que assim vamos tendo da história e da sociedade do tempo de Jesus, por exemplo, tal como do cotejo de textos em grego, hebraico e aramaico, de forma a datar mais precisamente os originais e a melhor entender o significado de palavras e expressões, resulta uma interpretação cientificamente mais fundamentada que obriga a um exercício teológico renovado, e novo também na sua atenção e resposta às preocupações e sinais dos tempos hodiernos. Para a Igreja Católica, a Revelação não se esgotou na Bíblia, antes é um processo objetivo pela ação do Espírito Santo que Jesus (o Emmanuel, a pessoa de Deus incarnado na história dos homens) deixou para que se prosseguisse a Redenção pela conversão até à visão final de Deus. Neste sentido, está sempre dentro e no coração da história, acompanha-a, não se repete como uma recitação, como na tradição islâmica preponderante. Por isso, em todos os planos da vida humana, na cultura, na economia, na sociedade, na política, o papel do cristão não é estático, como o de quem só assiste, observa e conserva. O Cristianismo não tem teocracia possível, nele, a presença do Deus transcendente no mundo e na história faz-se pela conversão de cada um ao apelo da Revelação subjetiva, na comunhão da Igreja. Por isso, foi sempre importante que os seus pastores não caíssem na tentação de um autoritarismo tentacular e totalitário. A liberdade da reflexão teológica, num clima eclesial de promoção do diálogo, é essencial ao cumprimento do mandato vital da fé cristã. Aqui fica o testemunho de um leigo.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 09.11.12 neste blogue.
Esta abordagem conjunta da antiga sala de espetáculo de Chaves e do recente Centro Cultural tem como substrato histórico e social a marca de descentralidade que o próprio desenvolvimento económico e tecnológico determina em cada época, no que se refere à convergência cultural: isto porque, no século XIX, Chaves distava muito dos centros culturais do país.
Daí, a relevância da criação e funcionamento do Teatro Flaviense, fundado no século XIX e restaurado ou, se quisermos, reedificado a partir de 1873, por iniciativa de um grupo de destacadas individualidades locais.
Os trabalhos foram confiados a um nome de projeção nos grandes teatros da época, João de Amil, que exerceu durante anos funções nos Teatros da Rua dos Condes em Lisboa e Baquet do Porto. Ora, aqui também já temos visto que se trata de duas salas referenciais nesse tempo e de certo modo ainda hoje, na arquitetura e/ou cultura de espetáculo.
E nesse sentido, recorde-se que o Teatro Flaviense seguia a estrutura das mais relevantes salas de teatro. Tinha 3 ordens de camarotes e segundo fontes aliás pouco rigorosas, algo como mais 180 lugares de plateia, geral e superior, como era hábito.
A inauguração deste Teatro Flaviense ocorreu em 9 de maio de 1874 a cargo de um grupo de amadores locais, o que também é relevante dada a descentralização e distanciamento social e cultural de Chaves nesse tempo.
E sobretudo, há que recordar a peça inaugural, nada menos do que o “Ódio de Raça” de Gomes de Amorim, peça e autor de grande relevância em muitos aspetos ainda hoje. De referir designadamente que “Ódio de Raça” (1845) passa-se no Brasil e dramatiza o tema da escravatura. O autor e o tema mostram a então modernidade do evento, para não falar da qualidade do texto.
Acrescente-se então que Chaves pode assumir uma tradição secular de cultura, que justificaria a existência comprovada na região de um Teatro quando as vias romanas garantiam uma integração às zonas dominantes da Península: é o que nos diz designadamente Mário Gonçalves Carneiro, que refere uma tradição histórica e que permite recordar na zona “magníficos edifícios em que sobressairiam o Balneário, o Rossio, a Curia, o Tesouro, o Teatro”... isto, insiste-se, a nível histórico regional. (in “As Caldas de Chaves” – 1945).
Em 2003 a Câmara Municipal transformou em Centro Cultural o antigo edifício da estação de caminhos de ferro, inaugurado em 1921 e desativado em 1999.
