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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO

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XXXI. UMA CHAVE INESPERADA, OU TALVEZ NÃO!

 

É João Abel Manta quem nos ajuda a fechar este folhetim de folhetins, que propositadamente fez um sobrevoo exaustivo sobre as várias leituras (e tantas ficaram por fazer) que a lusitana língua tem para nos dar do lado de cá do Atlântico. É Fernando Pessoa, qual Hamlet, a fazer a pergunta enigmática que esta série encerra. E devemos alguns esclarecimentos.

Antes do mais, porquê este título esotérico de “Pedras no meio do caminho”?
De facto, é Carlos Drummond de Andrade o inspirador desta fórmula, pelo poema que bem conhecemos.

   No meio do caminho tinha uma pedra
   tinha uma pedra no meio do caminho
   tinha uma pedra 

   no meio do caminho tinha uma pedra.

   Nunca me esquecerei desse acontecimento
   na vida de minhas retinas tão fatigadas.
   Nunca me esquecerei que no meio do caminho
   tinha uma pedra
   tinha uma pedra no meio do caminho
   no meio do caminho tinha uma pedra.

Parece estranho, mas não é. Os nossos leitores sabem que, ao longo do tempo – a memória e o património cultural representam-se metaforicamente, como quis Rabelais, entre pedras mortas e pedras vivas – e as pedras vivas são as pessoas. Não há cultura sem memória, sem interrogação, sem enigma. Monumentos, habitações, documentos, crónicas, idiomas, tradições, natureza, paisagem, técnicas, instrumentos, comunicação, criatividade. E foi assim que ao longo das semanas lidámos com fantasmas, propositadamente, com os seus caprichosos espíritos que, em vez de terem desaparecido, se mantêm presentes e vivos de diversas maneiras – pelo que escreveram e disseram, pelo que viveram e legaram. E do princípio ao fim lidámos com Carlos Fradique Mendes, heterónimo exclusivo de uma geração, símbolo heterogéneo, surgido na absurda história da Estrada de Sintra, filho de Eça e Ramalho, espécie de pirata cultor de um pensamento mefistofélico; depois Antero e Jaime Batalha Reis inventam-no como um poeta singular e marginal – e, por fim, Eça de Queiroz, liberto do pendor romântico da Ramalhal figura, deu-lhe nervo e espírito, com autonomia, como verdadeiro símbolo de uma geração maior. Não por acaso, demos dois exemplos de folhetins romanescos. As “Viagens” de Garrett renovaram a literatura (como fez Almada Negreiros em “Nome Guerra”) e o “Mistério da Estrada de Sintra”, sem ser obra genial, é o anúncio em parte (a de Eça) do naturalismo e depois do simbolismo. E voltamos a Fradique, que é muito mais do que filho de uma escola, representa a transição que nos conduz de Afonso e Carlos da Maia até Jacinto e Gonçalo Mendes Ramires – da Regeneração à Renascença Portuguesa, de 1870 a 1915 e ao “Orpheu”. Tivemos um Romantismo muito longo, libertado com Antero, Cesário e Pessanha de uma escola decaída de elogio mútuo, enterrada no Bom Senso e Bom Gosto e nas Conferências do Largo da Abegoaria.

 

Como podem compreender, o folhetim é caricatural e trágico. Poderíamos ter ido mais adiante. Chegámos aos Barbelas e aí pudemos ver quem somos na dimensão plural da história, mas poderíamos ter falado ainda de Agustina e da sua “Sibila”, de Quina e Germa e do mesmo ano emblemático: “Há uma data na varanda desta sala que lembra a época em que a casa se construiu. Um incêndio por alturas de 1870, reduziu a ruínas toda a estrutura primitiva”. Que data estranha esta, recorrente, tantas vezes encontrada.

Reunidos numa sala ampla, Jaime Ramos interroga comigo os suspeitos e protagonistas: todos fantasmas, Fradique, Justino Antunes, Conselheiro Torres, Coronel Segismundo, Conselheiro Acácio, Luísa do “Primo Basílio”, o inefável Pacheco, Zé Povinho, Joãozinho das Perdizes, o Bispo de  Viseu, Calisto Elói de Barbuda, Corto Maltese, Sandokan, Gastão de Sequeira, Fernão Mendes Pinto, António José da Silva, o Vaqueiro do Auto da Visitação, Frei Dinis, Carlos e Joaninha, o conde de Abranhos, Camilo Castelo Branco, Antunes e Judite, Jaime Ramos, Luísa, a condessa de W., Garrett (ele mesmo) com Duarte Guedes, Amália, Josefina e José Félix, D. Raymundo de Barbela, o cavaleiro e a bela Madeleine, Pessoa como Hamlet, e (à ultima da hora) Quina e Germa… uma algazarra.

Duas horas de interrogatório. Jaime Ramos é sistemático. E o veredicto é duro. «Todos, mas todos sem exceção, são culpados”. A condessa de W., ainda pretendeu assumir, ela só, todas as culpas. Mas Ramos pô-la à prova com o detetor de mentiras. A culpa dela era a mesma de todos os outros… um pequeno golpe para cada um. O que estava em causa era a culpa para manter, pura e impura, a lusitana língua e, como no “Crime do Expresso do Oriente”, a culpa era de todos, todos, próximos ou distantes!

Houve broaá, e pronto, a cortina desceu apressadamente, para paz de todos. Um compasso de espera e houve palmas…      

 

Agostinho de Morais

 

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PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO

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XXX. COMO TERMINA O MISTÉRIO?

Que disseram Ramalho e Eça sobre o “Mistério da Estrada de Sintra”?

«O que pensamos hoje (1884) do romance que escrevemos há catorze anos?... Pensamos simplesmente — louvores a Deus! — que ele é execrável; e nenhum de nós, quer como romancista, quer como crítico, deseja, nem ao seu pior inimigo, um livro igual. Porque nele há um pouco de tudo quanto um romancista lhe não deveria pôr e quase tudo quanto um crítico lhe deveria tirar».

