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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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O MILAGRE DO PERDÃO

  

 

Participei há anos no funeral gigantesco de um jovem padre francês. Na África do Sul. Tinha sido morto por engano na estrada, com a mira do roubo. Os pais não puderam estar presentes fisicamente. Fizeram-no do modo mais nobre e emocionante: o bispo leu àquela multidão o texto em que eles declaravam que perdoavam de coração aos assassinos.


No Evangelho, se há tema que volta sempre de novo é o do perdão. É preciso perdoar sempre. De coração. O próprio Jesus, do alto da cruz, perdoou aos seus algozes.


Mas o perdão é um milagre, como reconheceu o próprio filósofo J. Derrida, remetendo para a religião. Um milagre no sentido intenso da palavra. É algo de espantosamente admirável, porque transcende a lei da simples justiça. No âmbito da justiça pura, ninguém pode ser obrigado a perdoar e ninguém pode exigir o perdão. Perdoar é do domínio da generosidade, ser perdoado é da ordem da graça: ser perdoado é ser agraciado, receber uma graça. A justiça contabiliza. O perdão desfaz a lei do cálculo. Por isso, até na linguagem corrente, referente a pequenas ofensas, o ofendido dirá a quem pede desculpa: “Deixa lá, não foi nada!” A essência do perdão é a anulação do cômputo e da permuta, substituídos pelo dom. Quem ofendeu já não deve, porque o ofendido esqueceu a dívida, não tem em conta a ofensa. Assim, em verdade não perdoou a mulher que todos os dias repetia ao marido, que tinha tido uma "escapadela": “Não te esqueças que eu te perdoei de todo o coração!”


A justiça no seu rigor estrito não contempla o perdão. Mas, sem o perdão, a vida torna-se intolerável, pois quem ofendeu é devorado pela culpa, e o ofendido, roído pela vingança.


Apesar de tudo, há algum fundamento para o perdão? Em primeiro lugar, tenha-se em conta a compreensão pela fragilidade humana: se os seres humanos pudessem contar a sua história desde a raiz e até ao fim - o que será sempre impossível, pois desconhecemos a nossa raiz e o nosso fim -, a quantos se negaria compreensão? Mas há sobretudo a lei do ser, que é dom: antes de eu te dar seja o que for - também o perdão -, eu já recebi, existir é ser recebido desde sempre da Fonte, que dá sem nada exigir em troca e, por isso, mora no abscôndito.


Também por isso, perdoar mesmo só o Criador pode fazê-lo. De facto, a ofensa é uma ferida no ser, que a criatura, no limite, mesmo que a vítima perdoe, não pode propriamente reparar. Quem restitui ao jovem padre francês assassinado as suas possibilidades mortas para sempre? Só o Criador pode fazê-lo. É assim que o perdão da criatura não pode desvincular-se da memória. Perdoar não coincide com esquecer. Mesmo se a vítima esqueceu, perdoando, quem ofendeu tem de lembrar, para que o mal nunca mais se repita. Quem foi perdoado é convocado ao arrependimento e a uma vida nova. Como disse Kierkegaard, "tudo está esquecido, mas lembra-te do perdão".


Concretizando. Uma das situações em que o ser humano é confrontado com o limite é o caso do perdão do algoz por parte das vítimas mortas, como se torna palpável na história contada por Simon Wiesenthal numa obra sobre Auschwitz. Como contou Jürgen Moltmann, o judeu Wiesenthal era prisioneiro num campo de concentração e foi chamado ao leito de morte de um chefe nazi, que lhe queria confessar a ele, o judeu, que tinha participado nos fuzilamentos em massa de judeus na Ucrânia. Queria pedir-lhe perdão, para poder morrer em paz. Wiesenthal disse-lhe que podia ouvir a confissão do assassino, mas que não podia perdoar-lhe, pois "nenhum vivo pode perdoar em nome dos mortos aos seus assassinos". Não pode fazê-lo, porque não tem o direito nem o poder para isso. E Wiesenthal ficou tão abalado com esta impossibilidade de perdoar que escreveu a muitos filósofos e teólogos europeus a contar-lhes a sua história, que publicou, com as respostas, num livro com o título: Die Sonnenblume (O girassol).


A razão, para não sucumbir à parcialidade, se quiser ser verdadeiramente universal, não pode não ser "razão anamnética", isto é, tem de se deixar iluminar pela memória das vítimas. E é imprescindível a memória para que as tragédias acontecidas não voltem a acontecer... Por outro lado, quem fará justiça às vítimas, também para que os algozes possam reconciliar-se e encontrar a paz?


O místico é aquele que caminha com Deus e para Deus, mas sem abandonar a noite. Ele não se distingue do crente e do descrente, que simultaneamente somos com dor e sofrimento, por já ter sido subtraído à noite na qual todos os mortais vivemos submersos. "Distingue-se por ter avançado na noite o suficiente para que a noite seja para ele 'amável como a alvorada' (...), outra forma de luz", como escreveu o teólogo Juan Martin Velasco. Para muitos, em nenhum lugar da História esta experiência mística em que culmina a experiência de Deus foi tão radical como na cruz de Cristo, onde, segundo a fé cristã, "Deus se revela de forma definitiva e, por isso, insuperavelmente obscura". Aí, precisamente na dor insuportável da sua “ausência”, nessa noite de trevas, Deus está infinitamente presente, escutando aquela oração simultaneamente desesperada e confiante, que atravessa os séculos: "Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?; Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem".


