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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

O TIVOLI E OUTROS TEATROS E ESPETÁCULOS DE RAUL LINO

  


Já aqui referimos e analisámos o Teatro e Cinema Tivoli numa dupla perspetiva de edifício construído para cineteatro e sala de concertos, mas também no ponto de vista estético e da coerência artística, técnica e doutrinário de Raul Lino, autor do projeto e gestor artístico do Teatro, de 1924 a 1931. Evocamos o próprio arquiteto, num texto coligido por Diogo Lino Pimentel e publicado no passado num volume evocativo da Exposição Retrospetiva da Fundação Calouste Gulbenkian (outubro/novembro de 1970).


Escreveu então Raul Lino, a propósito do Tivoli:


“Levou mais de quatro anos a construir (…) era grande a vontade de fazer alguma coisa de original na decoração interna e cheguei a propor uma decoração que principalmente consistia em grandes ramalhetes de cerâmica policromada de estilo moderno e cores muito vivas (…) mas não consegui convencer o meu bom amigo (Frederico Lima Mayer): no entanto este pediu-me que me quisesse incumbir de organizar os seus programas, o que fiz durante sete anos” (cfr. “Tivoli - Memórias da Avenida”, coordenação de Duarte de Lima Mayer e João Monteiro Rodrigues, ed. Building Ideas, CM e Arquivo Municipal de Lisboa e Centro Nacional de Cultura - 2016).


E no texto aqui publicado referi a valência cultural do Tivoli como cinema, como teatro e como sala de concertos e de ópera, e isto, desde as chamadas Terças-Feiras Clássicas, às sucessivas temporadas de espetáculo teatral e musical, que aliás marcaram uma modernidade absolutamente notável em épocas sucessivas.


E basta lembrar que no Tivoli, em 1925, António Ferro lançou a companhia denominada Teatro Novo, efetivamente a primeira iniciativa experimental da história moderna do teatro português.


Ora, é caso para dizer, no respeitante ao teatro português, o Tivoli marcou uma coerência de modernização, em décadas sucessivas. Vocacionado para a apresentação de espetáculos vindos do exterior torna-se no entanto relevante evocar iniciativas de verdadeira renovação de companhias portuguesas; citamos então o Teatro Experimental de Cascais dirigido por Carlos Avilez, o Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra dirigido por Paulo Quintela, ou o Grupo 4 e mais espetáculos que acertavam este registo de modernização/renovação.


Isto, no que se refere a artistas portugueses. Porque, no que respeita a temporadas ou espetáculos vindos de outros meios, pelo palco do Tivoli passaram a Royal Shakespeare Festival Company com Barbara Jeford e Ralph Richardson, ou o Pirakon Theatron de Atenas, este em cooperação com a Fundação Calouste Gulbenkian.


E ainda as chamadas Galas Karsenty-Herber e outras companhias vindas de França, que levaram à cena peças de Montherlant, Peter Brook, Anouilh, Noel Simon, Ariano Suassuna ou Abélio Pereira de Almeida.  


E no que se refere à música? Aí, evocamos concertos em que se apresentaram “ao vivo” artistas com a qualidade e projeção de Stravinsky, Rubinstein, Menuhin, Kempff, ou dos portugueses Viana da Mota, Freitas Branco, Ivo Cruz, Silva Pereira, Frederico de Freitas, Álvaro Cassuto, Tânia Achot e também tantos mais.


No catálogo da Exposição acima referido, enumeram-se os principais espetáculos ou textos dramáticos e bailados em que Raul Lino colaborou como cenógrafo, sendo certo que algumas delas não chegaram a estrear: "Rosas Bravas" de Afonso Lopes Vieira, "Auto de Mofina Mendes", "Fausto" de Júlio Dantas, João de Barros e Manuel Sousa Pinto, "Bailado do Encantamento" de Rui Coelho com coreografia de Almada, "Salomé" de Oscar Wilde, "Milagre" de Veva de Lima, "O Fidalgo Aprendiz", "Orfeu" de Monteverdi, "Pastoral" de Ivo Cruz e Margarida de Abreu - isto quanto a cenários projetados ou executados e para além de largas dezenas de figurinos desenhados para estes e outros espetáculos de ópera e bailado, segundo o Catálogo da Exposição acima referido.


E ainda acrescentamos que Raul Lino é autor do projeto do Cineteatro Curvo Semedo de Montemor-o-Novo e de elementos decorativos do Cinema Palácio de Lisboa. Mas esses serão referidos noutra ocasião.

