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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICA DA CULTURA

Conto I - SÓ EU ME FALTAVA A MIM

  

 

Casar era a única solução

porque era como se se deixasse para trás tudo o que vivia a sacrifício dos sonhos.

Casar era a possibilidade de se mudar para uma perspetiva

e poderia ser ainda

a força de um comboio que fugiria como um louco da vida sem viagem.

Na televisão, os filmes não condenavam os beijos de verão, auspícios de bodas.

Na televisão, os filmes não sofriam daquela indignação moral que proibia as religiosas de amarem como as bailarinas.

Assim, quando se jogava a petanca, apurava-se a certeza de que bastava perder-se a ingenuidade, se se entendesse, de uma vez, que os pais a desejavam mesmo era casada; bem entregue a quem não lhe levantasse a mão.

Levantar a mão, não. Isso não. Os bens nascidos sabiam que isso era muito feio e os filhos futuros ficariam traumatizados, se vissem.

Assim, casar, fora a única solução, apesar de já sentir cansaço no desejo de agradar sob a bolha de uma outra impotência e ainda

ouviu um dia: tu vê lá o que me fazes! não existem divórcios na nossa família. Não me dês esse desgosto, essa vergonha, mata-me!

A sensação de que atras dela um livro se escrevia sozinho fê-la pensar que agora a vida deveria ser

como apanhar uma dose de boleia da televisão a cores e não adormecer com a mira técnica em fundo.

E não adormeceu.

Agora começava a nascer-lhe uma nova espécie de desejo; o de pensar em si, fora do casal e da família.

O Maio de 68 continuava nas origens.

Agora a terra seca cheirava inequivocamente a tomilho.

Sentara-se à beira do riacho, naquela aldeia que tratava por tu as dores do dar à luz no desbulhar do milho e sem queixa, já que ainda por ali assim era e

o tempo dos filhos devia substituir o tempo dos mortos: a seco e nada mais. E tudo tão parecido com a sua família, afinal.

E a sensação eufórica

de que conseguiria chegar até onde o livro que tinha nas mãos lhe propusera.

Quanto desejo de aprender e realizar coisas novas

está? Ouves-me? Sim, o barulho é da taberna de onde te telefono. Ouves-me? Claro que tenho comigo a esferográfica. Estou aí domingo. Em qual? Ainda não sei.

À medida que a sua memória se despia da humilhação do até então não verbalizado, o presente era cada vez mais um campo de agir:

o inverno interminável entrara pela esferográfica e saía agora papel fora numa entrevista à vida

 

àquela mesma da qual perdera enfim

 

o medo de largar tudo antes que tolerasse

 

Teresa Bracinha Vieira