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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A PROPÓSTO DE «DESTE LADO DA RESSURREIÇÃO»

  


Entre a primeira e a segunda cenas do segundo ato da sua ópera Thaïs, Jules Massenet introduz um "intermezzo" musical que intitulou "Méditation Religieuse": é nesse momento que se dá a conversão da prostituta em santa nascente, enquanto Athanaël, o monge que a motivou ao arrependimento e à busca do amor espiritual de Deus, começa a sofrer a fortíssima tentação de Eros. A "Méditation" soa-nos aí como o fluir sereno de uma alma que, renunciando aos prazeres ruidosos do mundo, se vai refugiando na doçura silenciosa do misterioso amor de Deus. Mas o mesmo tema musical se repetirá, primeiro, na cena inicial do terceiro ato, quando Thaïs, ingressando no mosteiro do deserto, diz para sempre adeus a Athanaël e este, ao som da "Méditation", dolorosamente compreende que jamais voltará a vê-la. E, depois, já no fim desse terceiro e último acto da ópera, no dueto final, quando Thaïs entra na morte e na visão de Deus, Athanaël mais não pode do que gritar o amor erótico que apaixonadamente o submergiu. Assim, da novela homónima e intencionalmente anticlerical de Gustave Flaubert, mais do que o libreto que dela Louis Gallet escreveu para a ópera, é a música de Massenet que nos encaminha para uma meditação sobre a condição humana, dividida entre "La Pesanteur et la Grâce" como a definiu Simone Weil. Nesta história, há duas pessoas que se encontram e seguem em direções opostas, mas o mesmo mistério marca o destino dos seus percursos.


Afinal, estamos, como no filme de Joaquim Sapinho, "Deste lado da Ressurreição". Aqui, entre a terra e o céu, entre o amor humano e a força telúrica do Guincho, que conduz ao silêncio sombrio, à austeridade acolhedora para além de qualquer acolhimento sensível de uma serra de Sintra enclausurada no Convento dos Capuchos, também não é a flagelação castigadora do corpo de Rafael que o libertará. Frente à tentação da transcendência, e no silêncio de Deus sobre a terra, as águas iniciais, o espírito também chama ao Agapè, ao amor dos outros, em que incarnou o que era o Outro absoluto, para ser tudo em todos. "Deste lado da Ressurreição" é uma Peregrinação Interior" - diria o nosso António Alçada Baptista - contada com um pudor manso e secreto: entre a gravidade e a graça, sentimos, misteriosamente, como Bernanos, que "tudo é graça". Os vislumbres de amores humanos são, uns, superficiais e fugitivos, enamoramentos sem mais; mas outros, consubstanciados nas relações familiares, ganham a densidade (que é outra "pesanteur") que o amor, a única virtude intemporal, tem de aguentar do lado de cá do Apocalipse. Lembro-me dessa imagem de S. Tomás de Aquino, aureolado de sabedoria e santidade, mas com o indicador sobre os lábios, impondo à boca o silêncio da contemplação. A história de Santa Thaïs é recolhida das "Vitae Patrum" pelo dominicano genovês Tiago Voragino, que a inclui na sua "Legenda Aurea". Aí, Athanaël chama-se Padre Panúcio que, contrariamente ao monge de Flaubert, se mantém fiel à sua vocação e votos. Mas a versão mais antiga que dela se conhece é em grego do séc. V, em que o nosso monge se chama Serapião. Esta "vida" pode ser facilmente comparada a outra, cuja versão mais antiga, em grego também, data do séc. VII: a de Santa Maria Egipcíaca, cortesã que se converte e vai viver 47 anos no deserto. Esta hagiografia inscreve-se na tradição de Maria Madalena, pecadora arrependida, que data dos primeiros séculos do cristianismo e tem a ver com a conversão pela função salvífica da penitência. Curiosamente, nas histórias de que falamos, à luxúria da carne associa-se a acumulação de riquezas, fruto daquela. Todavia, porque é que a fraqueza carnal será, ao longo da vida bimilenária da Igreja, mais estigmatizada como pecado do que a ganância ou a injustiça social? Haverá algum paganismo nessa demonização de Eros? "O pagão - diz Denis de Rougemont em "O Amor e o Ocidente" na belíssima tradução do saudoso João Bénard da Costa - não podia deixar de fazer de Eros um deus: era o seu poder mais forte, o mais perigoso e o mais misterioso, o mais profundamente ligado ao facto de viver." (Ocorre-me aqui essa definição de Georges Bataille: "L’érotisme c’est l’afirmation de la vie jusque dans la mort"...). E, depois de dizer de Agapé, do amor cristão, que ele é "a afirmação do ser em ato", Rougemont escreve: «Foi Eros, o amor-paixão, o amor pagão, quem espalhou no nosso mundo ocidental o veneno da ascese idealista - tudo o que um Nietzsche injustamente censura ao cristianismo. Foi Eros e não Agapè que glorificou o nosso instinto de morte e quis "idealizá-lo". Mas Agapè vinga-se de Eros salvando-o. Porque Agapè não sabe destruir e não quer destruir nem sequer aquilo que destrói. Não quero a morte do pecador, mas a sua vida».

 

Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 23.11.12 neste blogue.