E é ainda de referir em Chaves, além de serviços culturais da Câmara, diversas outras áreas de atividade cultural, como a Academia das Artes e a Associação Chaves Viva.
DUARTE IVO CRUZ
Obs: Reposição de texto publicado em 06.10.18 neste blogue.
De uma visão dos acontecimentos mundiais pode concluir-se que para os pequenos choques produzidos pelas mais variadas causas, têm sido suficientes negociações e processos de solução pacífica, o que, como sempre, apenas vale como panaceia para todos os males, dado que os Estados mais poderosos têm procurado a sua vitória em progressos bélicos e guerras totais de consequências imprevisíveis.
Da guerra por terra, mar e ar, evoluiu-se para a nuclear e, na era digital, para a cibernética, dando-lhe caraterísticas evolutivas de permanência.
A paz atual, como as anteriores, é sempre precária. Para a segurança da humanidade é insuficiente uma organização mundial como a ONU, a força militar, a imposição dos estadistas e a diplomacia.
Apenas uma consciente e empenhada educação dos povos, dirigida por atalhos de uma política sábia de garantias e de liberdade, pode produzir, através de gerações e de uma opinião publica influente e resistente, a ansiada paz.
No curto prazo, o ideal seria subscrever e aplicar o Projeto para tornar a paz perpétua na Europa, do abade francês de Saint-Pierre, em que defendia a pacificação europeia, através de uma instância política, acima das nações, assegurando o governo da paz e uma sociedade harmonizada. Mais tarde, Kant recupera esse propósito com o Projeto para a Paz Perpétua, prescrevendo a guerra como inimigo número um da humanidade, tendo como imperativo que os Estados se associassem numa organização de fins pacíficos, assente numa aliança federal de Estados livres de competência resolutiva para conflitos internacionais, colocando a guerra fora do Direito. Apesar de ser em nome dessa cooperação baseada em imperativos morais e jurídicos restritivos da ação dos Estados que se inspirou o presidente Wilson, isso não impediu que após a primeira grande guerra se agudizassem os ressentimentos e se chegasse à segunda guerra mundial. O que não exclui o sonho de uma organização internacional universal em que o Direito supere a força privada e estadual.
Embora guerra e paz sempre existissem, a paz efetiva é decorrência inelutável do progresso espiritual da humanidade, sendo a guerra odienta, mesmo que justa.
E digo à flor que se abstenha De murchar Que se coíba de morrer
Faria tudo para que me obedecesse
HUMILDADE
O coração não se sabe localizar Quando tudo é sofrimento Numa mão ainda aberta, ainda quente E decepada Sua razão é regressar Numa baga de água redonda E rolar, rolar
AO POEMA
Um dia terei dimensão Para ser a hospitalidade inteira Um dia, naquele dia Em que ninguém mais receará Ser abandonado
1. Depois de uma invasão injustificável e uma uma guerra cruel, com milhões de deslocados e refugiados, crianças traumatizadas para sempre, prédios arrasados, o que fica para trás, após a retirada russa de perto de Kiev, nomeadamente em Butcha, é de uma atrocidade de pesadelo: corpos de civis com as mãos atadas e assassinados, valas com cadáveres ao abandono, mulheres violadas, num cenário de tragédia indescritível. Não há palavras. E alguém beneficia com estas atrocidades? Aqui, veio-me à mente um livrinho famoso. O seu autor: Carlo M. Cipolla (1922-2000), historiador da economia O seu título: As leis fundamentais da estupidez humana, de que fica aí uma resumo.
2. Para estabelecer as leis fundamentais da estupidez, é preciso, primeiro, definir quem é o estúpido. Quando temos um indivíduo que faz algo que nos causa uma perda, mas lhe traz um ganho a ele, estamos a lidar com um bandido. Quando alguém age de tal maneira que todos os interessados são beneficiados, temos uma pessoa inteligente. Ora, o nosso quotidiano está cheio de incidentes que nos fazem "perder dinheiro, e/ou tempo, e/ou energia, e/ou o nosso apetite, a nossa alegria e a nossa saúde", por causa de uma criatura ridícula que "nada tem a ganhar e que realmente nada ganha em causar-nos embaraços, dificuldades e mal". Ninguém percebe por que razão alguém procede assim. "Na verdade, não há explicação ou, melhor, há só uma explicação: o indivíduo em questão é estúpido."
