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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

BIBLIOTECANDO EM TOMAR

  

 

Uma biblioteca é a melhor metáfora do mundo. É um labirinto cujos caminhos se fazem de perguntas e respostas. E há um misterioso fio de Ariadne que nos leva em cada estante, em cada livro, em cada palavra à descoberta dos enigmas que nos permitem vislumbrar os contornos dos sentidos que a humanidade reveste. O meu saudoso amigo António Pinto da França telefonou-me um dia a fazer um desafio para um projeto aliciante, que estava em curso e tinha como epicentro Tomar, com o título quase mágico de “Bibliotecando”. Em duas palavras, falou-me com entusiasmo de professores, alunos e comunidade, que colocavam na relação com os livros a raiz de um diálogo entre as escolas e a vida. Embarquei logo, com gosto, nessa nave que continua a fazer o seu caminho, graças a uma equipa denodada e à reflexão sobre os temas mais atuais e pertinentes. Entretanto, o António partiu, mas nunca esqueci as suas palavras de alegria e a sua lição de vida, tão presentes na sua ação e na sua obra histórica, em que os acontecimentos e a sua compreensão funcionam como um modo de ir ao encontro das culturas enquanto expressão plural da dignidade humana.  Com Agripina Carriço Vieira, António Godinho ou Célio Gonçalo Marques e uma equipa incansável, os anos foram-se sucedendo com os temas e a preocupação de pôr a diversidade, a complexidade e a incerteza no centro das “leituras em diálogo”. No próximo fim-de-semana, terá lugar a 12ª edição do “Bibliotecando em Tomar” e o tema, escolhido, antes que se pudessem adivinhar os desenvolvimentos de uma guerra absurda como a da Ucrânia foi “Presença e Exílio”. E Alberto Manguel lembrou, invocando Dante, como o exílio de Florença constituiu matéria-prima inesgotável para a criação e para a circulação das ideias. A distância aguça o talento, a lembrança dá densidade aos acontecimentos e a memória revela o sentido das existências.


Muitos argumentos podem ser utilizados para demonstrar a importância da leitura e da relação amorosa com os livros, mas nenhum é tão forte como a compreensão da vida pela sua representação e pela narrativa da existência humana. Somos nós que nos encontramos no relato do combate entre Aquiles e Heitor, na rebelião de Antígona, na armadilha de Ulisses ou na viagem de regresso a Ítaca, além da linhagem de Abraão, Isaac e Jacob, da lição de José do Egipto, da libertação de Moisés ou da dúvida de S. Tomé. Aí está a raiz da literatura, projetada no ciclo bretão do rei Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda, na “Divina Comédia”, na “Peregrinação”, em “D. Quixote”, mas também em Camões, Shakespeare, Stendhal, Tolstoi, Dostoievski ou Virgínia Woolf ou Thomas Mann… Jorge Luís Borges falou-nos, assim, das “literaturas que honram as línguas dos homens, as filosofias que procurei penetrar, os entardeceres, os ócios, as solitárias orlas da minha cidade, a minha cidade, a minha estranha vida cuja possível justificação está nestas páginas, os sonhos esquecidos e recuperados, o tempo”… O “Bibliotecando em Tomar”, à sombra da história intensa da cidade, faz-nos reviver a justificação das estranhas vidas, dos sonhos, das interrogações e do indefinível tempo. A pandemia, que nos tolheu, revelou a companhia insubstituível dos livros. A guerra, os refugiados, a violência bárbara apelam à importância da leitura, do entrecruzar das culturas e das suas diferenças, que levam a vermo-nos no olhar dos outros. Este ano o “Bibliotecando” homenageia Lídia Jorge e a sua obra, pela riqueza do testemunho e pelo exemplo da relação entre a literatura e o mundo, entre as pessoas concretas e a sua dignidade. Só compreendendo-nos poderemos partilhar a ética da convicção e a ética da responsabilidade. Uma sociedade melhor depende da misteriosa capacidade para dialogarmos com os mortos e com os vivos, em nome do respeito dos vivos, para entender o futuro como fecunda espera.        

GOM