Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICA DA CULTURA

Por uma Nesga Soberana

  


A Manca era uma mulher amputada. Fora ferida em tempos. Andava numa guerrilha e um dia abriu guerra ao mundo quase todo. Depois colocou-se no melhor ponto de vigia. Nada aconteceu que se visse, mas saiu de lá manca.

A verdade, é que nunca mais ninguém lhe perguntou se, a ela, a vida lhe tinha acenado das planuras agrestes do medir-forças. Ainda assim todos os outros ficavam na penumbra do suposto acontecido. Os outros eram gente a correr, gente bifurcada, gente que jogava o jogo do eventual último jogo do entendimento. Submissos e ainda assim, xaroposos, agitavam os poderes, rindo em gargalhadas sem higiene.

A manca, alcunha de vida, escutava as distâncias, o tango do tempo, o som das culatras de muitas espingardas.

Também naquela tarde a sua memória se reviu nos rostos, nos timbres, no belo amor que abre os braços, nos insensatos labores que recompensam, nas puras noites e nos mares brancos e verdes e turquesas que não permitem a maré baixa ao peito.

Mergulhada na vida e distraída da morte, sem pensar numa escrita que a impedisse da própria perda, escreveu, volteando o ar: eu sou uma promessa antiga.

Quando rompeu a manhã, ainda escrevia: Eu sou o meu transtorno, o meu carimbo, o meu teatro, o meu romance, a noite e o dia a falar horas a fio debaixo de um manto de caramanchão; eu sou a que recebe o beijo em casa e que me desincumbe de mancar e enfim volto ao meu acampamento. Aquele, no qual faço o balanço das baixas e dos danos, aquele que me entende desativada, aquele que me olha como uma desforra e ainda assim dobra-se para me amparar do solo. Aquele que me vê partir na bolha de uma lágrima e espreita a minha surpresa surpreendida face a face ao olhar de um pássaro.

Nem forma, nem nítida face, nem visita, nem assalto, nem daqui, nem dali, afastada apenas de quando em quando de mais uma manhã que nascia, e já a Manca se preparava incauta e atenta a um eventual último passo.

Um dia, um dia colocou num boião alquímico o limite que afinal lhe não pertencia. Uma vez mais divergia e fechava na sua concha as raras e puras pérolas, essas mesmas onde se incumbam os afetos sem “se”.

Essas mesmas que por um olhar amado na clareira de um feriado fazem corar o coração.

Então, sob um céu tão baixo que lhe acenava como uma escada, refletiu que os canteiros também se regam na terra dos mal-entendidos e das rosas colhidas, e não obstante o cansaço, levantou um voo não manco e deu a mão ao cortejo das dúvidas, de novo, por uma nesga soberana.

 

 Teresa Bracinha Vieira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Bumf


“The image of the system’s notions of image clarity, of the image flow and image density - they are all essentially modeled on the parallel (and unimpeded) movements of the logo, the compressed pseudonarrative of the TV commercial, product slogan, the sound bite. Images are still everywhere telling stories and issuing orders. Web pages, billboards, and video games are just visualizations - magnifications and speed-ups - of this prior and continuing world of the shouted or whispered sentence.” T. J. Clark In Modernism, Postmodernism, and Steam


Num mundo inundado de formas virtuais e visuais que continuamente e instantaneamente contam histórias e dão ordens, estas fotografias da artista Joana Bastos (1979), presentes na exposição Bumf (Rua Poço dos Negros, 69) trazem a solução necessária para nos desembaraçar de imagens que contêm mensagens inerentes que nos influenciam e nos prendem imensamente.


Temos uma propensão para acreditar sempre numa imagem, numa fotografia, porque é tão verosímil que é impossível não tomá-la em consideração.


A fotografia da Joana Bastos deixa-nos esta ideia de que a falsidade é fascinante. Uma fotografia nunca revela a verdade e por isso muitas vezes leva-nos a querer coisas impossíveis, a sonhar com o irrealizável, a ter expectativas intoleráveis.


Joana Bastos fotografa-se a si própria como uma verdadeira contorcionista. Somos imediatamente levados a acreditar que todas estas acrobacias são possíveis. Prontamente essas imagens tornam-se referência.


Joana Bastos talvez tente dizer isso, que a imagem fragmento é sempre um engano, porque as fotografias nunca contam tudo e não podemos ficar presos a elas porque nunca dizem respeito à verdade pura. Haverá sempre imagens que contam histórias incríveis, que têm mensagens que põe tudo em questão, e que impõem metas impossíveis. Bastos traz a chave para que não nos deixemos enganar por imagens petrificadas que impedem de originar outras imagens e que passam a condicionar e a aprisionar o nosso olhar sobre o mundo.