Cá está a primeira lei: "Cada um subestima sempre inevitavelmente o número de indivíduos estúpidos que existem no mundo." Já a Bíblia constata: o seu número é infinito.
Os estúpidos estão em todos os grupos, pois "a probabilidade de tal indivíduo ser estúpido é independente de todas as outras características desse indivíduo": segunda lei.
A terceira lei corresponde à própria definição do estúpido: "É estúpido aquele que desencadeia uma perda para outro indivíduo ou para um grupo de outros indivíduos, embora não tire ele mesmo nenhum benefício e eventualmente até inflija perdas a si próprio." A maioria dos estúpidos persevera na sua vontade de causar males e perdas aos outros, sem tirar daí nenhum proveito. Mas há aqueles que não só não tiram ganho como, desse modo, se prejudicam a si próprios: são atingidos pela "super-estupidez".
É desastroso associar-se aos estúpidos. A quarta lei diz: "Os não estúpidos subestimam sempre o poder destruidor dos estúpidos. Em concreto, os não estúpidos esquecem incessantemente que em todos os tempos, em todos os lugares e em todas as circunstâncias tratar com e/ou associar-se com gente estúpida se revela inevitavelmente um erro custoso." A situação é perigosa e temível, porque quem é racional e razoável tem dificuldade em imaginar e compreender comportamentos irracionais como os do estúpido. Schiller escreveu: "Contra a estupidez mesmo os deuses lutam em vão."
Como consequência, temos a quinta lei: "O indivíduo estúpido é o tipo de indivíduo mais perigoso." O corolário desta lei é: "O indivíduo estúpido é mais perigoso do que o bandido." De facto, se a sociedade fosse constituída por bandidos, apenas estagnaria: a economia limitar-se-ia a enormes transferências de riquezas e de bem-estar a favor dos que assim agem, mas de tal modo que, se todos os membros da sociedade agissem dessa maneira, a sociedade no seu conjunto e os indivíduos encontrar-se-iam numa "situação perfeitamente estável, excluindo toda a mudança". Porém, quando entram em jogo os estúpidos, tudo muda: uma vez que causam perdas aos outros, sem ganhos pessoais, "a sociedade no seu conjunto empobrece".
A capacidade devastadora do estúpido está ligada, evidentemente, à posição de poder que ocupa. "Entre os burocratas, os generais, os políticos e os chefes de Estado, é fácil encontrar exemplos impressionantes de indivíduos fundamentalmente estúpidos, cuja capacidade de prejudicar é ou tornou-se muito mais temível devido à posição de poder que ocupam ou ocupavam. E também não se deve esquecer os altos dignitários da Igreja." É assim o mundo.
3. Ao ler Igreja, lembrei-me do Papa Francisco, esse cristão que é uma bênção para a Igreja e para o mundo. Ele, atravessado pela angústia dos migrantes e da guerra “sacrílega”, como a caracteriza, da Ucrânia, visitou no fim de semana passado a ilha de Malta, manifestando, mais uma vez, a sua predilecção pelas periferias — “é preciso ir à periferia para ver o mundo como é”, diz.
Já na ida de Roma para Malta, tinha manifestado a sua disponibilidade para ir a Kiev: “Uma visita a Kiev está em cima da mesa”. Já de regresso, na habitual conferência de imprensa, agradeceu as notícias sobre os horrores de Butcha, que desconhecia, e declarou: “A guerra é cruel, desumana. Estou disposto a fazer tudo o que possa ser feito. A Santa Sé está a fazer a sua parte diplomática: o Cardeal Parolin, Monsenhor Gallagher estão a fazer tudo. Por razões de prudência, não se pode publicar tudo, mas estamos a levar o nosso trabalho até ao limite. Entre as várias possibilidades, está a viagem. Digo com sinceridade: há sempre disponibilidade para partir. Está em cima da mesa. É uma das propostas, mas não sei se é possível e se será conveniente. Tudo está no ar. Há algum tempo que também pensei num encontro com o Patriarca Ortodoxo de Moscovo. Estamos a trabalhar no sentido de concretizá-lo.”