 

DUARTE IVO CRUZ

Obs: Reposição de texto publicado em 02.09.17 neste blogue.

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE DANIEL JONAS

  


Opacidade


Estúpido outono

a tudo impondo sua ferrugem
como num velho armazém de ferragens
a artrose ganhando dobradiças
e as espirais
a parafusos zonzos.


E estas árvores são também

impossíveis: árvores
como furgonetas com seus toldos
esvoaçantes, rangendo
a grande dor da
mudança.


Estúpidas árvores: cada copa

um enleio de fios,
uma instalação eléctrica pública
de Calcutá, fundindo
o céu, seu
capote puindo.


Ou este outono é só

uma betoneira
regurgitando o seu betão zonzo.
Estúpido outono. E que erro
tomar os meus olhos
por um aterro!


in Os fantasmas inquilinos, 2005


Opaqueness


Stupid autumn

imposing its rust on everything,
arthrosis conquering the hinges
and the spirals from
giddy screws
like in an old hardware warehouse.


And also these trees are

impossible: trees
like vans with their flying
canvas covers, grinding
the great pain
of change.


Stupid trees: each top

an entanglement of wires,
a public electric installation
out of Calcutta, smelting
the sky, fraying
its canopy.


Or this autumn is just

a concrete mixer
regurgitating its dizzy slime.
Stupid autumn. And
what a misconstruction
to take my eyes for
a building plot!


© Translated by Ana Hudson, 2010

in Poems from the Portuguese

 

PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO

  


ZERO - INTRÓITO


O folhetim de agosto de 2022 é como que um “gabinete de curiosidades” tão comum para os nossos antepassados setecentistas. É uma mostra de coisas que merecem porventura atenção, desde que tragam motivos de surpresa. O inspirador é Carlos Drummond de Andrade, como é fácil de perceber e com a adaptação devida. E lembramo-nos do poema estranhamente repetitivo, que não é mais do que uma descrição da vida quotidiana. Contudo, essa vida quotidiana está sempre pronta a trazer-nos algo que nos inquieta e nos surpreende ou desassossega. Há sempre pedras no meio do caminho. Daí o plural propositado que utilizamos no título. Em vez de uma enumeração sistemática de temas como aconteceu nos últimos folhetins, vamos vaguear propositadamente, como se caminhássemos ao lado do célebre guardador de rebanhos – entre episódios, pessoas, anedotas, provérbios, citações, livros perdidos, receitas imaginárias, viagens miríficas, coisas uteis e inúteis, palavras, fantasmas. Em suma, haverá de tudo um pouco, em tempos e circunstâncias diferentes. A título de exemplo, ponho hoje uma ilustração rara de Alain Saint-Ogan (1895-1974) dos anos vinte, como aperitivo. Irei, por isso, ilustrar as prosas com apontamentos antigos.  


O gabinete de curiosidades terá, pois, diversas curiosidades. E cito, como é óbvio, a recordação de Carlos Drummond, para que não fique esquecida!


«No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra


Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra». 



Agostinho de Morais (de regresso)

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


116. MUNDIVISÕES EUROPEIAS E RUSSAS


Qualquer Estado pelo mero facto de ser maior territorialmente, mais forte, ter uma mentalidade imperial e reclamar zonas de influência, não tem o direito de agredir outro, violando o Direito Internacional.    


Após a invasão, indicia-se poder desaparecer a função de estado tampão da Ucrânia para a Rússia. O país agredido quer ficar do lado europeu ocidental. O país agressor quer que fique do lado russo.


Quando há choques geopolíticos importantes, a Europa reage. Com o fim da segunda guerra mundial e o começo da guerra fria, reagiu com a integração europeia e a criação de dois blocos, um a oeste (ocidental) e outro a leste (comunista). Com o fim da guerra fria, reagiu com o alargamento a leste, através da União Europeia e da Nato. E reagiu, agora, com a aplicação de sanções ao invasor e a promessa de adesão da Ucrânia à União Europeia, bem como com ajuda humanitária e militar (esta última maioritariamente dependente dos Estados Unidos), juntamente com aliados de outros continentes: Canadá, Singapura, Coreia do Sul, Taiwan, Japão, Austrália e Nova Zelândia.


Em qualquer caso, a Rússia sempre foi um país com raízes europeias, em termos de cultura e mentalidade, apesar de ser um país euroasiático do ponto de vista geográfico.