Mas não nos podemos esquecer, que o tema abordado por Joana Bastos confirma a propensão pós-modernista de que o artista já não é um herói, que nos liberta todos os sofrimentos da vida. A arte perde aqui qualquer vontade de poder. Bastos oferece perspicazmente o fragmento, o inexplicado e o incompleto. O inautêntico é aqui celebrado. O verdadeiro eu não existe, e tal como em Cindy Sherman, está revestido de uma falsa identidade - a super mulher que consegue fazer tudo, até colocar-se em posições impossíveis, intoleráveis e insuportáveis. As fotografias de Bastos materializam assim com humor a apropriação de certas imagens que nos chegam através dos meios de comunicação social e através da sua contorção fragmentada, cria uma ilusão que nos maravilha.

 

“I grew to love the livestyle,

not the life.

(…)

I wen to yoga, t’ai chi,

feng shui, therapy, colonic irrigation.

(…)

As for me,

I went my own sweet way,

saw Rome in a day,

spun gold from hay,

had a facelift,

had my breasts enlarged,

my buttocks tightened,

went to China, Thailand, Africa,

return enlightened.

 

Turned forty, celibate,

teetotal, vegan,

Buddhist, forty-one.

Went blonde,

redhead, brunette,

went native, ape,

berserk, bananas;

went on the run, alone;

went home.”

Carol Ann Duffy, Mrs Faust

 

Ana Ruepp

NA FORÇA DA PALAVRA: TRABALHO E FÉRIAS

  

 

Lembro-me bem da senhora Isilda, uma mulher muito bonita e viva, que, já com 91 anos, um dia me esclareceu no café quanto ao baptismo. Segundo ela, baptiza-se as crianças pequeninas, para receberem o Espírito Santo, que é mais forte do que Jesus, e que é o Espírito falador: é ele que dá às crianças a capacidade divina para falar.


À sua maneira, a senhora Isilda tinha consciência do milagre que é falar. Quem algum dia reflectiu sobre isso - a capacidade de falar: proferir sons articulados que transportam sentido - falando, dizemo-nos a nós próprios, damos ordens, fazemos declarações de amor, e ódio também, ensinamos, contamos anedotas, fazemos paralisar uma pessoa, erguemos alguém caído, dirigimo-nos ao Infinito -, não pode deixar de cair no assombro interrogativo. Um corpo humano, pelo simples facto de falar, nunca deixará de constituir um enigma e mesmo um milagre pura e simplesmente. Aristóteles definiu o Homem como “animal que fala”.


E as palavras não são arbitrárias. Vejamos quanto aos temas do título desta crónica.


Embora em Portugal já se note que há quem não quer trabalhar, encostando-se ao Estado, o que é facto é que temos de trabalhar. A vida foi-nos dada, é um dom, mas, depois, precisamos de, numa bela e exigente expressão, ganhar a vida, e isso significa trabalhar. Mas lá está: trabalhar é duro, como diz o étimo da palavra trabalho: tripalium era um instrumento de tortura. Sem trabalho, não há vida, e trabalhar em conjunto, colaborando (laborare + cum); penso nisso, logo ao pequeno almoço: quem semeou, quem cultivou, quem colheu, quem transportou o que eu como?…); viajo em autoestradas (desgraçadamente, até com buracos!) e não fui eu quem as construiu, num carro que veio donde e quem o montou e com peças que vieram donde e com saber feito ao longo de séculos...; e escrevo num computador...; e aprendi numa escola e em universidades e com professores… Mas é construindo o mundo que nos fazemos… E, por isso, vamos realizando uma obra: em inglês, trabalhar diz-se to work (o étimo é érgon, donde deriva no alemão a palavra Werk, com o significado precisamente de obra, e dizemos: “as obras completas” de alguém...


Em breve, temos férias. Ora, cá está: a palavra latina feria, no plural feriae, tinha o sentido de "descanso, repouso, paz, dias de festa". No século III, a Igreja assumiu os dias da semana como dias de "comemoração festiva", enumerando-os como feria prima, feria secunda, tertia, quarta, quinta, sexta, ou, invertendo a ordem das palavras: prima feria, secunda feria, tertia feria, quarta feria, quinta feria, sexta feria. Daí, ao contrário de outras línguas, como o espanhol, o italiano, o francês, etc., que adoptaram a classificação romana baseada na divinização de um planeta: Lunes, Martes, Lundi, Mardi, etc., o português, ao seguir a designação eclesiástica, ter dado origem aos dias da semana como: segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, etc. Que feira enquanto mercado esteja igualmente associada a feria deriva do facto de os comerciantes aproveitarem os dias festivos para vender as suas mercadorias.