Desgraçadamente, digo eu, o Patriarca Cirilo está ao lado de Putin.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 9 de abril de 2022
“Cities must never be allowed to stop breathing.” Jaime Lerner (Lerner 2014, 7)
Acupuntura Urbana, de Jaime Lerner, é um conceito concretizado através da vivência tangível de uma cidade. É um conjunto de soluções práticas e possíveis que prometem resolver os múltiplos e complexos problemas urbanos.
“As cidades não são problemas. São soluções.”, Jaime Lerner
A cidade, de acordo com Jaime Lerner é um organismo vivo e o cuidado e a intervenção estratégica e pontual podem trazer mudanças em grande escala. Ao revitalizarmos os sinais vitais de uma determinada área estamos a contribuir para a reinvigoração de toda a área circundante. Intervenção é sinónimo de fazer um organismo reviver através de estímulos perspicazes, táticos e habilidosos. Novas abordagens e novos pontos de vista acordam uma cidade. Um plano é um processo que pode demorar anos a concretizar-se. Mas a acupuntura urbana funciona como um incentivo local, não necessariamente planeado, eficaz, rápido e de escala muito limitada. É uma cura exata e precisa, um simples começo que poderá ou não despoletar uma mudança mais alargada.
“Good acupuncture is about drawing people out to the streets and creating meeting places. Mainly, it is about helping the city become a catalyst of interactions between people.”, Jaime Lerner (Lerner 2014, 47)
As medidas concretas, propostas por Jaime Lerner, tentam contribuir para a construção de uma cidade mais humanizada e são as seguintes:
. Polifuncionalidade;
. Promover do encontro entre pessoas;
. Existência de várias velocidades e de vários meios de transporte que se completam e que permitem um uso controlado do carro;
. Ruas com vida (através de ruas onde as pessoas possam andar, com lojas abertas durante 24 horas, com comércio ambulante, com mercados e galerias e que servem múltiplos usos);
. Preservar e restaurar a identidade cultural de um lugar para que seja experienciado (a memória de uma cidade é um ponto de referência vital, capaz de recuperar um sentido comum de coletividade e de pertença);
. Construir em pequena escala;
. Dar importância a pequenas e simples pre-existências;
. Nada fazer, sempre que for necessário;
. Incentivar a atenção e a dedicação, por parte de cada habitante, à cidade;
. Constante presença de sons e de cores variados;
. Continuidade (ao eliminarem-se os vazios e abandonados lugares urbanos);
. Salvar, nem que seja temporariamente, estruturas devolutas e perdidas;
. Integrar ricos e pobres, através da mistura de pessoas de várias idades no espaço público e no espaço construído;
. Garantir o fornecimento de infraestruturas, serviços e emprego em bairros clandestinos;
. Estimular o conhecimento aprofundado do lugar onde se vive;
. Aproximar a casa do trabalho;
. Plantar árvores nas ruas;
. Introduzir espaços que contribuam para o uso da memória e da imaginação - a praça serve para observarmos o mundo, o parque ajuda-nos a descobrir o que existe para além de todos os limites físicos;
. Urgência em construir objetos abertos para a cidade.
Através do exemplo de Curitiba e da sua acupuntura urbana, Jaime Lerner deixou-nos a possibilidade de transformar a cidade, com pequenos gestos, num espaço onde a fusão e coexistência de inúmeras atividades humanas acontecem incessantemente: “The more you blend incomes, ages and activities, the more human the city becomes.”, Jaime Lerner (Lerner 2014, 63)