Mas o desejo de ter nas relações internacionais um papel digno da sua dimensão territorial e poderio militar, em conjugação com a convicção de ter uma cultura específica suscetível de se universalizar, uma especificidade, excecionalidade e universalidade russa, faz com que tenha uma mentalidade imperial, que tem por justificada em termos históricos e culturalmente.   


Vejamos, numa sucinta síntese, as correntes fundamentais do pensamento filosófico e político russo, incluindo as tidas como subjacentes à atual invasão da Ucrânia.


Desde início do século XIX o pensamento russo divide-se em dois movimentos marcantes e opostos: o ocidentalismo e os eslavofilismo, englobando este os pan-eslavistas e os nacionalistas russos.


Para os ocidentalistas a Rússia, desde Pedro, O Grande, tem a vocação de ser parte integrante da Europa e a obrigação de recuperar o atraso que a distancia do  eurocentrismo ocidental, o que implica o abandono da arbitrariedade imperial, da limitação ou proibição das liberdades e direitos fundamentais, da identidade ortodoxa da igreja russa e do nacionalismo, tendo como representantes Piotr Chaadaev, Aleksandr Herzen e Vissarion Belinski.       


Os eslavófilos consideram a cultura europeia-ocidental decadente, fonte de declínio espiritual e moral, promovendo como ideal um arquétipo nacional que reúne as virtudes de um povo russo essencialmente agrícola, bom, gentil e pacífico, baseado numa visão religiosa do mundo apoiada na fé ortodoxa e na verdade da “via russa”, encontrando em si forças para a modernização, tornando-se um exemplo de referência para o Ocidente. São eslavófilos Alexis Khomiakov, Konstantin Aksakov, Ivan Kireievski, Ivan Aksakov, Mikhail Katkov, Iuri Samarin e Fiodor Dostoiévski.     


Esta visão orgânica, doméstica, idealista e romântica dos primeiros eslavófilos promovia o apoliticismo, em que o czar era tido mais como um pai, que uma autoridade formal. Daí que, entre outros, Khomiakov visse a missão do povo russo na vida suprema do espírito, e não na vida política, impossibilitando associar esta visão inicial a uma política estatal e imperial.


O dualismo entre ocidentalistas e eslavófilos estruturou para sempre o espaço intelectual russo, evoluindo, adaptando-se e reinventando-se, inclusive nas elites culturais e políticas da União Soviética, onde a nível intelectual teve, entre os dissidentes, um Sakharov ocidentalista, em oposição ao eslavófilo Soljenítsin.     


À filosofia especulativa e romântica dos primeiros eslavófilos, sucedeu um sistema filosófico mais positivista de filósofos e pensadores russos de segunda geração, nacionalistas e anti-ocidentalistas, tidos como inspiradores e mentores decisivos da atual política russa que subjaz à invasão da Ucrânia, a que aludiremos no próximo texto.

 

29.07.2022
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

KAFKA 1

  


“CARTA AO PAI”


É como quando uma pessoa tem de subir cinco degraus baixos e outra pessoa apenas um degrau, mas que é tão alto quanto os outros cinco juntos; a primeira pessoa não irá superar os cinco degraus, como ainda mais cem, mais mil, terá levado uma vida longa e muito extenuante, mas nenhum dos degraus que subiu terá tido um tão grande significado como para a segunda pessoa teve o único degrau, o primeiro, enorme, impossível de subir para as suas forças, para o qual não consegue subir e muito menos ultrapassar.

E ainda neste livro afirma Kafka:

Ter-me-ia sentido feliz por te ter como amigo (…), chefe, tio, avô. Só que como pai foste forte de mais para mim (…) tive de aguentar o embate completamente sozinho, sendo eu fraco de mais para isso.

Quantas vezes, o pavor de termos tido na nossa vida, um homem ou uma mulher enormes, severos e de supostas palavras meigas, mas incapazes de um amor bondoso e solto, nos impede de lutar pelos sentires que ansiamos?

De nós quiseram obediência e múltiplos deveres, independentemente da dor que sentimos e sentiremos, de que, para eles, representámos pouco, sempre pouco face ao amor que lhe dedicámos, não obstante a sua tirania abusada sobre nós.

Falo de seres de corporalidade de sentires abafante, castrante mesmo, no modo de uso de nos quererem.

Julgo que esta carta ao pai que Kafka escreveu, pode ser uma carta a qualquer ser que muito amamos, e, em quem depositámos uma confiança ilimitada e nos deu como resposta uma inexpressão concluída.