Os cristãos ousam acreditar que Deus ressuscitou de entre os mortos esse Crucificado, que o foi por blasfémia e sublevação do povo oprimido político-religiosamente.


NEle, Deus revelou-se solidário para sempre com todas as vítimas.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 28 de maio de 2022

A VIDA DOS LIVROS

  

De 30 de maio a 5 de junho de 2022.


«Pessoa – Uma Biografia» de Richard Zenith (Quetzal, 2022) é uma obra fundamental, na qual podemos encontrar, como antes não aconteceu, a personalidade multifacetada e heterogénea do poeta referência da língua portuguesa no século XX.

UM REPOSITÓRIO ABRANGENTE
Quatro partes constituem este repositório, no qual se pretende compreender um autor múltiplo e uno. Começamos por encontrar um “estrangeirado nato”, no período entre 1888 e 1905; depois, “o poeta como transformador” (1905-1914); em seguida “sonhador e civilizador” (1914-1925) e, por fim, “espiritualista e humanista” (1925-1935). Pessoa é um escritor vulcânico, segundo o seu biógrafo, “e quando as palavras começavam a fluir, usava todos os tipos de papel à disposição – folhas soltas, blocos de notas, papel de carta dos cafés que frequentava, páginas arrancadas de agendas ou calendários, as costas de tiras de banda desenhada e folhetos, sobrecapas, bilhetes de visita, sobrescritos e margens de manuscritos alinhavados alguns dias ou anos antes. E todos eram por ele depositados nessa grande arca de madeira: a herança que deixava ao mundo. Seriam necessárias décadas de devotado labor por parte de académicos e bibliotecários para que esse achado textual precioso fosse inventariado e largamente publicado, espantando-nos com as suas quantidade, qualidade e heterogeneidade». A arca tornou-se referência e mito. E sabemos bem que significava para o poeta a criação e o culto dos mitos. O certo é que “ainda mais surpreendentes do que os copiosos escritos exumados da arca eram as dúzias de alter egos desconhecidos que, depois de se esconderem lá durante anos, entraram no mundo como se tivessem sido despertados de um sono encantado”. Do filósofo esotérico Raphael Baldaya ao ultra-racional Barão de Teive, passando pelo único heterónimo feminino, o da tuberculosa Maria José, apenas três dos autores criados por Pessoa, tiveram desenvolvimento pleno – Alberto Caeiro da Silva (1889-1915) autor de “O Guardador de Rebanhos” e de “O pastor Amoroso”; Ricardo Sequeira Reis (1887), médico, professor de Latim no liceu, autor de odes clássicas à maneira de Horácio, emigrado no Brasil e Álvaro de Campos, engenheiro naval, formado na Escócia, nascido em Tavira (1890), o mais assertivo e prolífico dos heterónimos pessoanos… Mas o mais importante trabalho de Pessoa em prosa encontra-se no “Livro do Desassossego”, que “ilustra de uma forma magnífica o princípio da incerteza que percorre o seu universo literário”. São quinhentos fragmentos, que apenas viram a luz do dia em 1982, cujo corajoso narrador é Bernardo Soares, um semi-heterónimo, para quem “o único modo de estarmos de acordo com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios”. A magia do desassossego é a coexistência da coerência e da contradição, como marcas da complexidade da vida humana. E Zenith compara esse livro ao de Robert Musil “O Homem sem Qualidades”. Contudo, a ausência e a sobreabundância de qualidades representam as faces contraditórias do homem moderno, que ocupa Fernando Pessoa. 