De qualquer modo, o importante é sublinhar, até do ponto de vista histórico e etimológico, o carácter festivo associado às férias. Isso é tanto mais significativo quanto isso mesmo está presente noutras línguas, que seguiram caminhos etimológicos diferentes. Assim, em espanhol férias diz-se vacaciones e em francês vacances. Ora, vacaciones e vacances têm o seu étimo no latim vacatio, com o significado de isenção, dispensa de serviço. Os ingleses em férias dizem que estão on holidays, em dias santos. Os alemães, esses têm Ferien ou Urlaub. Ora, a raiz de Urlaub é Erlaubnis, com o sentido de dias livres de serviço e trabalho.


É necesssário sublinhar que a Bíblia fez questão de dizer que Deus deu um mandamento de um dia feriado semanal, santo, sem trabalho, para que a pessoa fizesse a experiência de que não é uma besta de carga, mas um ser festivo. Tem de trabalhar -  e duro -, mas não é besta de carga.


Afinal, se pensarmos bem, as férias não têm como finalidade última ser um intervalo no trabalho para repor as forças, em ordem a trabalhar outra vez e mais. As férias têm o seu fim em si mesmas: a experiência de que o ser humano é um ser festivo. É preciso ler e escrever poesia, dançar, apanhar sol na praia, no campo, na montanha, ouvir música, que nos remete para origens imemoriais e para a transcendência utópica toda. É preciso reaprender a ver o sol a nascer no Oriente e a pôr-se no Ocidente e a exaltar-se com a lua enorme -- cheia -- ou pequenina que nem um fio, e com o alfobre das estrelas: isso que na cidade não se vê. É preciso voltar às alegrias simples: contemplar uma simples folha de erva, acolher o perfume de uma rosa sem porquê, como dizia Angelus Silesius, exaltar-se com o mistério de um rosto humano. É preciso ter tempo para ouvir o silêncio: haverá milagre maior do que estarmos cá? Se se for fora, encontrar-se com culturas outras e diferentes modos de ser ser humano: como americano, asiático,  africano e, de modo mais concreto, chinês, ugandês, mexicano (nestes tempos de gobalização, que Deus nos livre da uniformidade!). É preciso ter tempo para a família e para os amigos. Para andar solto. Para dialogar com o Infinito. Para contemplar e criar beleza: não é ela que redime o mundo, como disse Dostoievski?

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 25 de junho de 2022

A VIDA DOS LIVROS

  

De 27 de junho a 3 de julho de 2022.


«O Concerto Interior – Evocações de Um Poeta», de António Osório (Assírio e Alvim, 2012) reafirma um grande artífice da palavra que continua bem presente na cultura portuguesa.


O AMOR VOTADO ÀS PALAVRAS
«O amor que votavas às palavras, sabias introduzi-las, setas vibrantes num alvo. Usavas a toga com dignidade: escolhias sempre o melhor lado, o menos frágil dos litigantes. Ad vocatus, o que é chamado em auxílio, isso realmente foste. Incapaz de cobrar dinheiro por uma consulta. Meu pai enfurecia-se quando se tratava – altura embaraçosa – de apresentarem conta aos clientes: arranjavas sempre um pretexto para sair. Era a tua premeditação de respeitar os outros, na entrega complacente que merecem e, justamente, esperam de nós, que vestimos à semelhança dos padres e conhecemos, melhor que eles, os jogos lacerantes dos interesses e o curso desvendado das paixões». Nesta dedicatória ao tio Henrique, o poeta António Osório confessa a essência da sua escrita e do seu ofício. Um serviço, uma entrega, uma fidelidade – eis o que um mundo de palavras revela e ao mesmo tempo esconde. Quando lemos esse texto, percebemos que a oficina das palavras do autor de Ignorância da Morte começou por ser a do avô, escrivão da Boa Hora. “A clareza equilíbrio de um oleiro cingido às leis, boas e más do seu barro” constitui a matriz que articula os dois mundos que António Osório procura ligar e distinguir, mas que se completam necessariamente. Inventários, questionários, especificações, mapas de partilhas, mas “em poesia não há causa que se possa ganhar, nem transação a fazer consigo mesmo”.


