BABEL, PENTECOSTES E UMA ÉTICA GLOBAL
1. Fazemo-nos e construímo-nos uns aos outros; desfazemo-nos e destruímo-nos uns aos outros. Lá está o mito da Torre de Babel, um mito que transporta uma verdade fundamental e dá que pensar, como escreveu o filósofo Paul Ricoeur. Um dia - está escrito no Génesis - os homens disseram: Construamos uma cidade e uma Torre cujo ápice penetre nos céus. A Bíblia vê neste projecto uma iniciativa de arrogância e orgulho insensatos, aquela hybris - desmesura -, que os gregos também condenavam, porque arrastava consigo a maldição e a catástrofe. No meio da arrogância e da desmesura, os seres humanos, em vez de se compreenderem, guerreiam-se e matam-se na barbárie.
A tragédia repete-se constantemente. Quando, por exemplo, um ditador brutal, ignorando o Direito Internacional e as Nações Unidas, invade um país independente com uma guerra de terror, aí está uma Babel, num mundo perigoso, com horrores e catástrofes à vista.
Em toda a sua História, talvez nunca a Humanidade tenha estado numa crise tão grave como aquela que já se vive e se aproxima. Quando se pensa na “globalização da rapina”, segundo a expressão do antigo chanceler alemão Helmut Schmidt, e na globalização das armas de destruição massiva -- quem vai impedir armas nucleares e outras à venda por aí? -, é preciso tomar consciência da ameaça de convulsões em cadeia e inclusivamente da morte global. A revolução a caminho é a dos pobres e humilhados, que nada têm a perder.
2. O que se contrapõe, segundo a Bíblia, à Torre de Babel e à sua ameaça, é o Pentecostes, que a Igreja celebra. Nesse dia, lê-se também na Bíblia, no livro dos Actos dos Apóstolos, quando se percebeu que o que tem de unir os seres humanos é a justiça, o amor, a solidariedade, a fraternidade, o respeito pela igualdade na diferença e pela diferença na igualdade, todos - partos, medos e elamitas, habitantes da Mesopotâmea, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e da Líbia, romanos, cretenses, árabes, homens de todas as nações que há debaixo do céu -- voltaram a encontrar-se e entenderam-se...
3. Afundados no meio desta crise inquietante, as religiões têm um papel decisivo a desempenhar e foi com essa consciência que em Setembro de 1993 teve lugar em Chicago o Parlamento das Religiões do Mundo, com a presença de uns 6500 participantes e onde 150 pessoas qualificadas, representando as diferentes religiões e movimentos de tipo religioso do mundo assinaram o Manifesto ou a Declaração Princípios de uma ética mundial.
O texto fora essencialmente preparado por Hans Küng, o famoso teólogo de Tubinga, que nos deixou recentemente. De que se trata? Como escreveu Küng, não se trata de uma duplicação da Declaração dos Direitos Humanos, nem de uma declaração política, nem de uma prédica casuística, nem de um tratado filosófico, nem de uma idealização religiosa ou da busca de uma religião universal unitária. Trata-se de um consenso de base, mínimo, referente a valores vinculantes, a critérios e normas inamovíveis e a atitudes morais fundamentais. Supõe-se que estes mínimos éticos, que assentam na constatação de uma convergência já existente nas tradições religiosas, podem ser assumidos por todos os seres humanos, independentemente da sua relação com a religião.
Neste consenso mínimo de base, a exigência fundamental é: todo o ser humano deve ser tratado humanamente. Porquê? Todo o ser humano, sem distinção de sexo, idade, raça, classe, cor, língua, religião, ideias políticas, condição social, possui uma dignidade inviolável e inalienável.
Por outro lado, para agir de forma verdadeiramente humana, vale, antes de mais, a regra de ouro: Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti (formulada positivamente: Faz aos outros o que queres que te façam a ti). "Esta deveria ser a norma incondicionada, absoluta, para todas as esferas da vida, para a família e as comunidades, para raças, nações e religiões." Esta regra de ouro concretiza-se em quatro directrizes ou orientações antiquíssimas e inalteráveis: comprometimento com uma cultura da não-violência e do respeito pela vida (não matarás: respeita toda a vida); comprometimento com uma cultura da solidariedade e com uma ordem económica justa (não roubarás: age com justiça); comprometimento com uma cultura da tolerância e uma vida vivida com veracidade (não mentirás: fala e age com verdade); comprometimento com uma cultura da igualdade de direitos e com uma irmandade entre homem e mulher (não prostituirás nem te prostituirás: respeitai-vos e amai-vos mutuamente). No espírito de uma declaração de ética mundial, não se deu entrada a questões morais discutidas em todas as religiões e nações, como a contracepção, o aborto, a eutanásia.
Trata-se de uma Declaração assinada por "pessoas religiosas", que têm a convicção de que "o mundo empírico dado não é a realidade e a verdade última, suprema", que, portanto, fundamentam o seu viver numa Realidade Última e dela extraem, em atitude de confiança, na oração e na meditação, na palavra e no silêncio, a sua força espiritual e a sua esperança. Na presente crise de valores, "estamos convencidos de que são precisamente as religiões que, apesar de todos os abusos e frequentes fracassos históricos, podem assumir a responsabilidade de que as esperanças, objectivos, ideais e critérios de que a Humanidade precisa para a convivência na paz sejam mantidos, fundamentados e vividos".
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 4 de junho de 2022