As absolutas insensibilidades entre pais e filhos, entre maridos e mulheres, entre irmãos, ou entre amigos, surgem, sobretudo, devido à necessidade que têm certas pessoas de utilizar uns sobre os outros.

A carência que estas pessoas têm de utilizar um vexame complacente que é um real poder que ajuíza o mundo dos outros, tem como finalidade a prova de que só exista a espécie de amor deles, e que o agradecimento por tal sentir seja sempre inequívoco sob pena de.

Observar regras, submissões, sentir a perceção total do desamparo, e acreditar que no final só as mães darão mão, é máquina oleada e falsificada.

Depois, depois, não há reconciliação possível. O sentimento de culpa bem manejado, faz carreira de êxito face à incapacidade de se soltarem duvidas.

São afinal gente inimiga do amor, são aqueles que nunca libertam sem negócio.

Muito desesperada se torna a vida quando com estes seres se partilha pão ou cama, sobretudo, se se procura o sentido da família ou um outro distinto amor.

Tardiamente se descobre que os elementos de violência destas gentes, não são, nem foram, inocentes, pois que afinal não queriam que deles escapássemos, já que no seu controlo sobre nós, residia o único modo de quererem a vida.

Pais e esposos e mulheres e irmãos e amigos, também fazem carreira à custa alheia. 

Afinal, quantas vezes, a espécie de sossego chega tarde, muito tarde, num jogo de paciências de interpretação já muito amputada.

Esta “Carta Ao Pai” escrita por Kafka, descreve esferas de influências de sentires onde não faltam provas de que a culpa é um obscuro caminho de mando, que leva a calar coisas difíceis de confessar até no jogo da circunstância.

 

Teresa Bracinha Vieira

 

Obs. Texto revisitado.

A GUARDIÃ DO FOGO

  

 

Ao falarmos de património cultural, a gastronomia corresponde a um domínio sem o qual não se compreende a diversidade da criatividade humana. O património cultural imaterial tem aqui um dos seus paradigmas. E o caso de Maria de Lourdes Modesto e da sua “Cozinha Tradicional Portuguesa” merece especial atenção, uma vez que estamos perante um fenómeno pioneiro e original, típico dos anos cinquenta do século passado e de um meio de comunicação como a televisão desse tempo. Quando Domingos Monteiro decidiu na RTP apostar num programa específico de culinária, compreendeu que se tratava de um campo que deveria ser visto com exclusividade, beneficiando das qualidades intuitivas de uma mulher que soube lidar, de modo extraordinário, desde os idos de 1959, com um instrumento que poucos conheciam e cujas virtualidades soube aproveitar. José Quitério falou, por isso, de uma das cada vez mais raras guardiãs do fogo, numa metáfora de rara felicidade. E essa qualidade de guardiã é essencial, quando falamos de património cultural, que apenas se torna realidade viva quando pode contar com cultores de qualidade.


Foi tarde que em Portugal tivemos livros de cozinha. O mais antigo manuscrito de cozinha em português até hoje conhecido é o da Infanta D. Maria, neta do rei D. Manuel (1538-1577), duquesa de Parma e Piacenza, casada com Alexandre Farnese. Quando partiu de Portugal levou consigo um manuscrito com 73 folhas, encadernado em carneira, conhecido como “Códice da Biblioteca de Nápoles”, que se encontra junto a outros manuscritos da livraria da infanta. O livro reúne 67 receitas, abrangendo manjares de carne, de leite, de ovos e das coisas de conservas, assim como receitas medicinais. Aí encontramos a utilização ainda rara do açúcar, o ouro branco, e a curiosidade da primeira receita de lampreia, a única de peixe, ou da mais antiga de pastéis de leite, que antecipam os pasteis de nata. Mas só em 1680 se imprimiu o primeiro livro de receitas – “A Arte de Cozinha” de Domingos Rodrigues…


