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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


O significado do vapor à luz do modernismo.

 

“Não sinto o espaço que encerro.
Nem as linhas que projeto:
Se me olho a um espelho, erro -
Não me acho no que projeto.”, Mário de Sá-Carneiro em Dispersão, 1913


No texto “Modernism, Postmodernism, and Steam”, T. J. Clark escreve que o vapor pode ser comparado à busca pela abstração, pela redução e pela desmaterialização que se deu, na arte, desde meados do séc. XIX. O vapor é o desejo incerto de entrega ao momento, ao acontecimento e à pura possibilidade. É pura criação humana.


Para T. J. Clark o modernismo é isso mesmo, é um esvaziamento, uma evanescência, uma dispersão, um maravilhoso celestial.


O vapor, nos anos do modernismo, é uma forte imagem de poder - o vapor pode ser sempre aproveitado e pode ser comprimido. O vapor foi o primeiro elemento que tornou o mundo mais rápido. Foi a compressão dos gases que criou a voragem imparável e irreversível da máquina - que desse modo se tornou mais veloz do que qualquer animal ou ser humano. O vapor é assim, aquilo que fica entre a natureza e o ser humano.


Vapor, para T. J. Clark, é possibilidade, mas também simultaneamente nostalgia e futuro.


No texto lê-se que muitas vezes, nas pinturas de De Chirico, uma nuvem de vapor é vislumbrada entre as colunas de uma arcada vazia. Esses rastos de vapor na vastidão das paisagens de De Chirico talvez signifiquem o sonho da modernidade a espalhar-se até aos confins da terra. Mas, para T. J. Clark, o sucesso da modernidade e a vitória da máquina sobre a natureza, em De Chirico, foi sempre assombrada pela ideia de que a utopia e as infinitas possibilidades, poderiam acabar a qualquer momento. Por isso o vapor é igualmente memória, ilusão, melancolia e devastação. Na verdade, foi isso que se verificou na Grande Guerra de 14-18, a máquina e o seu vapor tiveram um duplo efeito frente ao ser humano - a sua inteira exaltação gera a sua total destruição.


Para T. J. Clark, o vapor, na pintura Le chemin de fer de Manet, é instabilidade permanente, transformação constante, velocidade incessante, movimento imparável, dispersão total, formas impalpáveis que entram dentro do tecido da vida de cada ser. Mário de Sá-Carneiro, no poema Dispersão, explica essa perda de si, esse desvanecimento, esse ser alguém que passou e que já não é (o vapor e a máquina são isso mesmo):


“Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida…”


O vapor é sempre algo que passa e que não fica. É algo que foi e que já não é. É uma evanescência perdida, é algo que se segue mas que não permanece, é uma flutuação informe e incerta que nos cega, é uma difusão que penetra vagarosamente e que pode sufocar. É forma que ainda está para vir, é vislumbre de liberdade e de imaginação, é anonimato, é limite, é constrangimento.


T. J. Clark entende o modernismo como sendo uma forma de arte profundamente sintonizada com certos factos e possibilidades da vida moderna e que se estabelece a partir da força do vapor. Os modernistas colocam ênfase particular nos factos físicos e técnicos do material trabalhado. As composições modernistas dividem o mundo em partes. São elementos dispersos que formam o todo, ao ponto de o tornarem até vazio. Os objetos criados são assim verdadeiras máquinas, pré-fabricadas que impõe a sua artificialidade e monotonia. O excesso de ordem, que algumas criações transmitem, interage com o excesso de uniformidade, regularidade e constrangimento.

 

Ana Ruepp