IGNORÂNCIA DA MORTE
Como afirma Eduardo Lourenço, “a temática central da poesia de António Osório, a da ignorância da morte, graça ou prémio duramente concedido aos que vencem ‘a guerra do tempo’, não ignorando-a, mas fazendo-se semelhantes à criança anterior à morte que todos fomos”. E assim, o ensaísta salienta “o poeta do amor incarnado, sensualizado até à alma”. O amor, a morte e a vida entrelaçam-se. Sem ceder à tentação do rio do esquecimento, torna presentes, “sob a morte e a ruína, (…) a vida e a casa que nela se desfazem”. E Vasco Graça Moura salientou, e bem, como “primeira singularidade da poesia de António Osório”, a vivência de uma “poesia em que a questionação do real decorre da sua própria e plena afirmação”. Uma ilustração? Indubitavelmente “Aldeia de Irmãos”, onde se encontram todos os ingredientes que estão na sua oficina de oleiro: “Ao pé dos eucaliptos, / do lavadouro, as casas. / Capela fechada, oficiantes ratos, / e cães, patos, galos / na rua e a dormir dentro, individuais sub-reptícios. // E doentes, cavadores, crianças / sonhando com ninhos destruídos. / Longe, na paróquia o cemitério. // Em torno vinhas, olivais / irmãos uns dos outros / como tijolos dentro da parede. / E no inverno o canto / da lenha exorbitando na lareira, / a queimar, a queimar a cinza por debaixo”. A realidade e uma ponta de humor, a dura existência humana contraditória, a natureza e o fraterno calor de um encontro. “A teu lado estou / sorrindo a chamar-te, / espero que regresses a casa, / ansiosamente corro para a porta”. Eis, num “in memoriam”, a chave do sentido poético. A memória supera limites e permite compreender como a realidade é bem mais rica do que o presente palpável.  «O ofício de advogado levou-me a ser discreto como poeta. As pessoas preferem, naturalmente, bons profissionais do foro a excelentes poetas» - confessou-se assim a Ana Marques Gastão em entrevista ao DN (24.3.2001). A pequena frase diz-nos tudo sobre o que foi. Exímio cultor do seu ofício, viveu a poesia como respirava o ar que nos faz existir. E a sua exemplar poesia foi o modo de exprimir a riqueza do espírito. Com orgulho lembro-o como meu Bastonário, exemplo numa profissão tão vulnerável e exigente. E não me cansarei de dizer que, como advogado, foi dos melhores e que a sua memória tem de ser muito lembrada – pelo saber, pelo espírito de justiça, pela compreensão do Direito e da lei como sinais de humanidade e da dignidade do ser.


LONGAS CONVERSAS… 
Em longas conversas inesquecíveis, recordava a sua infância, com mãe italiana e pai português: “todos os dias, minha mãe lia-me os seus livros cuidadosamente arrumados”. “Ilíada” e “Odisseia”, sempre em italiano. A seguir passou para Dante. “Explicava-me aquelas estâncias, contava-me as histórias florentinas, as perseguições que sofrera esse poeta que não era herói inferior a Ulisses…”. Do pai, ouvia os Contos e as Histórias Maravilhosas da tradição popular, recolhidas pela tia Ana de Castro Osório. E a belíssima toada florentina era completada pela melhor língua portuguesa – Camões, Cesário Verde, Camilo Pessanha. E devo a essas charlas, ditadas pela amizade a invocação circunstanciada, com emoção especial, das raízes familiares. Ele, ainda menino, chorando inconsolável a derrota de Heitor perante Aquiles; a presença do tio Henrique; Maria Valupi e a “Felicidade da Pintura” com Miguel Ângelo Lupi; o exemplo de Ana de Castro Osório, cidadã corajosa e pioneira, que permitiu a revelação de Camilo Pessanha e da “Clepsydra” (que, sem ela, teriam ficado no esquecimento); as afinidades eletivas da Arrábida e de Setúbal dos nossos avós, que me recordou logo que nos conhecemos. “Aqui, junto a estas árvores / cresceste como a sua melhor sombra, / a mais alta, solícita” (como disse de Sebastião da Gama. Um dia fui em peregrinação ao túmulo de seu avô, aos pés de San Miniato al Monte, na mágica Florença, cidade natal de sua mãe. Nunca esquecerei tão intensas lembranças de quem “gostaria de ser visto como alguém que encontrou as suas raízes primordiais na Grécia, emigrou para a Sicília quando da Magna Grécia, sente por Roma uma funda admiração, e pertence a uma geração de uma tradição cultural mediterrânica e atlântica, universalista, que abarca o italiano, o francês, o espanhol e o português”. E o universalismo era uma marca muito séria. E encontramos ecos de Bashô e da espiritualidade oriental. “Não sigo o caminho dos antigos, busco o que eles buscaram”. Era emocionante um encontro com o poeta, que preferia o puro culto da amizade e da memória, como na lembrança de seu pai (e de sua mãe): “Assim te amo agora sem lágrimas, / Que deste modo teus netos / um dia se recordem de mim, / na tua, minha e deles pura ignorância da morte”. De facto, nunca ignorou que a poesia é sempre um mistério e uma aproximação ao sagrado, como aliás a música. Daí a relação com a morte, como luta contra a obscuridade. E os mortos, na sua memória querida, ajudam na procura de outra serenidade, como modo de purificação. Assim, João Gaspar Simões leu o poeta “com uma efusão de alívio, o alívio que se sente quando, num quarto muito abafado, alguém abre de súbito uma janela”. E Eugénio Lisboa, leitor atento e premonitório de A. Osório, salienta a surpresa da absoluta claridade, da frescura primordial e da objetividade de Cesário. E assim se entende que “Com os anos / a pouco e pouco / a raiz afetuosa / penetrou / no fundo da terra / até chegar / ao mais pequeno / e mais antigo / veio de lágrimas”.

