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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ANTOLOGIA

  


TRÊS OBRAS SINGULARES

por Camilo Martins de Oliveira


A quinta categoria das criaturas, aquela que está acima das outras por possuir o intelecto, isto é, conhecerem Deus, de Quem são mensageiras, são os anjos. A manifestação da Natividade pelos anjos é anunciadora: no momento da conceção por Maria, ou na chamada feita aos pastores. Mas é também uma proclamação, na terra e nos céus: "Glória a Deus nas alturas, paz na terra aos homens de boa vontade!" - cantam anjos feitos de luz, entoando cânticos de júbilo...Na homilia de Frei Tiago Voragino, as cinco ordens de manifestações do Natal do Senhor, que fomos acompanhando, preenchem o comentário mais extenso dos três que o dominicano faz nessa ocasião: "Note-se que o nascimento de Cristo chegou de modo maravilhoso, manifestou-se de modo múltiplo, e demonstrou-se útil". Vejamos então o modo maravilhoso do acontecimento e a utilidade deste. O modo maravilhoso advém da mãe, do menino dela nascido, e de como este foi gerado: a mãe era virgem antes de dar à luz e virgem permaneceu; o menino que então nasceu" reuniu na mesma pessoa, como diz S. Bernardo, o eterno, o antigo e o novo. O eterno é a divindade, o antigo é a carne transmitida desde Adão, o novo é uma alma criada de novo. Além disso, como Bernardo diz: "Nesse dia, Deus realizou três misturas, três obras tão maravilhosamente singulares, que nada semelhante nunca fora feito nem jamais o será. Trata-se da conjunção de Deus e do homem, da mãe e da virgem, da fé e do coração humano..." E o modo como esse menino foi gerado é maravilhoso porque, diz o Voragino,"o livramento ultrapassou a natureza, posto que uma virgem concebeu. Ultrapassou a razão, pois foi Deus que ela engendrou. Ultrapassou a condição humana, visto que deu à luz sem dor. Ultrapassou as normas, porque concebeu pelo Espírito Santo: a Virgem, com efeito, não engendrou a partir da semente humana, mas a partir de um sopro místico. Pois o Espírito Santo tomou o que de mais puro e casto havia no sangue da Virgem para com isso formar um corpo. E assim manifestou Deus uma quarta maneira de criar o homem. Assim o diz Sto. Anselmo: "Deus pode criar o homem de quatro maneiras: sem homem nem mulher, como o fez para Adão; pelo homem sem mulher, como o fez para Eva; pelo o homem e a mulher, segundo o modo comum; e pela mulher sem o homem, como milagrosamente se fez neste dia."O que acabámos de ler não é o relato factual e literal de realidades sensorialmente apreensíveis. É a narração de um acontecimento que, pela sua natureza inefável, divina, só intuiremos pela sua ilustração. Traduzir-nos o invisível, é procurar essa conjunção da fé e do coração humano, sabendo que ainda não podemos ver mas apenas acreditar no que não vemos. As narrativas bíblicas, a literatura patrística, a própria tradição popular da revelação são eminentemente significantes de realidades e verdades ontológicas que as criaturas humanas que somos - e não possuem a tal quinta qualidade, a do intelecto, que só os anjos têm - não podem ainda ver... A revelação cristã é uma promessa feita na e pela história dos homens. A fé é uma resposta a essa promessa com outra: a da fidelidade ao que ainda não vemos mas esperamos ver um dia plenamente. No séc. XIII, um frade dominicano, depois arcebispo de Génova, dedicou trinta anos a reunir e traduzir, para contemporâneos e vindouros, lendas, narrativas, comentários e lições de antanho. Meditou sobre esses textos, e deles extraiu conceitos e pistas que os abrissem a uma nova contemplação da condição humana e do seu destino. Não insistiu em superstições e medos, antes procurou dar ânimo ao necessário afrontamento do mistério e do infinito depois dele. Do Natal tirou ainda mais umas lições, como proximamente veremos.

 

Camilo Martins de Oliveira