E lembravam a seguinte história: «Conta-se que Murat, sendo rei de Nápoles, mandara pendurar na sala do trono o seu antigo chicote de postilhão, e muitas vezes, apontando para o cetro, mostrava depois o açoite, gostando de repetir: Comecei por ali. Esta gloriosa história confirma o nosso parecer, sem com isto querermos dizer que ela se aplique às nossas pessoas. Como trono temos ainda a mesma velha cadeira em que escrevíamos há quinze anos; não temos dossel que nos cubra; e as nossas cabeças, que embranquecem, não se cingem por enquanto de coroa alguma, nem de louros, nem de Nápoles».

Percebemos a necessidade de se demarcarem de um entretenimento. A verdade, porém, é que o folhetim se procurava demarcar do receituário em vigor. Leia-se o termo do enredo. Luísa despede-se do mundo. «Entregando-lhe em seguida o capuz e o manto de casimira em que fora envolvida: — Adeus, meu primo — disse-lhe ela deixando-se beijar na testa — adeus! Peça a Deus que me perdoe, e aos vivos que me esqueçam. Aos primeiros passos que ela deu para lá da porta, esta fechou-se do mesmo modo por que havia sido aberta, sem que ninguém mais fosse visto, tendo mostrado um buraco lôbrego, negro e profundo como a goela de um abismo, e a amante de Rytmel entrou no claustro. Os ferrolhos interiores rangeram sucessivamente nos anéis, expedindo uns sons entrecortados, semelhantes a soluços arrancados de uma garganta de ferro». Depois, o mascarado alto passou parte dessa noite na vila, esperando a mala-posta. E ouviram-se os sinos das carmelitas pedindo caridade. E o conde de W... recebeu em Bruxelas a carta de sua mulher: «Destituo-me voluntariamente da minha posição na sociedade. De todos os direitos que porventura pudesse ter, um só peço que não seja contestado: o direito de acabar. Suplico-lhe que me permita desaparecer, e que acredite na sinceridade da minha gratidão eterna».

E é aqui que este folhetim dá uma volta de 360 graus. Parece estranha uma tão grande guinada. É que, como bem se recordam, tudo começou com uma estranha descoberta: a de que Carlos Fradique Mendes está vivo. Quando muitos pensavam que ele estava riscado do mundo dos vivos, foi descoberto para sua grande irritação a almoçar num pacato restaurante na proximidade do Passeio Público. E eis que o encontramos de novo. Agora, já sabemos que Luísa se encerrou no claustro de um mosteiro, preferindo desvanecer-se a seguir o caminho de Emma ou de Anna. Fradique Mendes, esse, partiu para uma quinta dos subúrbios de Lisboa para escrever, «debaixo das árvores e de bruços na relva», um livro em colaboração, com o qual prometeu o extermínio a pontapés de todos os trambolhos a que as escolas literárias dominantes têm querido sujeitar as invioláveis liberdades do espírito. «Presenciar as profundas comoções romanescas da vida é como ter assistido a um grande naufrágio: sente-se então a necessidade consoladora das coisas pacíficas: então mais que nunca se reconhece que o ser humano só pode ter a felicidade no dever cumprido».

E fica apenas por saber qual a pergunta mistério deste folhetim?

 

Agostinho de Morais

 

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SALMAN RUSHDIE E O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO

Ruhollah Khomeini
  Ruhollah Khomeini © Mohammad Sayyad

 

1.  Em 2006, realizou-se, em Santa Maria da Feira, o V Simpósio “Sete Sóis Sete Luas”, que teve como tema “Qual é o Deus do Mediterrâneo?” Foram conferencistas Salman Rushdie, Cláudio Torres e eu próprio. O debate, moderado por Carlos Magno, durou quatro horas, com uma assistência atenta, que esgotou todos os lugares disponíveis da auditório da Biblioteca Municipal.

       Evidentemente, a figura central era Salman Rushdie contra quem tinha sido lançada em 1989 pelo ayatollah Khomeini uma fatwa, isto é, um decreto religioso, condenando-o à morte por blasfémia. Trinta e três anos depois, no passado dia 12 de Agosto, Rushdie foi esfaqueado, quando se preparava para uma palestra em Nova Iorque. O atacante é Hadi Matar, um homem de 24 anos, de origem libanesa. A fatwa nunca foi levantada e havia até um prémio de mais de 3 milhões de dólares para quem assassinasse o acusado de blasfémia por causa do livro Os Versículos Satânicos.

     Quais são esses famosos versículos? Dois que não figuram nas versões ortodoxas do Alcorão. Lê-se, de facto, na sura (capítulo) 53, versículos 19 e 20, da Vulgata: “E que vos parecem al-Lat, Al-Uzz e a outra, Manat, a terceira?”. A estes versículos, na tradução francesa de Régis Blanchère, que sigo, acrescentam-se mais dois (20bis e 20ter), os “satânicos”: “Elas são as Deusas Sublimes e a sua intercessão é certamente desejada.” Tratava-se de divindades do politeísmo pré-islâmico, representando, portanto, aquilo que Maomé mais fustigou por causa do seu monoteísmo puro, “sem associados”.

    Se a negação do monoteísmo é o único pecado sem perdão, pergunta-se: como pôde o Profeta declarar sublimes aquelas deusas? A explicação está em que estes versículos foram transmitidos ao Profeta por Satanás, e o modo usado por Deus para acabar com eles, versículos ímpios, consiste em “abrogá-los”, de tal modo que não figuram na Vulgata. Mas então surge uma nova pergunta, segundo Quentin Ludwig: “Porque é que Deus não esteve à altura de ditar imediatamente o versículo perfeito? Porque é que Deus deixou Satanás exprimir-se? E se Maomé se deixou levar por Satanás uma vez, quem pode dizer que não existem outros versículos satânicos no Alcorão?”

 

2.  Aqui chegados, é fundamental relembrar Hans Küng: “Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões sem critérios éticos globais. Não haverá sobrevivência do nosso planeta sem um ethos (attitude ética) global, um ethos mundial.”