O TEMPO NECESSÁRIO PARA ENTENDER
Foi preciso tempo, porém, para que os leitores de Pessoa pudessem compreender uma poética de identidade fragmentada. E Eduardo Lourenço foi quem, de modo totalmente original, pôde compreender os elos íntimos dessa misteriosa diversidade em “Pessoa Revisitado”. Talvez tenha sido vantajoso o atraso na revelação da obra crucial, para que a crítica pudesse ultrapassar as primeiras impressões. “O seu universo de partes desligadas, diz Zenith, antecipa a nossa própria mundivivência, com as evoluções na história, na ciência e na filosofia a desenganarem-nos em relação a quaisquer totalidades harmoniosas que alguma vez tenhamos prezado. Por outro lado, tudo o que existe deve, em última instância, ligar-se, uma vez que é parte do existente, e os cosmólogos e filósofos contemporâneos elaboraram em relação à origem do mundo algumas teorias elegantes do quadro global, em que o Big Bang pode ser apenas um acontecimento local”. Recusando o completo e o definitivo, Pessoa interessa-se pelo oculto e a heteronímia pode ser explicada como um meio quase religioso ou alquímico que permite progredir, na viagem espiritual de Fernando Pessoa, que anseia sentir tudo de todas as maneiras possíveis. E há uma citação misteriosa e isolada, entretanto encontrada, de um fragmento da carta de S. Paulo aos Coríntios, que pode ser reveladora: “Eu me fiz tudo para todos, a fim de salvar a todos”. A diversidade é, de facto, uma indelével marca pessoana. Nos amores, tem com Ofélia Queiroz uma relação indecisa e a marca da sexualidade é difusa. Na política, António Mora defende a causa alemã na guerra, enquanto Fernando Pessoa se inclina para os Aliados, apesar do entusiasmo limitado. A verdade é que é a arca, mais do que os testemunhos pessoais, a grande reveladora da vida misteriosa do poeta. Tímido e delicado na conversa, tinha bom sentido de humor, vestia com esmero e era muito educado. Há unanimidade nessa apreciação. E quanto a confissões autobiográficas, encontramo-las espalhadas em toda a parte. Na “Tabacaria”, Campos fala do hipotético amor com a filha da lavadeira e acena ao Esteves pela janela. Em ambos os casos há verosimilhança com a realidade. Richard Zenith procura, no fundo, cartografar, tanto quanto possível, a vida imaginativa do poeta e consegue-o com originalidade e novas descobertas. Como afirmou John Keats, “a vida de um homem digna de valor é uma alegoria contínua”. O que Pessoa imaginou, visionou e projetou foi único na sua vastidão e variedade. - «Sê plural como o universo!» - escreveu de forma imperativa num papel encontrado na arca, na década de 1960. Eis a chave!     

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

OS 120 ANOS DO NASCIMENTO DE TOMAZ DE FIGUEIREDO

  

 

Vale a pena evocar aqui o teatro de Tomaz de Figueiredo nos 120 anos do seu nascimento, ocorrido em 1902. E assinalam-se também os 52 anos da morte, ocorrida em 1970.


Isto, sem perder a noção de que a sua criatividade teatral está algo esquecida, para não dizer mais: e no entanto, a obra dramatúrgica que nos deixou merece referências, hoje de facto ignoradas. E no entanto, a sua dramaturgia merece evocação, pela qualidade e pelo sentido de espetáculo inerente, numa época em que outros valores se impõem mas que não colidem, de modo nenhum, com a qualidade indiscutível desta dramaturgia…


Daí, esta evocação, e isto não obstante o teatro de Tomaz de Figueiredo estar hoje efetivamente de certo modo esquecido: mas a verdade é que a sua criatividade literária também o está…


E no entanto a sua dramaturgia deve ser devidamente assinalada, pois concentra sinais de qualidade merecedores de vasta evocação, que não tem sido efetuada.


Em suma: o teatro de Tomaz de Figueiredo merece referência pela qualidade cénica e sobretudo literária: mas uma coisa não evita a outra, usando uma expressão bem antiga… E vale a pena então insistir que a sua dramaturgia não tem sido devidamente apreciada, e isto não obstante o sentido de espetáculo que envolve.


Na minha “História do Teatro Português” dedico a este autor, hoje, insisto, como dramaturgo de certo modo esquecido, uma referência abrangente e elogiativa, não obstante algumas óbvias restrições que a dramaturgia de Tomaz de Figueiredo implica. No caso concreto, aponta-se sobretudo a truculência textual de peças como designadamente “Os Lírios Brancos”, “O Visitador Extraordinário”, “A Barba do Menino Jesus” ou “A Nobre Cauda”.


Essas peças, escrevi no livro citado, conciliam uma exuberância barroca com um lirismo por vezes dominante, mas sobretudo com uma visão de mitos sociais que efetivamente se aproxima do surrealismo no seu “non-sense”.


E acrescento agora que Luiz Francisco Rebello, na “História do Teatro Português” de que é autor, refere-se à peça “A Rapariga de Lorena” (1964) como exemplo da ligação criacional de escritores/dramaturgos que a certa altura se dedicaram à produção teatral.


O teatro criado em Portugal merece estudos e referências: mesmo quando os dramaturgos são ou estão esquecidos!...

 

DUARTE IVO CRUZ

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE ANA HATHERLY

  


CASAMENTO DO CÉU E DA GUERRA


Não, meu caro Blake

Esta não é, como a tua
Uma guerra mental
Para as cósmicas acrobacias
Que atravessam o fogo
Das tuas fantasias


A acção heróica

Que outrora seduzia
Agora é um puro teste
E o campo de batalha
Visto de longe
de cima
de muito alto
É pura geometria
No rectângulo do scanner


As novas armas que cruzam nossos céus

Caem sobre a terra
Distraidamente
Errando o alvo
Enquanto os corpos desencarnam
À sombra das destruídas pontes da lembrança


Que queres de nós, Doctor Clash?

Que nos dizes lá do alto?


