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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Éric Rohmer é incapaz de trabalhar sobre o eterno.


No texto Architecture d’Apocalypse, que Éric Rohmer escreveu para a revista Cahiers du cinéma, em 1955, lê-se que a arquitetura (ao contrário da pintura, da música e da literatura) não pode nunca deixar de responder ao seu destino principal e às necessidades que lhe dão origem - servir e proteger - em todos os lugares e para sempre: “Elle est bien un art, toutefois, puis qu’elle n’a pas oublié non plus sa prétention à satisfaire notre amour du beau.” (Rohmer 2010, 70)


As obras que a arquitetura produz são, na sua génese, muito diferentes daquelas produzidas pelo pintor, pelo poeta ou pelo músico. O pintor, o poeta e o músico produzem como que um espelho do mundo, tão distorcido quanto se quer. As produções concebidas pelo arquiteto fazem parte integrante do próprio mundo e estão entre todas as outras coisas. O arquiteto, aos olhos de Rohmer, não refaz a natureza, mas enriquece-a com uma nova ordem equilibrada e simples, com novos elementos belos e úteis e também com um renovado olhar: “Par œuvre architecturale, j’entends, non pas le monument «en soi», offert dans un écrin à l’appétit du touriste, mais tout l’ensemble des «arts décoratifs», toute la masse des objets usuels, dans la mesure où ils se flattent de ressortir à l’esthétique. Ainsi la carrosserie d’une automobile, le tracé d’une rue entrent bien plus sous ma rubrique que telle colonne commémorative.” (Rohmer 2010, 71)


O cinema, para Rohmer, também constrói a sua ficção com a própria realidade. É uma nova organização do que já existe e promove um tipo de contemplação sem nostalgia, nem qualquer tipo de posse - apesar de alterar a nossa relação com a natureza, porque o ato de fotografar ou de filmar altera certamente proporções e distorce a escala.


Para Rohmer, as grandes e intermináveis planícies, as cadeias montanhosas e o infinito do mar só produzem em nós todo o seu efeito se houver alguma adição humana. Por isso, para Rohmer, a perfeita harmonia está na simultaneidade e na coincidência da natureza com o trabalho humano. Essa harmonia imperfeita é a verdadeira porta de entrada para a compreensão da autêntica ordem divina. A genuína arquitetura também manifesta em si o desejo de encontrar o eterno, o divino e o intemporal através da sua incompletude e da sua falha. A visão arquitetónica da vida é uma visão para sempre imperfeita, provisória e temporal.


Rohmer pensa que a vida perfeita e completa não é tema para nenhuma narrativa. O infortúnio e o tédio, esse sim deve ser a matéria primeira da arte, deve ser a sua principal substância.


Rohmer escreve que uma grande esperança nasceu com o advento da arquitetura moderna - a esperança por um mundo novo feito na extensão do nosso prazer e da nossa sede pela liberdade. Mas Rohmer considera que o arquiteto que começa do ‘zero’ e que que rompe com todas as tradições, se esquece que todas as formas e motivos que nos rodeiam foram moldados por um longo trabalho de várias gerações e por muitos anos de uso, inspirados também pelos lugares que nos circundam. Os novos materiais permitem sim mais e novas possibilidades mas as novas criações da ciência e da tecnologia pertencem a uma espécie diferente daquela a que pertencem os produtos que vêm da terra. As novas criações podem tornar-se em criações monstruosas e por isso cabe-nos a nós amaciar, aclimatar e moldar as formas à imagem daquilo que nos rodeia. Para Rohmer, a verdadeira forma é sempre orgânica e é sempre conformada pela natureza.


“Être modernes: oui. Encore faut-il que nos constructions actuelles fassent bon ménage avec les anciennes. Être modernes: bien sûr. Mais ce goût que nos contemporains éprouvent pour le passé, n’est-il pas un fait spécifiquement moderne?” (Rohmer 2010, 77)


Ser moderno, para Rohmer, passa por abraçar a tecnologia, mas passa também, certamente por olhar para o passado e aprender com aquilo que está para trás de nós. Rohmer chega mesmo a dizer que se o nosso amor pelo passado terminasse, quantas fábricas fechariam as portas e quantos hotéis estariam à espera em vão por turistas! Naturalmente, em todos nós existe uma curiosidade pela coisa antiga e pela história - talvez por uma qualquer aversão à esterilidade ou talvez como prova da nossa incapacidade em estar completamente satisfeito com o nosso próprio tempo.


Rohmer acredita que o mal dos arquitetos modernos talvez assente num grande equívoco que alguns filósofos defendem, ao afirmarem que a ordem é o princípio básico para que o belo se estabeleça - e essa ordem a que se referem está sempre relacionada com uniformidade e não com diversidade. A natureza, sem dúvida, ensina-nos que, pelo contrário, a ordem está na variedade e não na monotonia. Rohmer não defende como antídoto o culto desesperado pela diferença. Rohmer defende como solução a norma clássica. Na sua opinião a regra clássica é a única capaz de suportar a particularidade, a exceção e o individual.


Foi através do amor pelo cinema que Rohmer chegou ao seu interesse pela arquitetura e pelo mundo que o rodeia. É da própria vida e da natureza crua que o cinema deve ser composto e por isso só o ato de filmar, entre todas as artes, deve ser capaz de ser o verdadeiro reflexo do seu próprio tempo.


Rohmer escreve que infelizmente a nossa admiração pela arte depende de uma visão e de uma crença desmedida de que o espírito humano terá um progresso ilimitado rumo à perfeição infinita. Rohmer é incapaz de trabalhar sobre o eterno. Rohmer prefere perder-se na visão de um mundo finito e incompleto no tempo e no espaço, um mundo onde cada particularidade conta e contribui para o funcionamento de um conjunto, de um ciclo.


Nada é mais pobre do que a ideia de repetição perpétua ou a ideia de uma pretensa perfeição encontrada ou ainda a ideia do constante e do propositadamente diferente. Rohmer acredita ser muito mais emocionante a finitude das nossas criações ao serem constantemente incompletas e superadas pelas próximas. Rohmer finalmente acredita que não é impossível ser clássico e moderno em simultâneo - ao amar-se o seu próprio tempo abre-se sempre a possibilidade de unir o passado e o presente através do espaço.

 

Ana Ruepp