    E impõe-se, em ordem a um debate sem confusões, uma distinção essencial. Há a religiosidade, que, no movimento de transcendimento que pergunta pelo fundamento último, sentido último, procurando salvação, se defronta com o Sagrado, o Mistério. Crente é aquele que se entrega confiadamente a esse Mistério-Sagrado, do qual espera precisamente sentido último, salvação. Depois, neste enquadramento, entende-se que apareçam as religiões institucionais, que são construções humanas enquanto mediações entre o Mistério ou Sagrado, Deus, e os homens e as mulheres e entre estes e o Mistério, Deus. Assim, as religiões têm de tudo: do melhor e do pior, como se constata através da História. Nesta distinção entre religiosidade, religiões, e Sagrado-Mistério, entende-se que as religiões estão referidas ao Sagrado, ao Mistério, Deus, mas não são Deus, o Sagrado, o Mistério, que todas tentam dizer, mas a todas transcende.

    A partir destes pressupostos, percebe-se que o diálogo inter-religioso, essencial para o futuro da Humanidade, tem de assentar nalguns pilares fundamentais. Todas as religiões, desde que não se oponham ao Humanum, mas, pelo contrário, o dignifiquem e promovam, têm verdade. Outro pilar diz que todas são relativas (do verbo irregular latino refero, relatum), num duplo sentido: nasceram e situam-se num determinado contexto histórico e social e, por outro lado, estão relacionadas, referidas ao Sagrado, ao Absoluto, Deus. Estão referidas ao Absoluto, Deus, mas nenhuma o possui, pois Deus enquanto Mistério último está sempre para lá de tudo quanto possamos pensar ou dizer dEle. Precisamente por isso, uma vez que nenhuma o possui na sua plenitude, devem dialogar para, todas juntas, tentarem dizer menos mal o Mistério, Deus, que a todos convoca.  Por isso, por paradoxal que pareça, do diálogo fazem parte também os ateus, porque, estando de fora, mais facilmente podem ajudar os crentes a ver a superstição e a inumanidade que tantas vezes envenenam as religiões.

   Exigência intrínseca da religião na sua verdade é a ética e o compromisso com os direitos humanos, a realização plena de todas as pessoas, a salvaguarda da Terra. A violência em nome da religião contradiz a sua essência, que é a salvação. Aliás, antes de sermos crentes ou não, o que a todos nos une é a humanidade comum e a dignidade de pessoas, de tal modo que, face a um Deus que legitimasse a violência, o ódio, mandasse matar em seu nome, impunha-se uma obrigação moral: ser ateu.  

    E dois princípios irrenunciáveis: a leitura não literal, mas histórico-crítica dos livros sagrados — Deus não falou directamente com ninguém —, e a laicidade do Estado — só mediante a neutralidade religiosa do Estado é possível garantir a liberdade religiosa de todos sem discriminação. Mas laicidade não é laicismo, que pretende retirar a religião do espaço público.

 

    Esta crónica despede-se com saudades até Outubro.

   

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 27 de agosto de 2022

 

     

 

PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO

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XXIX. A PERGUNTA SACRAMENTAL…

 

Aqui estamos nós! Neste ponto, temos uma interrogação. Mais importante do que saber qual o desenlace do folhetim idealizado como um entretimento ou uma brincadeira por Ramalho e Eça, importa saber qual a pergunta que está subjacente a todo o folhetim. Do vaqueiro do Monólogo da Visitação (ou do Auto da Lusitânia de Todo o Mundo e Ninguém) até às dúvidas de Antunes perante Judite, passando por Fernão Mendes ou pelo próprio Garrett, transformado não em autor, mas em personagem, eis a essência da trama. Mas não ficamos por aqui, uma vez que não podemos esquecer Blimunda e Baltazar no “Memorial do Convento” nem Bernardo Soares e Fernando Pessoa do “Livro do Desassossego” ou Ricardo Reis, junto ao Adamastor. E qual a interrogação? Afinal, sejamos claros: o que significa a portuguesa língua? Tudo o que ficou neste folhetim de folhetins tem a ver com esta pergunta, que é a mesma que Almada Negreiros pintor (como o escritor de “Nome de Guerra”) formula magistralmente nos painéis que visitámos, com um sentido irónico e sério. Do mesmo modo, Ruben A., em “A Torre da Barbela” apresenta com nitidez a panorâmica global sobre tal pergunta sacramental. Quem somos? O que desejamos? O que sentimos? O que queremos, nós falantes da nossa língua comum?

 

Todas as tardes ao cair da tarde, quando os visitantes abandonavam a visita turística à Torre edificada por D. Raymundo, que nos simboliza, os Barbelas que habitaram esse lugar ao longo dos séculos ressuscitam, trazendo de regresso as suas vivência de antanho. E assim uma torre única triangular com a altura de trinta e dois metros, torna-se palco e representação de um diálogo entre várias gerações de uma família antiga. Os amores e os ódios, as lembranças e as aventuras identificam um longo património cultural e histórico que se traduz na resposta a um enigma apaixonante. Em volta da Torre transfigurada em gente, reúnem-se a parentela moderna e antiga da família, "primos vestidos em séculos diferentes e com bigodes conforme a época". Entre eles estão Dom Raymundo, poeta e primo de Dom Afonso Henriques, ao lado de quem combateu; o Cavaleiro de aventuras, que percorre os montes com Vilancete, grande garrano da Ribeira de Lima, seguido por Abelardo, o falcão que o auxilia na caça. Isto, além de Frey Ciro, o santo da família, e da bruxa de São Semedo. Os eternos contrastes. Todavia, há ainda a linda D. Mafalda, com imagem e formato de vestidos cópia dos modelos de Watteau e Fragonard, correspondendo-se com William Beckford, o fértil viajante. E há a princesa D. Brites, célebre no século XIX; mas sobretudo Madeleine, a "prima que veio de Paris cheia de cores". Sim, esse amor do Cavaleiro mais lendário com a sua prima francesa é absolutamente emblemático no culminar desses oito séculos de paixões e de enguias fumadas, com pessoas a falar da véspera, do que já passou outrora e de um lugar, que nos representa, onde é impossível fazer qualquer coisa que não tenha sido estabelecida quatro séculos atrás. Mas como é difícil responder a essa pergunta sacramental, com tantos pressupostos e tão diversos perguntadores… Nós mesmos ainda somos em parte os Barbelas, à mistura com o vaqueiro aturdido (pelos arrepelões) ou com a capacidade de encenador e de personagem de A. Garrett ao lado de Ruben A..