Um cruel pai nos entrega a este conúbio

Atirando a bola
Para o campo do adversário
Onde o árbitro já foi despedido
E vestido de preto
É uma mosquinha
No imenso campo
Verde
Porque a teimosa relva
Continua a crescer
para ser pisada
para ser esmagada
Porque esse é o seu cruel programa


Do céu

Donde sempre nos veio
O fogo e a água
Continua a vir
O sustento da morte


in Itinerários, 2003


MARRIAGE OF HEAVEN AND WAR


No, my dear Blake

This is not, as yours was,
A mental war leading
To the cosmic acrobatics
Crossing the fire
Of your imagination


The heroic deed

So seductive of yore
Has become a pure test
And the battle field
Seen from afar
from above
from way up
Is pure geometry
In the screen of the scanner


The new weapons that cross our skies

Fall upon us
Absent-mindedly
Missing the target
While the bodies disembody
Under the shadowy bridges of remembrance


What do you want from us, Doctor Clash?

What say you to us from up there?


A cruel father delivers us to this wedding

Kicking the ball
To the field of the enemy
Where the referee having been fired
Dressed in black
Looks like a tiny fly
In the huge field
Green
Because the stubborn grass
Continues to grow
to be trampled on
to be squashed
Because that is its cruel program


From the sky

Whence fire and water
Were always bestowed upon us
Keeps coming
The sustenance of death

 

© Translated by Ana Hudson, 2010
in Poems from the Portuguese 

 

ANTOLOGIA

  


FREI TIAGO VORAGINO

por Camilo Martins de Oliveira


A iconografia dos antepassados, da família, do nascimento e da infância de Jesus que a tradição dos crentes, pelo imaginário popular, foi reproduzindo em inúmeras imagens e outras representações artesanais, ou ainda, através de magníficas obras de arte hoje espalhadas pelos museus do mundo e pelas igrejas, do Vaticano a Portugal, ao Brasil, às Filipinas, pela terra inteira... é maioritariamente inspirada pelas descrições que se encontram na "Legenda Aurea", que já conhecemos e visitámos. As fontes dessa obra de Frei Tiago Voragino são muitas, desde os livros canónicos da Bíblia a textos cristãos primitivos apócrifos até aos escritos dos Padres da Igreja, de bispos, monges, eremitas e santos, cronistas e comentadores, dos primórdios da cristandade até ao séc. XIII. Escreve Jacques Le Goff: "Tiago Voragino explora os géneros tradicionais da Idade Média: a compilação e, especialmente no séc. XIII, a enciclopédia. Os clérigos da Idade Média fizeram da compilação um método original e criativo... Quanto à enciclopédia, é uma especialidade que ocupa um bom lugar no grande movimento do progresso intelectual do séc. XIII: é uma suma que permite dar a medida dos conhecimentos acumulados, para que sirvam de apoio a ir-se mais longe." Para esta quadra natalícia, retenhamos também esta afirmação do professor e historiador francês:"Como diz Tiago Voragino no princípio da "Legenda Aurea", o mais importante neste desenrolar do tempo litúrgico, que é também o tempo da história, é a Incarnação de Deus: "pelo advento de Jesus Cristo tudo foi renovado". O séc. XIII é um século em que os valores descidos do céu à terra permitem aos homens apoiar-se no presente para seguirem em frente. É um sécúlo de otimismo e esperança". No presépio cósmico de Voragino que começámos a visitar entrando, por uma pintura de Fra Angelico, na manifestação da Natividade pela terceira categoria das criaturas, ou seja, pelos animais (burro e boi), a primeira proclamação da Incarnação de Deus é todavia feita pelo primeiro tipo de seres criados: os corpos puramente materiais. Pelos opacos, primeiro, com a queda da estátua de Rómulo e a sua destruição com o templo de Roma e a de muitas outras estátuas em inúmeros lugares. Já o profeta Jeremias dissera aos reis do Egipto que os seus ídolos cairiam quando uma virgem desse à luz um filho... Mas também corpos transparentes e translúcidos deram a conhecer o nascimento do Salvador, como predissera a Sibila: nessa noite, a escuridão do ar se transformou em dia claro, e uma nascente de água em fonte de óleo a desaguar no Tibre... Finalmente, deram sinal os " corpos puramente materiais luminosos como os corpos celestes"... "Segundo a narrativa dos antigos, como diz João Crisóstomo, aos Magos que rezavam no cimo de uma montanha apareceu uma estrela, mesmo sobre eles. Essa estrela tinha a forma de um lindo menino, sobre cuja cabeça brilhava uma estrela. Esse menino dirigiu-se-lhes e disse-lhes que fossem à Judeia, onde encontrariam um recém-nascido. E nesse mesmo dia, três sóis apareceram no oriente, que, a pouco e pouco, se fundiram num único corpo solar. Assim se significava que o conhecimento de Deus trino e uno se espalharia por todo o universo, ou então que tinha nascido aquele em que três coisas, a alma, a carne e a divindade se conjuntavam numa só pessoa..." Frei Tiago, que viria a ser arcebispo de Génova, vai agarrando notícias, lendas e narrativas constantes da tradição romano-latina numa Europa que fora dominada e dividida pelos "bárbaros" conquistadores do Império Romano, e procura servir-se delas para consolidar a história e o pensamento de uma cultura em que se enraíze uma sociedade nova: a que se desenvolverá por burgos e cidades, em corporações e universidades, em comércio, indústria e navegação. Saída dos medos e da insegurança dos campos e florestas, a gente europeia começa a lidar mais racionalmente com o escuro da história e as superstições antigas.

