A SANTA ESPERANÇA
Uma reflexão aprofundada sobre a esperança, deverá começar por aquela tendência para o futuro que caracteriza todo o ser vivo e mesmo toda a realidade cósmica, uma vez que está em evolução, de tal modo que já é e ainda não é adequadamente — por isso, está a caminho.
O cosmos desde a sua origem é em processo (do latim procedo, avançar, ir para diante). A realidade material tem carácter “prodeunte” (do verbo latino prodeo, avançar), para utilizar uma palavra do filósofo Pedro Laín Entralgo, que estou a seguir.
Trata-se de uma propriedade genérica que se vai fazendo proto-estruturação – passagem das partículas elementares às complexas --, molecularização – dos átomos às moléculas --, vitalização – das moléculas aos primeiros seres vivos --, vegetalização, animalização – aparecimento e desenvolvimento da vida quisitiva da zoosfera – e hominização – transformação da tendência geral para o futuro em futurição humana, tanto no indivíduo como na espécie humana e na história, desde o Homo habilis até ao presente.
Nestes modos de existir na orientação do futuro, só quando se chega ao nível do ser vivo, que precisa de buscar para viver, é que se dirá que a tendência para o futuro se configura como espera, podendo chegar a ser esperança. Do nascimento à morte, entre a esperança e o temor, o animal vive permanentemente voltado para o futuro e orientando a sua espera na procura do que precisa para viver.
O animal e o Homem esperam, mas, enquanto a espera animal é instintiva, no quadro dos instintos e de estímulos, situada e fechada, a do Homem transcende os instintos, os estímulos e as situações, sendo, portanto, aberta, de tal modo que nunca se contenta com a realização de cada um dos projectos parciais em que a sua futurição constitutiva se concretiza.
Laín dá um exemplo. Numa “sala de espera” de uma estação de caminho de ferro, não me limito a aguardar a chegada do comboio que traz o meu amigo, pois, mesmo que não tenha consciência explícita disso, espero o que será a minha existência em todo o seu decurso posterior, para lá do reencontro. A espera humana está realmente aberta a possibilidades que transcendem a realização feliz ou frustrada de cada projecto.
Ora, tanto num caso como no outro, tanto na espera do concreto – aqui, a chegada do amigo – como, mesmo que não pense directamente nisso, na espera do que transcende o concreto e limitado – o que será de mim na minha vida depois da chegada do amigo --, são possíveis duas atitudes enquanto tonalidades afectivas: a confiança e a desconfiança.
Devido a uma multiplicidade de factores, do temperamento às circunstâncias biográficas de sorte ou desgraça, passando pela educação, estes dois estados de ânimo – confiança e desconfiança – “podem converter-se em hábito de segunda natureza: a esperança, quando é a confiança que domina, e a desesperança, quando prevalece a desconfiança”.
O Homem, como o animal, não pode não esperar: vive orientado para o futuro e esperando o que projecta, isto é, a consecução de metas e objectivos concretos e também, quer se dê conta disso quer não, o que permanentemente transcende a obtenção dos seus projectos. A esperança tem, pois, dois modos complementares: a esperança do concreto (o hábito de confiar que os projectos parciais se irão realizando bem) e a esperança do fundamental (o hábito de confiar – a confiança não é certeza – em que a realização da existência pessoal será boa).
Esta esperança do fundamental é a “esperança genuína”, que assume dois modos, que não se excluem: a esperança terrena e histórica e a esperança meta-terrena e trans-histórica. Esta é própria dos crentes numa religião que afirma confiadamente a vida para lá da morte em Deus.
Aí encontrará o Homem finalmente, como viu Santo Agostinho, aquela plenitude por que aspira na tensão constitutiva entre a sua radical finitude e a ânsia de Infinito: “o nosso coração está inquieto enquanto não repousar em ti, ó Deus”. “Santa esperança”, dizia Péguy.
O ser humano é constitutivamente esperante. Porque é que os seres humanos, apesar de todos os fracassos, horrores, sofrimentos e cinismos, ainda não desistiram de lutar e de esperar? Porque é que continuamos a ter filhos? Porque é que, depois de terramotos devoradores e de guerras destruidoras, recomeçamos sempre de novo? Perguntava, com razão, o célebre teólogo Johann Baptist Metz: “Porque é que recomeçamos sempre de novo, apesar de todas as lembranças que temos do fracasso e das seduções enganadoras das nossas esperanças? Porque é que sonhamos sempre de novo com uma felicidade futura da liberdade?”, embora saibamos que os mortos não participarão nela? Porque é que não renunciamos à luta pelo Homem novo? Porque é que o Homem se levanta sempre de novo, “numa rebelião impotente”, contra o sofrimento que não pode ser sanado? “Porque é que o Homem institui sempre de novo novas medidas de justiça universal, apesar de saber que a morte as desautoriza outra vez” e que já na geração seguinte de novo a maioria não participará nelas? Donde é que vem ao Homem “o seu poder de resistência contra a apatia e o desespero? Porque é que o Homem se recusa a pactuar com o absurdo, presente na experiência de todo o sofrimento não reparado? Donde é que vem a força da revolta, da rebelião?”
Neste movimento incontível, ilimitado, do combate da esperança, pode ver-se um aceno do Infinito, um sinal de Deus. Como não se cansava de repetir o ateu Ernst Bloch: “Onde há esperança, há religião.”
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 07 de maio de 2022