 

E fazemos uma nova e breve pausa. Temos ainda Luísa em suspenso. E perguntamos ao dileto leitor. Que outra pergunta lhe assalta ao espírito, depois de ler esta representação plural das pedras no meio do caminho, que Drummond tão bem nos apresentou. Pedras vivas, as pessoas, pedras mortas, os monumentos, as obras, as artes, as crónicas, natureza que nos rodeia? Todas as tardes, ao cair da tarde, quando os visitantes abandonavam a visita turística à Torre, que vem à baila?

 

Agostinho de Morais

 

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A VIDA DOS LIVROS

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   De 29 de agosto a 4 de setembro de 2022

 

“Raízes do Brasil” (1936) de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) são motivo de reflexão sobre a construção do Brasil contemporâneo, no momento em que se celebram dois séculos da independência brasileira.

 

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BRASIL - O OUTRO LADO DE NÓS

Parece audacioso o título que encima esta prosa. Poderá ser. É verdade que há muitas simplificações na apreciação das relações luso-brasileiras, como por exemplo a suposta irmandade, a coerência entre o que nos une e nos separa, a relação com o idioma comum. A verdade, porém, é que há uma grande complexidade nos elos que nos ligam. Não esqueço os inesgotáveis diálogos que estabeleci e estabeleço, tantas vezes apenas espiritualmente, com o meu saudoso mestre António Cândido, com Hélio Jaguaribe, mas também com o meu querido confrade Celso Lafer, com Fernando Henrique Cardoso, com Alberto Costa e Silva ou com Marcos Vinicios Vilaça. Devo dizer que se trata de matéria em que sou suspeito, uma vez que nasci numa família luso-brasileira. Minha avó Leonor nasceu no Estado de Paraná, na cidade de Paranaguá, de uma família de industriais da colonização alemã. Conheci em casa de meus avós Jordão Emerenciano, nos anos cinquenta, quando se vivia uma situação dramática com a morte de Getúlio Vargas, e não esqueço a gravação de poemas de Manuel Bandeira, que eram um regalo para o ouvido, a começar em “Recife” e no reconhecimento da sabedoria de Totónio Rodrigues. Anos depois, quando estive no Recife, corri à rua do Sol e verifiquei que ainda lá está, e não se chama doutor fulano de tal.

Partilhando muitas preocupações de amigos comuns, como José Carlos de Vasconcelos, gostaria que houvesse maior presença do Brasil em Portugal e de Portugal no Brasil. E recordo saudosamente conversas entusiasmadas com Mário Soares, José Aparecido de Oliveira, António Alçada Baptista, Zélia e Jorge Amado. Era um tempo em que Quincas Berro de Água fazia parte de um certo quotidiano. Com esta recordação bem viva, todos aspiramos a que haja uma maior relevância internacional da Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Só uma relação biunívoca e uma compreensão das diferenças e complementaridades (ou se se quiser suplementaridades) poderão beneficiar-nos a todos. Longe de idealizar as relações comuns, trata-se de partir da heterogeneidade, das diferenças e da adaptação para delinear uma agenda de interesses e valores comuns. Se invoquei a experiência familiar, foi para tornar claro que sempre ouvi o teor contraditório dos debates, ora de lá, ora de cá. Tenho à entrada de minha casa a imagem de D. Pedro, enquanto o meu amigo Hélio, me levou a admirar o papel desempenhado por D. João VI na preservação da unidade brasileira. Conhecendo praticamente todo o território brasileiro, não apenas percorri o roteiro das reduções jesuíticas, mas também o impressionante percurso dos Bandeirantes, com a obra de Jaime Cortesão sobre Raposo Tavares nas mãos. E percebe-se bem a multiplicidade de fatores que contribuíram para a construção deste imenso território – podendo perceber-se a diversidade de fatores, lendo Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Gilberto Freyre e naturalmente António Cândido.

 

UM MUNDO DA LÍNGUA PORTUGUESA

De facto, não há uma lusofonia, mas um mundo da língua portuguesa com muitas diferenças por encontrar e descobrir. E esse mundo da língua comum alberga várias línguas e várias culturas que devemos compreender melhor. Neste ano em que celebramos duzentos anos da independência formal brasileira e em Portugal assinalamos a nossa primeira Constituição, não esquecemos que o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves já existia em 7 de setembro de 1822, quando foi dado o grito do Ipiranga, desde 16 de dezembro de 1815. O Rio de Janeiro foi desde então capital de Império e essa circunstância definiu o novo tempo que permitiu ao Brasil definir uma história singular que ainda hoje marca as nossas relações. Eis por que tem razão de ser a referência ao Brasil como outra face de nós. Não se trata de uma idealização, mas sim relação tornada natural, com todas as dificuldades inerentes a uma proximidade quase familiar, com todos os encontros e desencontros dessa paradoxal proximidade. Por isso, Eduardo Lourenço fala do Brasil como um outro “mesmo quando o pensamos, para reforço da nossa identidade onírica, como o outro sublimado de nós mesmos”. Eis por que precisamos uns dos outros para nos compreendermos melhor.

A colonização portuguesa, o tráfico de escravos, a relação com África e o papel da população ameríndia são os fatores de formação do Brasil. As diversas mediações articulam-se. Lembremo-nos de Diogo Álvares Correia, designado como “Caramuru” pelos tupinambá, casado com uma índia que contribuiu para o enraizamento da sociedade colonial. Mais do que o controlo da costa é a descoberta do ouro que conduz ao desenvolvimento económico, desde a ocupação do interior e aproveitamento dos rios até à produção agrícola e abastecimento dos mercados urbanos. Cana-de-açúcar, tabaco, ouro e diamantes definem a evolução do sistema económico, bem como a exploração do pau-brasil que inicia a desflorestação. O sistema político é inicialmente influenciado pelo português, com adaptações consuetudinárias. Franceses, holandeses e espanhóis constituem uma concorrência que permite alargar as áreas de colonização e influenciar o sistema de transporte. Com os espanhóis há a competição de que é exemplo o caso de Colónia de Sacramento até ao Tratado de Madrid (1750), mas a monarquia dual facilitará a chegada ao Forte Príncipe da Beira, muito para além do meridiano de Tordesilhas. A coesão social do sistema imperial torna-se possível graças à circulação das elites à influência económica dos cristãos-novos, apesar da ocorrência de tensões – ora influenciadas pela herança holandesa no nordeste, ora entre bandeirantes paulistas e reinóis em Minas Gerais. A Inconfidência Mineira (1789) foi resultado do descontentamento pelo agravamento fiscal e incerteza económica.