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

NOS 120 ANOS DE JOSÉ RÉGIO

  

 

Novamente retomamos a dramaturgia de José Régio, numa evocação dos 120 anos do seu nascimento, ocorrido em 1901. Morre em 1969 e não podemos hoje ignorar a relevância da criação e análise da sua obra dramatúrgica, no contexto de uma vastíssima e relevantíssima inovação, na época menos considerada mas hoje merecendo evocações específicas.


Tal como já amplamente analisámos, a dramaturgia de Régio merece destaque, não obstante a maior relevância, essa sempre evocada, de outras expressões criacionais que marcam hoje a literatura. E no entanto, o teatro de José Régio não pode nem deve ser esquecido. Em 1930 publicou na Presença uma versão parcial da sua considerada primeira peça, “Jacob e o Anjo”, que depois viria a considerar a sua primeira e definitiva criação teatral. Será oportuno insistir na dramaticidade da sua obra vasta e completa, não obstante, repete-se, a variedade, diversidade e qualidade criacional. E importa então outras intervenções criativas no teatro que não completou ou não evocou.


Mas citamos hoje novamente um longo texto doutrinário que Régio publicou em 1967 em “Três Ensaios Sobre Arte”, precisamente intitulado “Vista sobre o Teatro”.


Escreveu então José Régio:
“Fantasiemos um momento: a admitirmos a trindade autor dramático, ator e encenador – três pessoas distinta e uma só verdadeira – diríamos que a essa tal única verdadeira caberia a autoridade do espetáculo teatral. Não passando isto de fantasia, que visa a lucidamente sugerir o nosso sentimento levado a extremo, regressemos à realidade: esse pensamento teatral de que se tenta uma realização no palco, essa ideia central, ou teia de ideias, em redor da qual é preciso criar uma espécie de personalidade coletiva realizadora; essa intenção profunda, em foco, esse unitário que sustenta o espetáculo – não é ilusoriamente que desde sempre os atribui o bom senso comum ao autor dramático, criador do texto”.


E esta doutrina regiana merece destaque!...

 

DUARTE IVO CRUZ

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE ANTÓNIO FRANCO ALEXANDRE

  


Vi Roma a arder

Vi Roma a arder, e neros vários
bronzeados à luz da califórnia
guardar em naftalina nos armários
timidamente, a lira babilónia;
as capitais da terra, uma a uma,
desfeitas em nuvem e negra espuma,
atingidas de noite no seu centro;
mas nunca vi paris contigo dentro.
E falta-me esta imagem para ter
inteiro o álbum que me coube em sorte
como um cinema onde passava «a morte»;
solene imperador, abrindo o manto
onde ocultei a cólera e o pranto,
falta-me ver paris contigo dentro.


I saw Rome burning

I saw Rome burning, and several neros
tanned by the californian light
timidly stashing away in closets
mothballs and babylonian lyres;
the world's capitals, one by one,
darkened into froth and cloud,
crushed in their core at night;
but i never saw paris with you inside.
And this is the missing image
in my fate-allotted photo album
like a cinema showing certain ‘death’;
solemn emperor, opening the shroud
in which I hid my anger and my plight,
I’ve yet to see paris with you inside.