Ciente da necessidade de aproveitar o sucesso da televisão, um editor de grande sensibilidade como Fernando Guedes, no início dos tempos áureos da editorial Verbo, fixou em livro as receitas da TV, para responder às muitas perguntas das telespectadoras. E Paula Moura Pinheiro viu bem como essa escrita se tornou indispensável para compreender a cultura portuguesa, ao lado dos textos fundamentais de Orlando Ribeiro. E assim, mais do que os grandes gastrónomos oitocentistas, como João da Matta, Bulhão Pato ou Paulo Plantier e da erudição que os antecedeu, ou do que Berta Rosa Limpo e de seu filho Jorge Brum do Canto, ou ainda das duas amigas que se popularizaram sob o pseudónimo de Isalita – Maria Isabel Campos Henriques e Ângela Telles da Silva, Maria de Lourdes Modesto foi pioneira, a abrir novos caminhos e a criar novos públicos. E tudo começou com uma alcachofra, que se tornou símbolo de audácia renovadora que soube aliar tradição, modernidade e compreensão da vida moderna. Da sociedade rural ao tempo urbano, houve a compreensão da mudança. Se os gastrónomos antigos procuraram seguir hábitos, tradições e práticas multisseculares, o papel pedagógico da televisão permitiu abrir as perspetivas correspondentes a uma nova sociologia. Além da tradição, passou a estar em causa o consumo de qualidade, a prevenção da alimentação saudável (com o apoio de Fernando Pádua) e o património imaterial da gastronomia ligou-se à qualidade e à utilização de matérias-primas acessíveis, sem esquecer as boas tradições. E Maria de Lourdes Modesto marcou pela compreensão do equilíbrio entre criatividade, inovação e respeito pela identidade cultural, atlântica e mediterrânica, pelo diálogo entre o norte e o sul, e por um entendimento da diversidade do melting-pot, minhoto, transmontano, beirão, ribatejano, alentejano e algarvio, sem esquecer as ilhas atlânticas e a compreensão de uma cultura repartida, castiça, cosmopolita, enriquecida pelo achamento de novos mundos.


GOM

FRANCISCO NO CANADÁ EM "PEREGRINAÇÃO DE PENITÊNCIA"

  


1. Não tenho dúvidas em afirmar que Jesus trouxe ao mundo por palavras e obras a melhor notícia que a Humanidade ouviu e viu. Por isso se chama Evangelho, que vem do grego (notícia boa e felicitante): Deus é bom, Pai/Mãe de todos. Jesus morreu para dar testemunho disso: da Verdade e do Amor.


Esta mensagem deu frutos através dos séculos. Cito Antonio Piñero, agnóstico, grande especialista em cristianismo primitivo. Depois de declarar que Jesus afirmou a igualdade de todos enquanto filhos de Deus, escreve que, a partir deste fermento, “se esperava que mais tarde chegasse a igualdade social. Se compararmos o cristianismo com todas as outras religiões do mundo, vemos que essa igualdade substancial de todos é o que tornou possível que com o tempo se chegasse ao Renascimento, à Revolução Francesa, ao Iluminismo e aos direitos humanos. Isto quer dizer: o Evangelho guarda, em potência, a semente dessa igualdade, que não podia ser realidade na sociedade do século I. O cristianismo está, à maneira de fermento, por trás de todos os movimentos igualitários e feministas que houve na História, embora agora não o vejamos claramente, porque o cristianismo evoluiu para humanismo. Mas esse humanismo não se vê em religiões que não sejam cristãs. Ou porventura o budismo, por si, chegou ao Iluminismo? O xintoísmo? O islão? Os poucos movimentos feministas que há nas religiões estão inspirados na cultura ocidental. E a cultura ocidental tem como sustento a cultura cristã. Embora se trate de uma cultura cristã descrida, desclericalizada e agnóstica, culturalmente cristã.” O mesmo dizem muitos outros filósofos e historiadores, incluindo agnósticos e ateus. Não se pode duvidar de que o cristianismo foi e é fermento de bondade, de alegria, de fraternidade, de tomada de consciênicia da dignidade infinita de ser ser humano, de esperança e sentido, Sentido último.


Mas há aquela máxima: “corruptio optimi pessima”, que, infelizmente, também se aplica à Igreja: “a corrupção do melhor é o pior”. Isso acontece quando se esquece o serviço e se procura o poder enquanto domínio. É que o poder é o maior afrodisíaco, disse-o quem sabe: Henry Kissinger. Aí está o clericalismo, a peste da Igreja, como não se cansa de repetir o Papa Francisco. E, aqui, pode ajudar a bela síntese do teólogo José I. González Faus: é fundamental saber que a palavra grega kleros não significa clero, mas sorte, parte de uma herança. É assim que a usa o Novo Testamento referida a todos os cristãos. Quando a Igreja cresceu, precisou de estruturar-se; indo acriticamente ao Antigo Testamento, aplicou aos servidores ecclesiásticos a palavra sacerdote, que o Novo Testamento nunca lhes tinha aplicado, porque é título de grande dignidade que só pode dar-se a Cristo. Deste modo, o ministério ecclesiástico sacralizou-se, revestiu-se de grande dignidade e aplicou-se-lhe em exclusivo a palavra kleros, como se fossem os únicos participantes dessa herança divina. “O clericalismo designa assim uma situação de dignidade e de superioridade, merecedora de todos os privilégios. Boa parte dos dramas de abusos parece ter derivado daqui.”


