CRÓNICA DA CULTURA
Quem testemunhara as primícias da doença?
Só se sabia que alguém ao aproximar-se sentira a iminência do vigor da morte.
Sabe-se também que uniu as letras e dali fugiu num passo aflitivo.
Ante o que vira, estranhava agora, o fato de estar vivo, e ainda que de rosto no chão, a desfalecer, sabia que não tinha sido infetado, assim lhe diziam as seguras palavras antigas do conhecimento: era imune.
Os novos vírus enfurecidos, abraçavam primeiro as cidades, antes de correrem aldeias e mundo em abraços de nó cego.
A área da epidemiologia esclareceu, que eles, os novos vírus, não se deixavam aprisionar, e que as criaturas nunca se moveriam mais rápidas do que eles, ou elas mesmas, não fossem as portadoras-ninho, onde eles, de vontade, se aninhavam.
Intrigante achado este, o de saber que as criaturas eram em si os vírus, apesar de amáveis e muitas vezes afáveis até em extremos.
Deste modo, todos eram testemunhas em causa própria das primícias da doença. Todos temiam o inevitável contato consigo mesmos.
Machos ou fêmeas, malditos cães e cadelas, uivavam, quem cuidará de mim? Escravos, eunucos, quem cumprirá as nossas ordens?, perguntavam os cientistas. E assim bradavam contra vivos e mortos que se negavam a servi-los, enquanto nos vírus deles próprios, um furor letal.
Às vezes, soube-se, as criaturas paravam e olhavam-se de olhos revirados, soltos, sem noção verdadeira da extensão da catástrofe, e iniciavam uma marcha em todas as direções, ignorantes de que tinham a doença no abraço a si, e que deles próprios, não saberiam o como iniciar uma debandada das ruas, das casas e dos próprios hospitais onde trabalhavam.
Amontoavam-se os cadáveres insepultos. O pânico impunha as condições.
Algumas criaturas voaram nos seus próprios aviões, numa fuga que incandescia de imediato e desaparecia sugada pelos buracos negros, enquanto outros ponderavam rezar, fazer quarentenas, peregrinar, e a coberto do caos, negociar a vida.
Esta era a doença na sua primeira erupção.
Foi quando se começaram a declarar casos isolados de criaturas de grau de infecciosidade mais baixo, que, enfim, se descobriu o imune, de rosto no chão, quase arrebatado de entre os mortos, e era o tal que unira as letras.
Inexplicável facto, este, de entre todos, imune.
De entre todos, a esperança. E nunca a sua responsabilidade fora maior: assim pensou, ainda de rastos a ler no chão.
Mas qual o matiz da diferença? Qual o motor que nele não ignorou o dever de resistência e de interpretação? Seria esta uma desigualdade natural? Sem pertencer a grupo, e era imune?
E fora, afinal, o estado de conhecimento que o fizera unir as letras em completude.
A vacina, um dia, nas cores de Sandro Botticelli.
Era noite. Só era de noite, e a minha falta de ar empurrava a cadeira de rodas na teima que me obedecesse.
Teresa Bracinha Vieira