© Translated by Ana Hudson, 2013
in Poems from the Portuguese

 

ANTOLOGIA


O INÍCIO DE UMA NOVA ERA
por Camilo Martins de Oliveira


Frei Tiago Voragino conclui o seu sermão sobre a Natividade do Senhor - de acordo com o texto incluído na Legenda Aurea - com o comentário sobre a utilidade dessa manifestação de Deus, depois de ter comentado, como vimos, o maravilhoso do acontecimento e o modo múltiplo, cósmico, como este se manifestou. "Ela vale, antes de mais, porque confunde os demónios: o inimigo já não pode prevaler-se do poder que tinha antes desse nascimento". Como ilustração, refere episódios sucedidos em mosteiros clunicenses, onde o virtuoso comportamento e a disciplina dos monges afugenta o diabo, que ali procurava instalar-se. A mensagem é clara: o Natal de Jesus marca o início de uma nova era na história da humanidade, que pode enfim libertar-se do pecado e das suas servidões. "Em segundo lugar, esta manifestação é útil para a obtenção do perdão. Lemos num livro de exemplos que uma mulher de má vida, que regressara enfim à sua consciência, desesperava do seu perdão; pensando no Juízo, considerava-se culpada; pensando no inferno, estimava-se merecedora de ali ser torturada; pensando no paraíso, estimava-se impura; pensando na Paixão, considerava-se ingrata. Mas, tendo ideia de que as crianças se deixam facilmente enternecer, rezou a Cristo pelo nome da sua infância e teve a graça de ouvir uma voz que lhe concedia o perdão".  O que Frei Tiago diz é que o Cristo infante é já o Cristo da Paixão, Aquele que padeceu, com infinita simpatia, o pecado do homem, para que com Ele ressuscitasse Homem Novo. "A terceira utilidade toca na cura dos nossos males. Diz S. Bernardo: "O género humano sofria de três doenças, ao princípio, no meio e no fim, isto é, no seu nascimento, na sua vida, na sua morte... ... O seu nascimento (de Cristo) purificou o nosso, a sua vida ordenou a nossa, e a sua morte destruiu a nossa". E continua Voragino: "A quarta utilidade dessa manifestação consiste na humilhação do orgulho. Por isso Agostinho diz que "a humildade do Filho de Deus, que a mostrou na incarnação, foi para nós um exemplo, um sacramento e um remédio. Ofereceu um exemplo muito apropriado, imitável pelo homem; um alto sacramento, capaz de nos livrar das amarras do pecado; e um remédio poderosíssimo, capaz de curar o abcesso do nosso orgulho"...  E Frei Tiago conclui: "A sua humildade desencadeou-se pelos homens, para serviço e salvação deles, até eles, por um modo de nascer análogo ao deles; e acima deles, por um modo de nascer diferente. Pois o seu nascimento foi, por um lado, análogo ao nosso: nasceu de uma mulher e saiu pela mesma porta de filiação. Por outro lado, o seu nascimento foi diferente: nasceu do Espírito Santo e da Virgem Maria". Que atualidade têm estas reflexões sobre a lição do Natal, feitas na segunda metade do século XIII? Num tempo que foi, quiçá, até ao Iluminismo do século XVIII, o período de maior cosmopolitismo de ideias na Europa, pois procurou reunir, analisar e comparar, as heranças bíblicas e patrísticas, gregas e romanas, árabes e das tradições "bárbaras" e populares que permaneceram, assentes em variados suportes, desde a queda do império romano até ao advento da sociedade urbana, pré-industrial, comercial e universitária da Europa pré-renascentista. Fala-se aí do poder do demónio, do pecado como negação, e da humildade como força de redenção e esperança. Ora bem: essa do demónio - ou dos demónios que habitam os homens e Shakespeare tão intensamente evocaria, três séculos depois da "Legenda" - não é uma ideia originalmente cristã, pois que a ideia do mal e seus agentes é tão velha como a humanidade e a consciência; a ideia de pecado como culpa própria ou fatídica de ofensa ou omissão, já estava nos temores literários anteriores a gregos, troianos e hebreus; como também não é exclusiva a ideia cristã de que se pode sempre fazer diferente, mais e melhor. E também será claro, para quem pense e procure tentar o bem - para os de boa vontade, sejam crentes ou não - que só a humildade nos pode levar ao reconhecimento do outro, ao diálogo e à construção da justiça e da paz. E o que é ser humilde? Não é, certamente, aceitar com recalcamento o jugo que nos é imposto, nem, por outro lado, considerarmo-nos acima do direito dos outros. Da lição da Natividade de Jesus, que vimos acompanhando, ressalta o exemplo de ter-se o próprio Deus feito igual aos homens... Por ser Deus com os homens é Deus sempre, e acompanha-nos no esforço de construção de uma sociedade mais justa e anunciadora de paz. As igrejas cristãs - católica incluída - talvez tenham insistido demais no pecado como culpa individual, concentrando-o, ainda por cima, sobretudo na transgressão de normas de comportamento sexual e de outras fraquezas da carne. Mas não será pecado maior aquele que ofende o Espírito Santo, isto é, a estupidez de se pretender o igual de Deus no juízo dos homens? O mandamento primeiro e maior é o do amor: o que fizeres a cada um destes pequeninos, a mim o fazes; antes de apresentares a tua oferta no altar, reconcilia-te com teu irmão.  Justiça e paz.


Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 04.01.13 neste blogue.

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


111. DO DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO AO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL (II)


A “vexata quaestio” da existência ou não do Direito Penal Internacional (DPI) e da criação de instâncias jurídicas internacionais para punir os seus infratores, coloca a questão de saber se, para além ou sobre os Estados há um adequado e efetivo direito, a esse nível, nomeadamente, por um lado, se há ou não crimes de direito internacional, e, por outro, se há ou não órgãos e instituições que possam punir os agentes desses delitos, sejam eles Estados ou pessoas singulares. 


Após os julgamentos de Nuremberga e de Tóquio, fixaram-se regras quanto à responsabilidade individual de pessoas por crimes de guerra e contra a humanidade, sem nunca ter havido responsabilização criminal de nenhum dos Estados envolvidos em guerras de agressão e violação do chamado direito internacional de guerra ou humanitário. 


Em relação à existência de um TPI com competência para julgar em matéria criminal, não houve consenso quanto à sua criação, desde logo pelo facto de os Estados serem acérrimos defensores da sua soberania, dificultando a aceitação de um órgão internacional que se lhe sobreponha.   


O que não inviabilizou a criação do TPI, cuja legitimidade foi sancionada por uma maioria de mais de 60% dos Estados das Nações Unidas, com a Europa e o Ocidente em maior percentagem e a Ásia, continente mais populoso, a menor.  


Sucede que os cinco Estados mais populosos do mundo (China, Índia, EUA, Indonésia e Paquistão) e grandes potências como os EU, China, Índia e Rússia, não aderiram ao Estatuto de Roma, não vinculando os seus nacionais à jurisdição do TPI, permanecendo este sem competência para julgar Estados. Apenas a tem, com as limitações aludidas, para indivíduos por crimes de guerra, genocídio, contra a humanidade e de agressão. Em paralelo ao que acontece com o veto dos cinco “Grandes” do Conselho de Segurança da ONU, em que sobressai a regra de que quem tem mais força e poder não fica sujeito a uma jurisdição internacional tida como lesiva dos seus interesses políticos e soberanos, dado ter como adquirido ter necessidade de se envolver frequentemente em guerras em que têm como não cumpríveis as normas do DIH, aplicadas e julgadas pelo DPI. 


Trata-se de uma “Justiça” em que casos similares são tratados de modo diferente, dura com os fracos e branda com os fortes, não perseguindo nem julgando os mais poderosos. O que é agudizado pelo facto de a maior potência, de génese democrática, se recusar a participar no TPI e a aceitar a jurisdição penal internacional sobre os seus cidadãos.  Critérios díspares que prejudicam a sua imagem de primazia, com reflexos, por exemplo, quanto aos alegados crimes de guerra na Ucrânia. Também a Rússia e a Ucrânia não ratificaram o Estatuto de Roma do TPI, não sendo parte deste. Nem se perspetiva permissão no CS da ONU para a criação de tribunais especiais para os crimes de guerra, ou outros, perpetrados na Ucrânia, pelos vetos da Rússia e China.  


Pode ser fácil racionalizar as coisas durante a guerra por patriotismo e coisas do género, dizer que o vencedor será sempre o mais forte e o vencido o mais fraco, que no que diz respeito ao tribunal é uma questão meramente política, mas há que lutar por um DHI e um DPI universal com a mesma eficácia e modelo que há, no mínimo, dentro de cada Estado de Direito.        

 

24.07.22
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

CONTO II - ANTE-VISÃO

  

 

Sentia receio deste envelhecer que lhe acontecia.

Via as datas como se ainda não tivessem tido até àquele momento qualquer realidade.

Se chegasse ao ano 2000 que idade teria? Como organizaria o seu quotidiano se fosse viva? E olhava-se ao espelho, admirada, e a querer compreender que o que via, a deveria ajudar a situar-se em relação ao tempo.

Também se espantava com as crianças a brincar nos parques infantis por sentir tão longe de si essa verdade.

O envelhecer ultrapassava a sua imaginação.

E olhava para a mãe, e achava-a sem idade. Aqueles olhos dela, aquele sorriso tolerante quando a visitava e que bem dizia que, pois, agora o tempo era pouco para tanto viver, ela também já fora assim. E, penteava-lhe o cabelo macio, daquela vez e da outra.