Então, é preciso percorrer o círculo para voltar à fonte. E aí estão, por exemplo, os que o filósofo Paul Ricoeur chamou “os mestres da suspeita”:  Karl Marx, Nietzsche e Freud. Foi Nietzsche que se apercebeu do perigo de transformar o Evangelho em Disangelho, uma notícia desgraçada, contra o Evangelho, contra a vida.


2. O Papa Francisco estará de 24 a 30 de julho, no Canadá. Numa “peregrinação penitencial”, como ele próprio disse, pois o objectivo, ao percorrer 19.246 quilómetros, é manifestar “indignação e vergonha” e pedir perdão e reconciliação aos povos indígenas: Primeiras Nações, Métis (mestiços), Inuit, pelos horrores sofridos em 139 internatos, as chamadas “escolas residenciais”, ao longo de 150 anos (meados do século XIX até ao final do século XX). Por essas escolas, financiadas pelo governo canadiano, mas geridas pelas Igrejas cristãs, portanto, também por ordens religiosas católicas, passaram 150.000  crianças, que eram tiradas às famílias e  “educadas” e “instruídas” com duras disciplinas e dentro de um plano sistemático de autêntico “genocídio cultural” (não podiam falar a sua língua nem viver segundo a sua cultura e costumes), como mostra o relatório da Comissão para a Verdade e a Reconciliação, constituída pelo Governo e com a participação de indígenas, escutando mais de 7.000 testemunhos de sobreviventes, que relataram os maus tratos e abusos de vária ordem. Umas 6.000 crianças desapareceram e o seu destino poderá ter sido o de valas comuns.


O primeiro-ministro do Canadá, J. Trudeau, falou da situação como “dolorosa lembrança” de um “capítulo vergonhoso da história do nosso país”, e pediu que a Igreja Católica “assuma as susa responsabilidades”. É isso que Francisco quer fazer, correspondendo também à exigência que a citada Comissão fez em 2015: que fosse pessoalmente pedir desculpa.


Observação
. O Papa Francisco é uma bênção para a Igreja e para o mundo. Um dos seus combates mais duros é contra o clericalismo e, para isso, voltou ao Concílio Vaticano II, que é preciso aprofundar, pois muitos dos seus adversários e inimigos “só se lembram do Concílio de Trento”. Em Outubro próximo, celebra-se o sexagésimo, e não o quadragésimo aniversário da sua abertura, como, numa desatenção imperdoável, escrevi no Sábado passado. Peço imensa desculpa.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 23 de julho de 2022

A VIDA DOS LIVROS

  

De 25 a 31 de julho de 2022 


“Alteridade e Transcendência” (Fata Morgana, 1995) de Emmanuel Levinas constitui uma reflexão fundamental na qual a pessoa humana surge no centro da vida. Trata-se do autor do século XX que melhor tratou do tema da importância do rosto na relação humana. A sua leitura permite compreender os grandes dilemas da existência.