 

RESULTADO DE MOVIMENTO COMPLEXO

O Brasil não é produto do acaso. Corresponde a uma convergência de fatores centrípetos e centrífugos, em que a economia, a natureza e o fator humano criaram condições para a afirmação de um território de grandes dimensões que resistiu à fragmentação hispânica. O Padre António Vieira teve uma influência diplomática e humanista importante. A Universidade de Coimbra foi um fator de coesão e de prestígio para a elite intelectual. A política jesuítica face aos índios foi um elemento estabilizador. A mitologia tupi, o Candomblé como rito afro-brasileiro, o cristianismo e o messianismo que chegaria aos “Sertões” de Euclides da Cunha e a António Conselheiro geraram movimentos híbridos a que se somou a influência puritana holandesa. Com afirma Francisco Bethencourt: “De uma forma geral, o sistema normativo e a religião cristã deixaram quadros de comportamento e de crença sobre os quais se inscreveram boa parte dos desenvolvimentos contemporâneos” (Público, 8.8.2022). Os legados que permitiram a independência de um Brasil unificado são de caráter plural e misto com consequências contraditórias, no contexto de uma cultura na qual destacamos a herança artística de António Francisco Lisboa (o Aleijadino) até à literária de Tomás António Gonzaga.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO

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XXVIII. UM PUZZLE COMPLEXO…

 

Ninguém melhor do que Almada Negreiros, num fragmento dos Painéis da Rocha do Conde de Óbidos, para nos guiar na reta final deste folhetim de folhetins. E porquê este puzzle de várias leituras e de diversos enredos?

Para lembrar como a literatura pode ser mais do que um jogo de probabilidades, uma equação com várias incógnitas. Nesse sentido, convoco diversos intervenientes nestes capítulos, à semelhança do que costuma fazer Hercule Poirot. O seu método baseia-se no caminho de uma hipótese para uma tese, com uma cuidadosa ponderação dos passos que permitam encontrar solução. E nós apenas temos uma pergunta.

Comecemos, assim, por fazer a lista dos protagonistas relevantes. Neste momento, há uma ponta solta, uma personagem, cujo destino verdadeiramente desconhecemos, mesmo tendo a tentação de perceber como Ramalho e Eça resolveram o seu mistério de Sintra. Não sabemos, do mesmo modo que como desapareceu a cabeça da célebre estátua em honra de Pacheco. Espreitemos, antes de qualquer desenvolvimento, o que o detetive Jaime Ramos escreveu em duas folhas de um velho bloco. À semelhança do que normalmente acontece, porventura a principal chave do enigma foi a que passou mais despercebida, com grande desatenção do público frequentador deste folhetim.

Eis, entre aspas, a lista que o portuense me enviou:

«O folhetim tem como protagonistas fantasmas e uma só interrogação. Qual é ela? A primeira sombra é Carlos Fradique Mendes (I), o único que existe, celebrado nas letras, mas pouco conhecido como artífice de dramas policiais. Ele aparece e reage negativamente ao ser descoberto (II). O final do Passeio Público, a Avenida da Liberdade e o Rossio são os primeiros lugares do mistério, sucedendo-lhes a Rua dos Fanqueiros do sr. Justino Antunes (III). O convento do Carmo, lugar de pedras antigas, alberga a voz soturna do coronel Segismundo, herói da pátria (IV). E irrompe em pleno Chiado o Conselheiro Acácio cheio de salamaleques perante Luísa do Primo Basílio (V). Em maré de Conselheiros, Fradique desenha o célebre Pacheco, com o País a chorar o seu génio (VI), e mais adiante virá Abranhos (XX). Mas é Zé Povinho quem desmascara a ilusão (VII). Depois dos Conselheiros, surgem os Morgados, como Joãozinho das Perdizes (VIII). E vem à baila o elogio do Pau de Marmeleiro, simbolizado pelo Bispo de Viseu (IX). E, como se não houvesse suspeitos suficientes, eis que surge Calisto Elói de Barbuda (X) e as peripécias da “Queda de um Anjo” (XI). Mas, de súbito, descobre-se um português surpreendente – Corto Maltese, neto de Frei Manuel Pinto da Fonseca, Grão-Mestre da Ordem de Malta (XII), que viaja pelo mundo (XIII). E deparamo-nos com um dos mais populares protagonistas: Sandokan de Emílio Salgari, em Mompracem (XIV) com o português Gastão de Sequeira, rapidamente chegando ao cenário da “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto (XV) e à Banda Desenhada de José Ruy (XVI) e, depois à alucinante viagem no mundo da ilusão: Alecrim e Manjerona (XVII), Monólogo do Vaqueiro de Mestre Gil (XVIII), bem como no campo dos folhetins – a Joaninha do Olhos Verdes (XIX)».

Por um momento interrompemos a lista.

Que procuramos? Diga-o o leitor.

Portugueses descobrimo-los em toda a parte. Todos permitem entender a lusitana gente sem a tentação de simplificar. Num jantar à portuguesa (XXI), na companhia de um Abade (XXII), numa comédia de enganos (XXIII), no encontro entre Antunes e Judite (XXIV) de que trata o puzzle complexo nos leva à interrogação de quem somos?».

Mas falta ainda saber qual o desenlace na misteriosa Estrada de Sintra…

    

Agostinho de Morais

 

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POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE FERNANDO PINTO DO AMARAL

 

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CARDIOLOGIA

 

Talvez na sua vida o maior estímulo
fosse a curiosidade.
 
Era o motor de tudo: aproximava-se
de todas as mulheres que conhecia,
mas só lhe interessavam os seus corações.
 
