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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ANTOLOGIA


O INÍCIO DE UMA NOVA ERA
por Camilo Martins de Oliveira


Frei Tiago Voragino conclui o seu sermão sobre a Natividade do Senhor - de acordo com o texto incluído na Legenda Aurea - com o comentário sobre a utilidade dessa manifestação de Deus, depois de ter comentado, como vimos, o maravilhoso do acontecimento e o modo múltiplo, cósmico, como este se manifestou. "Ela vale, antes de mais, porque confunde os demónios: o inimigo já não pode prevaler-se do poder que tinha antes desse nascimento". Como ilustração, refere episódios sucedidos em mosteiros clunicenses, onde o virtuoso comportamento e a disciplina dos monges afugenta o diabo, que ali procurava instalar-se. A mensagem é clara: o Natal de Jesus marca o início de uma nova era na história da humanidade, que pode enfim libertar-se do pecado e das suas servidões. "Em segundo lugar, esta manifestação é útil para a obtenção do perdão. Lemos num livro de exemplos que uma mulher de má vida, que regressara enfim à sua consciência, desesperava do seu perdão; pensando no Juízo, considerava-se culpada; pensando no inferno, estimava-se merecedora de ali ser torturada; pensando no paraíso, estimava-se impura; pensando na Paixão, considerava-se ingrata. Mas, tendo ideia de que as crianças se deixam facilmente enternecer, rezou a Cristo pelo nome da sua infância e teve a graça de ouvir uma voz que lhe concedia o perdão".  O que Frei Tiago diz é que o Cristo infante é já o Cristo da Paixão, Aquele que padeceu, com infinita simpatia, o pecado do homem, para que com Ele ressuscitasse Homem Novo. "A terceira utilidade toca na cura dos nossos males. Diz S. Bernardo: "O género humano sofria de três doenças, ao princípio, no meio e no fim, isto é, no seu nascimento, na sua vida, na sua morte... ... O seu nascimento (de Cristo) purificou o nosso, a sua vida ordenou a nossa, e a sua morte destruiu a nossa". E continua Voragino: "A quarta utilidade dessa manifestação consiste na humilhação do orgulho. Por isso Agostinho diz que "a humildade do Filho de Deus, que a mostrou na incarnação, foi para nós um exemplo, um sacramento e um remédio. Ofereceu um exemplo muito apropriado, imitável pelo homem; um alto sacramento, capaz de nos livrar das amarras do pecado; e um remédio poderosíssimo, capaz de curar o abcesso do nosso orgulho"...  E Frei Tiago conclui: "A sua humildade desencadeou-se pelos homens, para serviço e salvação deles, até eles, por um modo de nascer análogo ao deles; e acima deles, por um modo de nascer diferente. Pois o seu nascimento foi, por um lado, análogo ao nosso: nasceu de uma mulher e saiu pela mesma porta de filiação. Por outro lado, o seu nascimento foi diferente: nasceu do Espírito Santo e da Virgem Maria". Que atualidade têm estas reflexões sobre a lição do Natal, feitas na segunda metade do século XIII? Num tempo que foi, quiçá, até ao Iluminismo do século XVIII, o período de maior cosmopolitismo de ideias na Europa, pois procurou reunir, analisar e comparar, as heranças bíblicas e patrísticas, gregas e romanas, árabes e das tradições "bárbaras" e populares que permaneceram, assentes em variados suportes, desde a queda do império romano até ao advento da sociedade urbana, pré-industrial, comercial e universitária da Europa pré-renascentista. Fala-se aí do poder do demónio, do pecado como negação, e da humildade como força de redenção e esperança. Ora bem: essa do demónio - ou dos demónios que habitam os homens e Shakespeare tão intensamente evocaria, três séculos depois da "Legenda" - não é uma ideia originalmente cristã, pois que a ideia do mal e seus agentes é tão velha como a humanidade e a consciência; a ideia de pecado como culpa própria ou fatídica de ofensa ou omissão, já estava nos temores literários anteriores a gregos, troianos e hebreus; como também não é exclusiva a ideia cristã de que se pode sempre fazer diferente, mais e melhor. E também será claro, para quem pense e procure tentar o bem - para os de boa vontade, sejam crentes ou não - que só a humildade nos pode levar ao reconhecimento do outro, ao diálogo e à construção da justiça e da paz. E o que é ser humilde? Não é, certamente, aceitar com recalcamento o jugo que nos é imposto, nem, por outro lado, considerarmo-nos acima do direito dos outros. Da lição da Natividade de Jesus, que vimos acompanhando, ressalta o exemplo de ter-se o próprio Deus feito igual aos homens... Por ser Deus com os homens é Deus sempre, e acompanha-nos no esforço de construção de uma sociedade mais justa e anunciadora de paz. As igrejas cristãs - católica incluída - talvez tenham insistido demais no pecado como culpa individual, concentrando-o, ainda por cima, sobretudo na transgressão de normas de comportamento sexual e de outras fraquezas da carne. Mas não será pecado maior aquele que ofende o Espírito Santo, isto é, a estupidez de se pretender o igual de Deus no juízo dos homens? O mandamento primeiro e maior é o do amor: o que fizeres a cada um destes pequeninos, a mim o fazes; antes de apresentares a tua oferta no altar, reconcilia-te com teu irmão.  Justiça e paz.


Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 04.01.13 neste blogue.