«Diz o Povo que o rosto é o espelho da alma. Com os olhos nos olhos entendemo-nos e o carácter demonstra-se na capacidade de nos encararmos frontalmente. Quem foge ao olhar do outro, em boa verdade, foge de si próprio. O outro é, de facto, a nossa natural continuação – a outra metade de nós mesmos. Pelo olhar comunicamos e apercebemo-nos da alegria ou da tristeza, da dúvida ou da certeza, da confiança ou do medo, do pânico ou da indiferença, da atenção ou da dispersão, do conhecimento ou da ignorância, da generosidade ou da ganância, da serenidade ou da perturbação, da violência ou da piedade, do sossego ou do desassossego, da guerra e da paz. E o que é a cultura senão a compreensão da multiplicidade de atitudes, sentimentos e emoções – que o rosto identifica? A razão e o sentimento manifestam-se pela expressão do rosto, mas, como nos ensinou Emmanuel Lévinas, mais de que uma manifestação, do que se trata é da humanidade na responsabilidade para com os outros, que podemos encontrar no diálogo silencioso entre duas pessoas que se encontram através do olhar. A filosofia primeira é uma ética! A palavra grega pessoa, provém de “prosopon”, que significa máscara, ou seja, a identificação pelo rosto da personagem da tragédia helénica. Eis a importância da mais sagrada das marcas do carácter e do “ethos”. O espelho da alma é assim o sinal da dignidade humana. Na pintura, na escultura, nas artes, mas também no canto ou na representação dramática é o rosto a representação da essência da humanidade. Na “Divina Comédia”, no percurso do Inferno, do Purgatório e do Paraíso, Dante é acompanhado  pela bela Beatriz Portinari, na visita das nove esferas celestes do Paraíso – Lua, Mercúrio, Vénus, Sol (símbolo da prudência e do bom uso da teologia), Marte (sinal de coragem), Júpiter (símbolo de justiça), Saturno (da contemplação), Estrelas fixas (da Igreja triunfante), - e é na última esfera do universo físico, que antecede o Empíreo, que se dá o encontro com Deus, como descoberta de um rosto, olhos nos olhos. E quando Beatriz deixa Dante com S. Bernardo, para que a teologia comande, Dante confessa: “não é voo para as minhas asas”… Tal como em S. Paulo, a imagem essencial do supremo encontro faz-se, assim, através do diálogo do rosto. Que melhor expressão? Que melhor descoberta? 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

TEATROS HISTÓRICOS NO BRASIL

  


Nesta sucessão de evocações e descrições de teatros atuais e teatros históricos de tradição cultural e arquitetónica, recorremos em primeiro lugar a um livro de Luis Norton, editado em 1936, sobre “A Corte de Portugal no Brasil”, assim mesmo denominado.


Trata-se efetivamente de um denso e vasto estudo histórico, amplamente fundamentado em numerosos documentos inéditos, designadamente do Arquivo Histórico do Ministério das Relações Exteriores brasileiro, aí incluindo ou complementando-o com vasta correspondência diplomática relativa às negociações do casamento da Arquiduquesa Dona Leopoldina com D. Pedro de Bragança, como bem sabemos futuro Imperador do Brasil e Rei de Portugal.


Para além do interesse histórico-diplomático em si, o estudo evoca e descreve a realidade cultural do Rio de Janeiro na época, vista tanto no ponto de vista de criatividade, como de atividades diversas e ainda pelo património subjacente. E é extremamente interessante, na perspetiva cultural e de infraestrutura, a referência vasta e devidamente documentada aos teatros e espetáculos, bem como da vida da corte e da cidade.


E mais: quando a Família Real ainda se encontrava no Palácio denominado Real Quinta da Boa Vista, o próprio D. Pedro cantou uma área de ópera, dirigido por Marcos Portugal, a quem se deveu a revisão de musica original ali executada para a Corte. Sobre Marcos Portugal esclarece Luis Norton que “o Rei e toda a Família Real apadrinharam o novo maestro que passara a ser um elemento indispensável na orquestração musical da nova Corte brasileira” (pág. 93).


E mais acrescenta que D. Pedro foi ele próprio compositor de mérito, com obras que se destacaram na época e ainda hoje se destacam: cita designadamente “o Te Deum que foi composto para as suas segundas núpcias, uma ópera em português executada em 1832 no Teatro Italiano de Paris, uma sinfonia para grande orquestra, as músicas para o hino constitucional português e para o hino da independência brasileira” (pág. 95).  


No que respeita a teatros-espaços/edifícios, temos no livro de Luís Norton a descrição detalhada dos festejos da aclamação de D. João VI como Rei de Portugal, ocorridos na Corte então sediada no Palácio do Rio de Janeiro, em fevereiro de 1819. E nesse contexto, o autor refere o Real Teatro do Rio de Janeiro, citando e descrevendo um “painel monumental”, em que figurava a Rainha D. Carlota Joaquina.


E transcreve um curioso documento da época, que se refere a D. Carlota Joaquina “com dois génios coroando-a de louro e sustentando outras tantas coroas de louro, quantas são as Augustas Princesas com que Sua Majestade tem esmaltado o Trono português e que fazem hoje as delícias de duas nações poderosas”, assim mesmo! (pág. 79).


A bibliografia sobre este tema é vastíssima.