Cultivava com método essa obsessão
e tal como as crianças costumam fazer
aos brinquedos preferidos,
também ele queria vê-los por dentro,
saber ao certo como funcionavam,
desfibrar lentamente cada esperança,
dissecar com um rigor quase científico
cada angústia ou desejo inconfessável
até saborear o gosto sempre novo
de cada uma dessas células.
 
Após cada experiência, observava
aqueles corações já desmontados
e, por não conseguir juntar as peças,
guardava-as uma a uma no seu peito.
Era um lugar seguro
e com tantos pedaços de outras vidas
na sua pulsação descompassada
podia enfim acreditar
que tinha também ele um coração.
 
 
in Pena Suspensa, 2004
 

 

CARDIOLOGY

 

The greatest motivation in his life
was perhaps curiosity.
 
It drove him on: he approached
every woman he met,
but he was only interested in their hearts.
 
He methodically followed this obsession
and like a child 
with its favourite toy
he also wanted to see what was inside,
find out exactly how it worked,
to shred each hope in slow motion,
dissect with almost scientific rigour
each anguish, each unavowable desire,
till he felt the ever fresh taste
in each one of those cells.
 
After each experiment, he observed
the dismantled hearts
and, not being able to reassemble them,
he gathered them one by one into his breast.
It was a safe place
and holding so many pieces of other lives
pulsating out of step
he could at last believe
that he also had a heart.
 
 
© Translated by Ana Hudson, 2010

PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO

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XXVII. O MISTÉRIO É SÉRIO…

Deixámos a Condessa e Rytmel apaixonados. Há uma ponta de loucura nessa relação. Propositadamente Ramalho e Eça demarcam-se das soluções tradicionais quanto às heroínas de folhetim.

Luísa não faz parte do rol tradicional de quem se deixa arrastar pela força do destino. Luísa tem a sua vontade e afronta os limites. Ensaia uma fuga romântica, num iate. A solução é afastada por demasiado previsível e terrivelmente incerta. Receosa de perder o controlo da situação Luísa vive atormentada pelo ciúme. Será que o capitão a considera como um estratagema passageiro?

Num momento tremendo de vertigem e de loucura, a condessa, insegura e angustiada, para tentar ver os papéis de Rytmel, ministra ao amante uma dose de ópio, que se revela excessiva. E o capitão perde a consciência e morre inesperadamente de overdose. Luísa fica desesperada, mas pondera uma saída racional de modo a camuflar o homicídio. Conta, por isso com a ajuda dos amigos, a quem explica em pormenor por escrito a complexa história, num racional, longo e inexorável exame de consciência. É essa a estrutura fundamental do romance, desenvolvido através de uma sucessão de cartas, dos dois autores, de formações e perspetivas diferentes.

Ramalho Ortigão segue mais de perto a solução tradicional dos folhetins românticos. Eça de Queiroz, leitor de Zola e da escola realista, procura libertar-se do método. E assim deparamo-nos no mesmo texto com duas perspetivas que demonstram como a geração de 1870 (e estamos em 1870) soube assumir uma especial originalidade, libertando-se de uma perspetiva de escola. E há uma armadilha lançada ao leitor desprevenido: parte-se do exagero caricatural do género folhetinesco, procurando introduzir a novidade realista-naturalista. Não vamos discutir a eficácia ou o sucesso. Mais tarde os dois escritores considerarão que a obra ficou aquém do desejável, mas hoje podemos fazer a autópsia, percebendo as hesitações e contradições da geração, através dos dois autores mais distantes entre si. Contudo, ambos estão deslumbrados pela condessa loura e voluntariosa, que não obedece ao modelo da adúltera dos folhetins sentimentais, aproximando-se de Bovary (1856) ou de Karenina (1875-77).

Luísa torna-se um paradigma especial, que se perde nas aventuras que foram engendradas com perda evidente da coerência romanesca. Eça e Ramalho reconhecerão que o carácter folhetinesco levou a uma perda de força, originalidade e autenticidade do romance.  No entanto, sobressai a originalidade de Luísa, que é um exemplo premonitório que contrasta com a outra Luísa, a de Basílio. "Os seus olhos eram de um azul profundo como o da água do Mediterrâneo. Havia neles bastante império para poder domar o peito mais rebelde; e havia bastante meiguice e mistério, para que a alma fizesse o estranho sonho de se afogar naqueles olhos. (…) Os seus movimentos tinham aquela ondulação musical, que se imagina do nadar das sereias. De resto, simples e espirituosa".

Estamos perante a aparência romântica servida em tom severamente crítico e satírico. E a confissão de Luísa pressupõe os ecos modernos: "Eu já não sou alguém. Não existo, não tenho individualidade. Não sou uma mulher viva, com nervos, com defeitos, com pudor. Sou um caso, um acontecimento, uma espécie de exemplo. Não sou uma mulher, sou um romance". A sua lucidez autocrítica não condiz com a fragilidade de caráter, típica da lógica dos folhetins vulgares. E o epílogo aproxima-se.

 

Agostinho de Morais

 

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ANTOLOGIA

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A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA

LEAL SOUVENIR

 

 