  

Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 21.12.12 neste blogue.

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  

 

107. LIBERDADE DE EXPRESSÃO E CANCELAMENTO (RUSSOFOBIA) CULTURAL


Cancelar da cultura mundial Dostoiévsky, Tolstoi, Pushkin, Pasternak, Tchekhov, Tchaikovsky, Stravinsky, Kandinsky, Mussorgsky, Rachmaninov, Chostakovitch, Tarkovsky, Anna Pavlova, entre outros, por um sentimento de aversão ou ódio à Rússia, seu país natal, após a agressão e invasão russa na Ucrânia, é censurável, por maioria de razão em países democráticos que fazem culto e consagram a liberdade de expressão, incluindo a de informação e de pensamento.   


Pela arte, literatura, música, dança, pelo cinema, pela cultura em geral, a Rússia é património cultural da humanidade, produziu e continua a produzir, a nível artístico, cinematográfico, literário e científico, nomes intemporais que a Europa também reconhece como seus, e se universalizaram, sendo parte integrante da alma russa e do génio humano.


Não faz sentido cancelar a cultura russa, mesmo havendo uma condenação intransigente da invasão da Ucrânia, como notícias vindas de Zagreb revelando que a orquestra filarmónica cancelou dois concertos de Tchaikovsky, ou da MET, companhia de ópera de Nova Yorque, ao excluir uma soprano e um maestro russos, ou a interdição da literatura de Dostoiévski numa universidade italiana, o que não ajuda a amenizar o sofrimento das vítimas ucranianas, sendo um contra senso condenar o governo russo por limitar ou boicotar a liberdade de expressão e o ocidente agir do mesmo modo quanto à cultura russa.   


Defendemos que uma obra cultural (uma obra de arte em geral) vale por si, independentemente das opções políticas, ou outras, de cada um ou do autor, fazendo a separação entre a obra em si ou ao serviço de qualquer coisa, sobrepondo-se às contingências pessoais por que passou ou passa o seu autor, sendo transcontextuais, transversais, transnacionais, transcontemporâneas, isentas de culpas.   


Não há que confundir a Arte e a Cultura Russa com as opções políticas atuais dos seus governantes, dada a sua intemporalidade, antecipando-se, antepondo-se ou sobrepondo-se para além de quem tem o poder.   


Faz sentido que deixe de ler ou exclua da minha biblioteca obras como Guerra e Paz, de Tolstoi, Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski? 


Que deixe de se ouvir e ver O Lago dos Cisnes ou O Quebra-Nozes, de Tchaikovsky? 


Não se ouça Rachmaninov, Stravinsky, ou não se contemplem as pinturas de Kandinsky?


Não faz, nem faria, nem atenua o sofrimento dos ucranianos, antes é uma arma de arremesso que, por um lado, não dignifica sociedades que se dizem livres e têm por base a liberdade de expressão e, por outro, quando fazem uso de tais cancelamentos culturais dão argumentos ao culto da russofobia e a que se fortaleça o regime russo e a sua propaganda direcionada para criar entre os russos uma sensação de injustiça e de o ocidente estar contra eles, mesmo que a democracia em que vivemos, cheia de falhas, seja a melhor alternativa (por confronto com propostas autocratas, ditatoriais, totalitárias ou similares).

 

27.05.22
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

VINTE POEMAS (IV)

  


XVI

Outros séculos virão
Outras grades impedirão as aves
Do grito
Mas no ouvido concreto
O apelo
Às vidas de pé
Será consciência pura
De uma vitória


XVII

Somos gotas
E pouco mais

Às vezes gotas de água
Outras
Hálito

Amanhã
No buxo de um qualquer lodo
Indiferenciadas
As nossas pegadas

Só as glicínias
Têm memória

Só as abelhas
Zumbem

Só as crianças
De colina em colina


XVIII

Em cinzas
Depois do grande salto
Dirigimos as cartas
À existência que nunca se viveu


XIX

Ao princípio a guerra e a paz
Dividem-se pela fenda
Depois
Identificam
O atalho


XX

Que uma locomotiva
Transporte um cordeiro
Que a rama branca resgate
A nossa paz
E que tudo isto aconteça enquanto viajamos

Habitantes do humano

 

Teresa Bracinha Vieira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


O cinema é para Eric Rohmer uma simples captação mecânica das coisas.


No livro “Eric Rohmer. Film as Theology.” de Keith Tester (Palgrave Macmillan, 2008) lê-se que o território dos filmes de Eric Rohmer situa-se entre o campo e a cidade. Cada espaço, para Rohmer estabelece uma relação profunda e intrínseca com o ser humano - porque é capaz de o influenciar e de o fazer sonhar.