Às vezes, num estado de indolência agradável, mesclava memórias entre eixos que se interseccionavam e, todavia, não a esclareciam no tempo e no espaço que vivera.

Igualmente constatava que a idade lhe trazia um habitat do «eu» cheio das presenças dos seres ausentes.

Era uma nova forma de solidão que descobria ao confrontar destino no presente e no passado.

A passagem do tempo dava-se dentro e fora de si, e tinha medo de se perder nas múltiplas facetas da realidade que é preciso agarrar, pois tudo a conduzira ao dia de hoje.

Experimentava acima de tudo um vigoroso repúdio face à hipótese de suportar novas dores.

Um imenso cansaço atordoava-a de quando em vez, e a morte com deus morto, perdera a crença na companhia.

Mas sim, a velhice era emprego certo de contrato atípico.

Bem intuía agora, que antes de desaparecer para sempre, teria de fazer frente ao fim de um medo que adivinhava traiçoeiro, esse mesmo que já não lhe deixaria memória.

 

 

Teresa Bracinha Vieira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


O significado do vapor à luz do modernismo.

 

“Não sinto o espaço que encerro.
Nem as linhas que projeto:
Se me olho a um espelho, erro -
Não me acho no que projeto.”, Mário de Sá-Carneiro em Dispersão, 1913


No texto “Modernism, Postmodernism, and Steam”, T. J. Clark escreve que o vapor pode ser comparado à busca pela abstração, pela redução e pela desmaterialização que se deu, na arte, desde meados do séc. XIX. O vapor é o desejo incerto de entrega ao momento, ao acontecimento e à pura possibilidade. É pura criação humana.


Para T. J. Clark o modernismo é isso mesmo, é um esvaziamento, uma evanescência, uma dispersão, um maravilhoso celestial.


O vapor, nos anos do modernismo, é uma forte imagem de poder - o vapor pode ser sempre aproveitado e pode ser comprimido. O vapor foi o primeiro elemento que tornou o mundo mais rápido. Foi a compressão dos gases que criou a voragem imparável e irreversível da máquina - que desse modo se tornou mais veloz do que qualquer animal ou ser humano. O vapor é assim, aquilo que fica entre a natureza e o ser humano.


Vapor, para T. J. Clark, é possibilidade, mas também simultaneamente nostalgia e futuro.


No texto lê-se que muitas vezes, nas pinturas de De Chirico, uma nuvem de vapor é vislumbrada entre as colunas de uma arcada vazia. Esses rastos de vapor na vastidão das paisagens de De Chirico talvez signifiquem o sonho da modernidade a espalhar-se até aos confins da terra. Mas, para T. J. Clark, o sucesso da modernidade e a vitória da máquina sobre a natureza, em De Chirico, foi sempre assombrada pela ideia de que a utopia e as infinitas possibilidades, poderiam acabar a qualquer momento. Por isso o vapor é igualmente memória, ilusão, melancolia e devastação. Na verdade, foi isso que se verificou na Grande Guerra de 14-18, a máquina e o seu vapor tiveram um duplo efeito frente ao ser humano - a sua inteira exaltação gera a sua total destruição.


Para T. J. Clark, o vapor, na pintura Le chemin de fer de Manet, é instabilidade permanente, transformação constante, velocidade incessante, movimento imparável, dispersão total, formas impalpáveis que entram dentro do tecido da vida de cada ser. Mário de Sá-Carneiro, no poema Dispersão, explica essa perda de si, esse desvanecimento, esse ser alguém que passou e que já não é (o vapor e a máquina são isso mesmo):


“Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida…”


O vapor é sempre algo que passa e que não fica. É algo que foi e que já não é. É uma evanescência perdida, é algo que se segue mas que não permanece, é uma flutuação informe e incerta que nos cega, é uma difusão que penetra vagarosamente e que pode sufocar. É forma que ainda está para vir, é vislumbre de liberdade e de imaginação, é anonimato, é limite, é constrangimento.


T. J. Clark entende o modernismo como sendo uma forma de arte profundamente sintonizada com certos factos e possibilidades da vida moderna e que se estabelece a partir da força do vapor. Os modernistas colocam ênfase particular nos factos físicos e técnicos do material trabalhado. As composições modernistas dividem o mundo em partes. São elementos dispersos que formam o todo, ao ponto de o tornarem até vazio. Os objetos criados são assim verdadeiras máquinas, pré-fabricadas que impõe a sua artificialidade e monotonia. O excesso de ordem, que algumas criações transmitem, interage com o excesso de uniformidade, regularidade e constrangimento.

 

Ana Ruepp

Pág. 1/4