1.  Por que é que se volta repetidamente a certos lugares que, de viso próprio, nunca escolheríamos? Por que é que se malogram sucessivamente visitas a outros certos lugares, tanto e há tanto tempo desejadas? São duas perguntas sem resposta ou com a mesma resposta que não obtemos quando nos perguntamos o que nos leva a encontrar sucessivamente quem não buscámos nem buscamos ou a desencontrar, com a mesma irregularidade, aquela ou aquele que procurávamos e procuramos. Os acasos têm as costas largas e eu sou daqueles que nunca acreditou na dimensão delas. O que tem que ser tem muita força e raramente se acha força que a contrarie. Lembrei-me disso, em Rimini. Como julgo que já expliquei aqui uma vez (com a idade, a gente repete-se) Rimini nunca foi cidade que eu buscasse. Ora (cf. Público, 8 de novembro de 2002, "Fellini de Rimini") por duas vezes em dois anos seguidos me achei nessa cidade, por obra e graça do mesmo Fellini, cuja obra nunca foi da minha graça. Basta o Templo Malatestiano para obrigar alguém como eu a visitar essa cidade? Basta. O elefante e a rosa. Alberti e Piero. O galgo branco e o galgo negro. A imaculada conceição do Renascimento, necessitas, commoditas, voluptas. Mas não eram coisas minhas, antes de as ver, e eu raramente vejo o que antes não era já meu. Só agora sei que um dia seria. E só agora sei que quando "voei" de Alberti para Bramante e do Templo de Sigismondo para as cúpulas de Santa Maria delle Grazie (é mesmo Grazie, caríssimo Manoel de Oliveira) fiz o "raccord" mais perfeito que se pode fazer entre os cumes do renascimento arquitetónico italiano. Mas não é do Tempietto que hoje vou falar, pois que até a repetição tem limites. Desta vez, embora tenha ganho muito do meu tempo entre o galgo negro de Piero e os rabinhos redondos dos mil "putti" de Isotta degli Atti, os meus passos levaram-me para o museuzinho da cidade, onde eu sabia que podia ver um Bellini que antes muito vira (uma Pietá com anjo cor de rosa). E eis que, de súbito, nessa sala, se me atravessa uma estátua de Santa Catarina (a de Alexandria, não a de Sena) datada de 1410 e atribuída ao "Mestre da Anunciação Dreicer" que não sei quem foi, mas, me soube a Dreyer. É uma estátua de pedra branca com vestígios de policromia. Não é muito alta (1 metro e 30) mas, como a colocaram em cima de um plínio de 40 cm, a cabeça dela ficou quase à altura da minha. Veste um longo manto de pregas que a cobre inteiramente do pescoço aos pés (nenhuma carne visível) e usa uma cabeleira de anjo muito encaracolada. Mas o que me hipnotizou foi o sorriso, um sorriso inenarrável, sossegadissimamente meigo e sossegadissimamente desafiante. Tão desafiante era que, aproveitando o facto de estar sozinho na sala, me aproximei para lá de todos os critérios aconselhados pela mais benevolente segurança. Os olhos da estátua são daqueles que olham frontalmente quem frontalmente os olha a eles. Um dos olhos é cego ou ficou cego de tanto ver. O outro, pelo contrário, olha todo, olha tudo. Assim, quase "cheek-to-cheek", fiquei colado a ela. Ninguém nos interrompeu. Numa vasta sala, solitária e gelada, o meu vulto e o vulto dela, ficaram de corpo-aberto, benzedeiros e videntes, como se diz dos corpos onde entrou um espírito, que dentro dele fala. Como Quinto Fábio Pictor quando foi a Delfos consultar o oráculo e inquirir dos meios mais adequados para alcançar favores divinos. Hawthorne, que como ninguém sabia destas coisas (ele me deu ou dará o título "Proféticas Imagens") falou de experiência semelhante em "The Marble Faun". Sinais de alma que, no mundo, só algumas mulheres têm. E algumas estátuas e alguns quadros. Como a minha - a de Bronzino - Lucrezia Panciatichi, que há seis décadas me vela e me desvela, "Amour Dure-Dure Amour", Madonna do Futuro, Madonna do Passado, como, antes de mim, para Henry James já fora. Como Milly Theale reencontrada.

 

2.  A fotografia, desde os tempos imemoriais em que eu brincava com retratos avoengos de Mniz Martinez, com moradas na Rua de Serpa Pinto n.º 66 e no Largo da Abegoria 4 ou da Helios Photos, com moradas na Avenida da Liberdade 158 ou na Rua de S. José 209 A; a pintura, desde os tempos mais memorizáveis em que abri as Janelas Verdes; tinham-me dado visões semelhantes. A pedra ou o mármore, jamais. A tal ponto que essa estátua dreyeriana (não é gralha) se me sobrepôs à "morbidezza e diligenza" (Vasari o disse, que raramente se enganou) dos vários Malatesta que estão aos pés de S. Vincenzo Ferreri, na pala com o nome do Santo, que é a obra máxima exposta no museu. Ghirlandajo a pintou em 1493, quase cem anos depois de esculpida a Catarina, e, muito mais impressivos do que os Santos adorados (além do "protagonista", os inseparáveis São Sebastião e São Roque) são os adoradores: Pandolfo IV Malatesta, que foi o último senhor de Rimini (tão fraco guerreiro como bom negociante, pois que por duas vezes vendeu a cidade que não conseguiu defender) a mãe, Elisabetta Aldobrandini, a mulher, Violante Bentivoglio e o irmão Carlo. Todos eles, luxuosissimamente vestidos e com a raça imaginável pelos apelidos, não sendo retratos autónomos (figurantes ajoelhados da cena supostamente sacra), em pouco espaço, se volvem para a expressão ideal a que só a "alta immaginazione" pode aceder. Ninguém olha ninguém. Ou seja, não se olham uns aos outros nem olham os santos. Mas é da perna, fugazmente nua, do pestífero São Roque, que desce a carne que os torna tão palpáveis e frementes. Pensei na implausibilidade (para não dizer impossibilidade) de um nariz como o de Pandolfo, a começar quase no meio da testa e a seguir retilíneo quase até à boca, um nariz quase tão soberbo como o do Medicis de Botticelli ou o do Montefeltro de Piero. Na noite desse mesmo dia, jantei com uma italiana que tinha um nariz quase igual. Em Itália nunca se sabe se é a natureza que copia a arte ou se é a arte que copia a natureza. Provavelmente, nem uma nem outra coisa. Os retratos são a mais imaginosa das nossas memórias, ou as mais perduráveis imaginações nossas.