Nos seus filmes, Rohmer insiste na criação que existe para lá da construção humana. Numa entrevista a Antoine de Baecque e Thierry Jousse, em 1993, Rohmer afirma que o cinema não tem uma relação predatória com a natureza. Pelo contrário, para Rohmer, o cinema tem a capacidade de gravar a beleza do real: “My love of cinema itself springs from my love of nature.” (Handyside 2013, 138)


O cinema é, assim para Rohmer uma simples captação mecânica das coisas - é uma máquina que se coloca perante algo e que nada altera. Rohmer diz que a pintura é diferente porque é forçada a transpor, a descrever, a usar a metáfora, a representar. Na verdade é um filtro: “Painting (…) is a strength of the imagination which bothers me more.” (Handyside 2013, 138)


Foi o enorme interesse pela natureza que levou Rohmer a amar o cinema acima de todas as artes. Para Rohmer, a ambição e o desejo em construir um mundo novo e melhor, pode ser devastadora e pode até levar à desumanidade extrema: “The demagogues’ problem is that they want to impose culture, because that implies that there is a correct culture, and one that is wrong. While in fact there are different cultures for different audiences.” (Handyside 2013, 137)


“I’ve always kept faith in the future and trust in the past together. In a certain way, I am very conservative, but the more conservative I am, the more I’m waiting for the future (…) You have to be conservative in the framework of tradition, for example, in Paris, but one has to be resolutely futuristic in Utopian settings, such as in the New Towns, where everything can be allowed.” (Handyside 2013, 139)

 

Ana Ruepp

UNIR A BONDADE E A INTELIGÊNCIA

  

 

O senhor Elliot fora operado a um tumor. Embora a operação tenha sido considerada um êxito, depois dela as pessoas começaram a dizer que o senhor Elliot já não era o mesmo — sofrera uma mudança de personalidade drástica. Outrora um advogado de sucesso, o senhor Elliot tornou-se incapaz de manter um emprego. A mulher deixou-o. Tendo desbaratado as suas poupanças, viu-se forçado a viver no quarto de hóspedes em casa de um irmão. Havia algo de estranho em todo este caso. De facto, intelectualmente continuava tão brilhante como antes, mas fazia um péssimo uso do seu tempo. As censuras não produziam o mínimo efeito. Foi despedido de uma série de empregos. Embora aturados testes intelectuais nada tivessem encontrado de errado com as suas faculdades mentais, mesmo assim foi procurar um neurologista. António Damásio, o neurologista que Elliot consultou, notou a falta de um elemento no reportório mental de Elliot: ainda que tudo estivesse certo com a sua lógica, memória, atenção e outras faculdades cognitivas, Elliot parecia não ter praticamente sentimentos em relação a tudo o que lhe acontecera.  Sobretudo era capaz de narrar os trágicos acontecimentos da sua vida de uma forma perfeitamente desapaixonada. Damásio ficou mais impressionado do que o próprio Elliot. A origem desta inconsciência emocional, concluiu Damásio, fora que a cirurgia da remoção do tumor cortara as ligações entre os centros inferiores do cérebro emocional e as capacidades de pensamento do neocórtex. O pensamento de Elliot tornara-se igual ao de um computador: totalmente desapaixonado.


Citei livremente Daniel Goleman em Inteligência Emocional. Afinal, o ser humano não é redutível à lógica.


No que se refere à moral, Max Horkheimer, um dos fundadores da Escola Crítica de Frankfurt, deixou escrito que não é possível fundamentar a moral de um modo exclusivamente lógico. Isso foi visto também por Herbert Marcuse. Já no hospital, confessou ao seu amigo Jürgen Habermas: "Vês? Agora sei em que é que se fundamentam os nossos juízos de valor mais elementares: na compaixão". Aqui, tenho inevitavelmente de perguntar, ao ver aquela tragédia horrorosa da Ucrânia, com mulheres e crianças a fugir no total desamparo: o responsável por aquela guerra não se deixa abalar por um mínimo de compaixão?


Com Espinosa, terá sido Hegel o filósofo que levou mais longe o racionalismo: "o que é racional é real; e o que é real é racional", escreveu. Mas Ernst Bloch objectou que o proceso do mundo não pode desenrolar-se a partir do logos puro. Na raiz do mundo tem de estar um intensivo da ordem do querer. Bloch, como Nietzsche e Freud, foi beber a Schopenhauer. Este foi um filósofo que sublinhou do modo mais intenso que, na sua ultimidade, a realidade não é racional, pois há uma força que tem o predomínio sobre os planos e juízos da razão: a vontade.