Acrescente-se ainda que J. Galante de Sousa refere a existência de mais seis teatros no Rio de Janeiro e mais 11 espalhados pelo imenso território brasileiro, isto ao longo da primeira metade do século XIX. (cfr. “O Teatro no Brasil” ed. Ministério da Educação e Cultura” Rio de Janeiro 1960).


E finalmente, remete-se para o vasto estudo sobre a “História do Teatro Brasileiro”, dirigido por João Roberto Faria, e que precisamente assinala e descreve uma vasta atividade de teatro e de teatros, nesta época, e ao longo da vastíssima extensão do Brasil! (ed. SESCSP e Perspetiva - São Paulo 2012).


E muito mais haveria a dizer sobre este tema!

 

DUARTE IVO CRUZ

 

Obs: Reposição de texto publicado em 22.09.18 neste blogue.

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE BERNARDO PINTO DE ALMEIDA

  


Teoria Estética

Se pouso a mão sobre a tua pele,
imediatos acidentes acontecem: flores
brotam, inesperadas, terramotos,
incêndios, talvez revoluções,
vertiginosas mudanças do clima, atrasos
nos horários dos transportes, gente
urgente de beijar-se nas ruas. Isso
já vimos: o explodir solar das coisas
certas, a estrada abrir-se ao coração
de tudo no princípio. Isso é a tua pele,
que a mão apenas pousa sente táctil
de paisagem de carne jamais vistas. Por elas
são os teus olhos que regressam, dois
lagos fundos, dois faróis febris
cortando a noite, por muito que Adorno
tenha dito que a poesia lírica já não cabe
no mundo. Se Adorno, ele mesmo,
tivesse tocado na tua pele, desceria
da funda convicção e pediria aos poetas
que dissessem uma outra vez o mundo
tal qual nela recomeça. Árvores nascendo
do milagre tímido do seu estremecer,
rios que correm da fonte assim
teus olhos se levantam. A imensidão
tangente ao mar quando te moves
lenta, ou hesitas, distraída do teu passo. E
uma lua a erguer-se quando falas,
um pouco mais de noite quando partes. Se
pudesse habitar-te, como no declive
de um monte se erguem casas,
ou junto a uma praia sossegada,
um pescador absorto observa o mar,
se soubesse cingir-te tal o orvalho à flor,
pela manhã, ou ao fruto a mão
de uma criança, eu iria por caminhos
apressados, e fazia de ti o meu país. A
terra prometida onde voltar e onde
erguer com tempo a minha casa. Mas
eu olho. Olho em volta e vejo
que não estás. Tudo era só sonhar-te
e despertar é compreender em mim
abrupta a ilusão da fantasia. Levanto
a mão inconvicta para o lado, à procura
na estante sempre fixa da Teoria
Estética. E folheio-a distraído
no mais lírico desgosto de existir.


in Negócios em Ítaca, 2011


Aesthetic Theory

If my hand touches your skin,
instant accidents happen: unexpected
flowers bloom, earthquakes,
fires, revolutions perhaps,
sudden climate changes, delays
in train times, people
urgently kissing in the streets. We’ve
witnessed it: the solar explosion
of precise things, the road opening to the heart
of all beginnings. This is your skin
where my hand, barely touching
it, will feel unknown landscapes of flesh and
from where your eyes come back, two deep
lakes, two restless headlights slicing
the night, regardless of how often Adorno
may have said that lyrical poetry no longer
befits the world. If Adorno himself
had ever touched your skin, he would have climbed down
from his entrenched conviction and asked poets
to tell, once again, the world
that begins in your skin. Trees grow close
to the timid miracle of its tremor,
rivers run from a spring
as you lift your eyes. An immensity
so like the sea when you slowly move, or
when you hesitate, distracted in your pacing. A
moon rises when you speak, and the night
slightly darkens when you leave. If I could
inhabit you like a house perched
on a mountain slope or like a thoughtful
fisherman watching the sea from a quiet shore,
if I knew how to keep you in the morning, as
the flower keeps the dew, or hold you
as a fruit is held in a child’s hand, I would
set off through the hurried ways and settle
in you as in my homeland. The promised
land to which I could return, and where
at length I’d build my house. But I
look. I look around and see
you are not there. It was only the dream of you
and, waking, I realise the abrupt
illusion of fantasy. I raise
my unconvinced hand towards the ever-
lasting bookcase looking for Aesthetic
Theory. I leaf through it, distractedly,
feeling the most lyrical sorrow of being.


© Translated by Ana Hudson, 2010
in Poems from the Portuguese

 

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