 

3.  Não estou a dizer nada que não tenha sido dito e redito. Só que nos esquecemos de o lembrar. "Nothing, in the whole circle of human vanities, takes stronger hold of the imagination than this affair of having a portrait painted. Yet why should it be so? The looking glass, the polished globes of the andirons, the mirror-like water, and all others reflecting surfaces, continually present us with portraits, or rather ghosts of ourselves, which we glance at, and straightway forget them. But we forget them only because they vanish. It is the idea of duration - of earthy immortality - that gives such a mysterious interest to our own portraits" ("Dentre todas as mundanais vaidades, nada tem mais forte poder sobre a imaginação do que esta coisa de possuir um retrato pintado. Porquê? Porque é que isso acontece? Os espelhos, as vítreas placas das salamandras, a água e todas as superfícies refletoras continuamente nos oferecem retratos, ou, melhor dito, espectros de nós próprios que olhamos de relance e imediatamente esquecemos. Mas só os esquecemos porque desaparecem. É a ideia da permanência - da imortalidade terrena - que confere tão misterioso interesse aos nossos próprios retratos"). Perdi tempo e espaço a citar o texto de Hawthorne (outra vez Hawthorne) no original inglês e na aproximativa tradução portuguesa? Não, não perdi. Ganhei-o. Porque a repetição - como a permanência - estimula a memória e com ela a imaginação. Aprende-se isso no cinema ou com o cinema. Um dos primeiros teóricos dele - Giambattista della Porta - escreveu em 1602 (quase trezentos anos antes dos comboios de Lumière) que "a memória mais não é do que uma pintura inteira, guardada nessa mesa animada a que chamamos cérebro". Ars riminiscendi. Não julgo preciso explicar-vos quem nos ensinou que tudo o que fazemos não é mais do que lembrarmo-nos. E lembro-me do nariz de Pandolfo, do "azul profundo, quase noturno" de Bellini, da cor maléfica "do sumo de papoula" da Lucrezia de Bronzino, do galgo negro nascido das costas do galgo branco de Piero. E lembro-me mais e mais do sorriso evanescente e do olhar húmido da Santa Catarina, única imagem que aqui vos deixo, sabendo que não a vereis como eu a vi, "tremendo com todo o corpo" como Plutarco disse que Cassandro tremeu ao ver a imagem de Alexandre, tempo depois de Alexandre morto. 
Uma última imagem? No retrato de Van Eyck, dito de Timoteos, que hoje está na National Gallery em Londres, lê-se a inscrição "Leal Souvenir". Penso que tudo quanto disse sobre a imagem, a memória e a imaginação, pode caber nessa expressão. E penso - parecendo que não - que tudo quanto vos confiei foram recordações leais. Não mais, não menos.

 

João Bénard da Costa
in Público, 21 de novembro de 2003

 

PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO

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XXVI. NATURALMENTE, A ESTRADA DE SINTRA…

 

No primeiro romance policial português, de 1870, conta-se o misterioso rapto perpetrado por um grupo de mascarados. Eça de Queiroz confessa em 1884 que «numa noite de verão no Passeio Público, em frente a duas chávenas de café, penetrados pela tristeza da grande cidade, que em torno de nós cabeceava de sono, deliberámos reagir sobre nós mesmos e acordar tudo aquilo a berros num romance tremendo, buzinando à Baixa das alturas do ‘Diário de Notícias’». E começaram a escrita, num romance epistolar a quatro mãos: “Certa noite, indo um médico e um escritor na caleche pela estrada de Sintra (que se iniciava onde hoje é a Estrada de Benfica e ligava a capital àquela vila) foram surpreendidos e raptados por quatro homens embuçados, que os levariam a uma casa isolada. O objetivo era confirmar o óbito de um oficial britânico, a quem fora ministrada uma dose excessiva de ópio”. A partir daí, os acontecimentos sucedem-se a um ritmo alucinante. À medida que a noite avançava os dois compreenderiam estar diante da consequência trágica de um triângulo amoroso constituído pelo morto, uma condessa portuguesa mal casada e uma bela rapariga chegada de Cuba. Tudo começara meses antes da noite fatídica durante uma estada na ilha de Malta à época parte do Império britânico. Quem é o morto e quem o matou? E porquê? Quem era a mulher com quem ele se encontrava, e quem são os mascarados que pretendem proteger a sua honra?

 

A história foi publicada no Diário de Notícias entre julho e setembro de 1870 sob a forma de cartas anónimas, e foram muitos os que se assustaram com os acontecimentos narrados. Para anunciar a história, o DN começou por anunciar: “A hora já adiantada recebemos ontem um escrito singular. É uma carta, não assinada, enviada pelo correio à redação, com o princípio de uma narração estupenda que dá ares de um crime horrível, envolto em sombras de mistério, e cercado de circunstâncias verdadeiramente extraordinárias, e que parece terem sido feitas para aguçar a curiosidade, e confundir o espírito em milhares de vagas e contraditórias conjeturas. Trata-se da sequestração noturna de um médico, de um amigo seu para assistirem a um ato gravíssimo, e, demais factos subsequentes. O interesse que esta narração desperta, a forma literária que a reveste, e o crime que parece revelar nos obrigam a não buscar resumi-la e dá-la na íntegra aos nossos leitores”. E eis a carta que antecedia a narrativa: «Senhor Redator do DN, venho pôr nas suas mãos a narração de um caso verdadeiramente extraordinário em que intervim como facultativo, pedindo-lhe que, pelo modo que eu entender mais adequado, publique a substância do que vou expor. Os sucessos a que me refiro são tão graves, cerca-os um tal mistério, envolve-os uma tal aparência de crime que a publicidade do que se passou torna-se importantíssimo como chave única para a desvendação de um drama que suponho terrível conquanto não conheça dele um só ato». Só no final é que Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão admitiram tratar-se de uma brincadeira e que eram eles os autores das cartas.

 

Luísa, apenas identificada misteriosamente pelo nome próprio e como Condessa de W., era casada com um bon vivant, conhecido, mas com pouca história. Ela era inteligente e culta, mas diferente das heroínas românticas de pacotilha. Cultivava a sua autonomia e procurava enfrentar o destino. Recebia em casa numerosos amigos, entre os quais o excêntrico Carlos Fradique Mendes, cheio do original dandismo satânico. Cosmopolita e viajada, Luísa sente tédio pela vida rotineira que leva. E o conde convence-a a fazer uma viagem, com um primo seu, e melhor amigo, à ilha de Malta (que neste folhetim surge pela segunda vez). Na escala por Gibraltar conhecem o belo capitão Rytmel, súbdito de Sua Majestade Sereníssima. A condessa e o capitão caem-se de amores e iniciam uma relação clandestina, entre Paris e Lisboa. Na capital, encontram-se amiúde numa casa arrendada. E é aí que tem lugar o acontecimento tremendo que precipitará a tragédia, como veremos no próximo capítulo e que constitui o cerne deste epílogo…

 

Agostinho de Morais

 

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