Aí está um dos motivos fundamentais por que, como já aqui escrevi várias vezes, na tentativa da explicação dos fenómenos humanos, a nível individual e social, temos sempre a sensação de que há uma falha no encadeamento das razões. No ser humano, há a pulsão e o lógico, o afecto e o pensamento, a emoção e o cálculo, o impulso e a razão. O próprio cérebro, que forma certamente um todo holístico, tem três níveis; Paul D. Mac Lean fala dos três cérebros integrados num, mas também em conflito: o paleocéfalo, o cérebro arcaico, reptiliano, o mesocéfalo, o cérebro da afectividade, e o córtex com o neo-córtex, em conexão com as capacidades lógicas. A luz racional é afinal apenas uma ponta num imenso oceano inconsciente e também tenebroso.


Por isso, não só não conseguimos uma harmonia permanente como é necessário estar constantemente de sobreaviso contra a ameaça de descalabros e catástrofes mortais.


Por outro lado, porque o ser humano não é redutível à lógica computacional, é capaz de criações artísticas divinas, do amor gratuito, do luxo generoso.


É necessário permanecer atento à realidade humana na sua in-finita complexidade. Aí está, por isso, por exemplo, a exigência de unir a inteligência e a bondade. Não basta a  bondade, uma bondade cega, o sentimento em bruto. A bondade tem de ser inteligente, esclarecida. Na Igreja, prega-se frequentemente a bondade. Mas não basta. Desgraçadamente, devido a toda uma mentalidade dogmática, de rigidez doutrinal, na Igreja não há o hábito de fazer perguntas, de preparar para o juízo crítico. No entanto, se o crente está referido a Deus, que é infinito, não é sua obrigação interrogar, fazer perguntas ilimitadamente? Não é “a pergunta a piedade do pensamento”, como disse Martin Heidegger?


Mas, na Igreja, reina, frequentemente, o imobilismo, uma tradição estagnada, que tem medo do novo. Prega-se a obediência, citando São Paulo: Cristo obedeceu até à morte e morte de cruz. Porém, nunca se explicou que a sua obediência não foi uma obediência cega e resignada. Pelo contrário, obedecendo a Deus, a quem chamava Pai — Abbá, com o sentido de ternura filial: Papá (Pai querido) — , fê-lo subvertendo o poder religioso e político estabelecido, que oprimia os homens e as mulheres, precisamente em nome da obediência religiosa. O Deus seu Pai quer a libertação. Por isso, a obediência de Cristo foi a subversão de uma ordem opressora, que impedia os homens e as mulheres de viver na dignidade e na liberdade.


Com bondade generosa e inteligência lúcida, podíamos e devíamos fazer da Terra uma casa comum mais bela, mais iluminada, para habitar.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 21 de maio de 2022

A VIDA DOS LIVROS

  

De 23 a 29 de maio de 2022.


Em «Economia de Missão» (Temas e Debates, 2021), Mariana Mazzucato, põe a tónica na necessidade de organizar a União Europeia de modo a responder aos desafios do desenvolvimento a partir das novas necessidades da sociedade e da cultura, da ciência e da técnica.


NOVAS ASPIRAÇÕES EUROPEIAS
«Precisamos de integrar plenamente os países com aspirações europeias” – afirmou Mário Draghi, primeiro-ministro italiano no Parlamento Europeu. Em nome de um “federalismo pragmático”, o governante pôs o dedo na ferida. De facto, há muito que necessitamos de uma abertura corajosa relativamente à construção europeia. Não se trata de seguir um caminho ilusório ou de dar um salto no escuro, mas de uma exigência que permita fazer da construção europeia um corpo político que possa enfrentar a crise múltipla que vivemos, e que tende a agravar-se, nos campos humanitário, energético, económico e de segurança. Os desafios são os da paz e do estabelecimento de relações estáveis no velho continente, abrangendo os países do centro e do leste da Europa, obrigando a uma nova arquitetura que aprofunde o que está concretizado em sessenta anos e que abra novos horizontes, não apenas relativamente à Ucrânia, mas também para a Albânia e a Macedónia do Norte, ou para o Kosovo e a Bósnia-Herzegovina. Estão em causa a União Europeia, o Espaço Económico Europeu, o Conselho da Europa, a OTAN e a OSCE. E só com esta enumeração percebemos que há uma grande complexidade na definição futura das soluções que abranjam o Atlântico e o Mediterrâneo, as relações com a Federação Russa e a República Popular da China, os direitos humanos, o comércio internacional, a globalização e uma cultura de paz. Tudo obriga a garantir o cumprimento da Carta das Nações Unidas, a respeitar a soberania dos Estados soberanos no âmbito da paz e da guerra e a salvaguardar o primado da lei e do direito. De facto, não há soberania ilimitada, nem a Declaração Universal dos Direitos Humanos pode ser considerada letra morta. E Draghi foi muito claro: “As instituições fundadas pelos nossos antecessores serviram bem os cidadãos europeus nas últimas décadas, mas são desadequadas para a realidade atual”.


FEDERALISMO PRAGMÁTICO
A ideia de “federalismo pragmático” deverá, assim, incluir os processos de tomada de decisão conjuntos para os setores da economia, energia, defesa e política externa. Há que avançar para maiorias qualificadas em decisões fundamentais, já que precisamos de uma União que possa decidir em tempo útil, poupando vidas e recursos. Se a guerra iniciada pela Federação Russa contra a Ucrânia pôs à prova a unidade europeia, o certo é que há interesses vitais comuns que têm de ser salvaguardados solidariamente – no tocante às sanções, ao embargo ao petróleo russo ou ao pagamento em rublos do gás natural, em violação do princípio “pacta sunt servanda” e do cumprimento dos compromissos comerciais assumidos… “Agora é o momento para agir”, quer perante os apelos a uma decisão política, como os de Volodymir Zelensky, quer quanto à resposta à chegada de migrantes. E o mesmo se diga no domínio das incertezas económico-financeiras ditadas pelas consequências das últimas crises de recursos, sanitária e bélica. Contudo, perante a diversidade de atores e interesses e a heterogeneidade de situações, impõe-se agir em vários tabuleiros, com métodos diferenciados, que não se limitem a seguir as conveniências do curto prazo. O sinal político de solidariedade e de entendimento não pode confundir-se com um alargamento europeu frágil, precipitado e insuscetível de sucesso. E Draghi conhece bem o método adequado, lembrando as cautelas que tomou no Banco Central Europeu na crise financeira, para que não ocorresse o choque fatal entre a panela de barro e a panela de ferro. Se precisamos de regras que protejam todos, é fundamental rever o modo de funcionamento das instituições europeias e os seus objetivos, que devem ser menos ambiciosos do que agora, centrando-se na paz, na segurança, no desenvolvimento humano sustentável e na diversidade cultural. Como afirmou Jean-Paul Fitoussi, há pouco falecido: “ou a Europa muda ou os povos abandonarão a ideia”. Urge prevenir esse risco. Eis o que tem de estar bem presente na nossa mente, porque precisamos do projeto europeu, mais do que nunca. Como vimos na crise pandémica, sem cooperação seria a catástrofe. A reação à guerra da Ucrânia foi um sobressalto. Mas tal não basta. Há que distinguir os efeitos comuns de todos e o interesse de cada povo. Longe da tentação burocrática uniformizadora, impõe-se criar um verdadeiro sistema de geometria variável. Em vez da oposição entre sul e norte, entre beneficiários e “frugais”, importa deixar claro que a fragmentação europeia será fatal para todos. Tem de haver uma consciência comum que permita privilegiar equidade e eficiência, justiça e desenvolvimento humano. E as novas instituições deverão privilegiar a legitimidade democrática e o respeito dos direitos fundamentais. Daí a necessidade de representar os Estados (num Senado igualitário) e os cidadãos, proporcionalmente.   Novos membros deverão ver preservada a sua independência, com um apoio à reconstrução, semelhante ao do Plano Marshall, adaptado ao nosso tempo. O “federalismo pragmático” corresponde ao combate ao centralismo e à fragmentação, favorecendo a cidadania ativa e responsável e não uma fortaleza. Reforçar a decisão e a relevância das instituições europeias obriga a transferências equilibradas de soberania no seio da União Europeia, com menos centralismo e burocracia e mais descentralização, proximidade e participação cívica. A aceleração do processo de integração pressupõe a preservação da legitimidade dos Estados e a representação e participação dos cidadãos. Ter-se-á, assim, de pensar em alterar os Tratados, em nome da sobrevivência, mudando a unanimidade e o sistema pernicioso de vetos cruzados e avançando para as maiorias qualificadas. Talvez a pandemia e a guerra da Ucrânia tenham mudado as perceções sobre a nova realidade política. Cada Estado, só por si, não tem condições para apresentar remédios para a crise. E devemos ouvir Denis de Rougemont a dizer-nos que o Estado-nação é grande demais e pequeno demais, exigindo a subsidiariedade. Draghi insiste: “uma Europa capaz de tomar decisões no tempo certo é uma Europa mais credível perante os seus cidadãos e o mundo”. Afinal, Putin avançou contra a Ucrânia acreditando na fragilidade europeia, sobretudo depois das diatribes do Senhor Trump, alter ego do imperador russo.  Não se pense, porém, que será fácil encontrar novas soluções, ou que as respostas imediatas são suficientes. No domínio internacional e da segurança, há interesses e valores comuns que devem prevalecer, em lugar da subordinação dos países pequenos e periféricos relativamente aos mais poderosos. Como tem salientado Mariana Mazzucato (Economia de Missão, Temas e Debates, 2021): as respostas para o desenvolvimento “dependem da organização da economia, mais do que da mera quantidade de dinheiro gasto para resolver os problemas. Dependem das estruturas concretas, da capacidade e dos tipos de parceria entre os setores público e privado. Exigem também uma visão para imaginar um mundo diferente”. É de cultura que falamos. Precisamos do entusiasmo pela ação, do autogoverno baseado no valor ético da liberdade, do valor mobilizador do bem comum, da inovação baseada na experiência, do cuidado e do serviço público de qualidade, sem o que nos faltará o que Saint-Exupéry designava como a aprendizagem pela ânsia da imensidão infinita do mar.        

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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