Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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O que se passou a seguir à saída súbita da surpreendente personalidade queirosiana do restaurante é difícil de explicar. É verdade que corria entre os conhecedores do universo de Eça e dos seus amigos que Carlos Fradique Mendes não morrera. Contudo já praticamente ninguém ligava muito a esse fenómeno. Alguns amigos nossos afirmavam, porém, terem-no visto, a subir ou a descer o Chiado, com ar pensativo no antigo Largo da Abegoaria, à porta do Grémio Literário ou um dia no Turf, mas quando alguém que o conhecia ia procurá-lo já se tinha sumido. Sentado à mesa de um restaurante foi a primeira vez que aconteceu. É verdade que o meu companheiro de refeição foi então à rua a ver se via o caminho que seguia Fradique, mas nada conseguiu. Não havia rasto.
O pior de tudo foi, no entanto, o facto de o meu amigo ter começado a escrever sobre esse acontecimento, num célebre ensaio autobiográfico de Fradique Mendes, no qual eu próprio era referenciado, e que mais tarde veio a dar brado. O que se passou, viria a ser relatado em pormenor nesse surpreendente livro. De facto, a figura até aí para nós simpática de Carlos Fradique Mendes teve uma reação inusitada e tornou-se agressiva e persecutória. A tal ponto o meu interlocutor ficou surpreendido, que se dispôs a relatar em livro o que se foi passando. Vamos por partes. Quando eu passeava pela rua, sentia-me estranhamente seguido por uma presença impercetível à vista desarmada. Sentia os seus passos, mas quando olhava para trás nada via. Cheguei a ver a sua sombra projetada no passeio a meu lado, numa hora mais tardia, mas esse sinal depressa se dissipou. Outra vez, vi-o ao longe no Rossio, mas quando me tentei aproximar desapareceu misteriosamente. Um amigo fez-me chegar uma mensagem ameaçadora. Alguém lhe dissera que me arrependeria se continuasse a correr a informação de que ele continuava vivo, devendo proibir terminantemente o autor da nova autobiografia de Mendes sobre a continuidade dessa empresa. Chegou a haver uma estranha manifestação espontânea a favor de Fradique… Todos os recados e relatos sobre as suas ameaças faziam lembrar, porém, o velho pirata de “O Mistério da Estrada de Sintra”. Não era o autor da correspondência nem o versejador dos “Poemas de Macadame” que aparecia, mas a exasperada figura inventada por Eça e Ramalho no folhetim do “Diário de Notícias”. E assim vivi durante alguns meses sob a pressão dessa reação inusitada e sob essa desagradável omnipresença. E tudo isto devido ao facto de eu e o meu colega do pacato almoço termos reconhecido a presença de Fradique no mundo dos vivos e não apenas na categoria dos espectros. Era insuportável para essa personalidade complexa ver-se identificado – e tudo ele tentou para que fosse esquecido, como se a literatura pudesse sob os efeitos de uma varinha mágica dissipar-se. E se dúvidas houvesse, bastaria a leitura de “O Mandarim” para se compreender os perigos reais que corri nessa circunstância.
O tempo passou. A” Autobiografia de Carlos Fradique Mendes” saiu a lume. As pressões exercidas sobre a minha pessoa foram pormenorizadamente relatadas em letra de forma. E o que aconteceu foi que Fradique de um momento para o outro desvaneceu-se. Desapareceu do meu horizonte. Deixei de sentir essa perseguição obsessiva. Regressei a “O Sancho” com o meu amigo, e nunca mais voltámos a ver Fradique Mendes. A publicação do livro foi uma espécie de exorcismo e o meu interlocutor já não está no mundo dos vivos para contar outros desenvolvimentos deste bizarro episódio…
Nas sociedades, também na Igreja, o pior é o poder enquanto domínio. Jesus, a pedido deles, ensinou os discípulos a rezar. Ensinou-lhes o “Pai nosso”, dirigindo-se a Deus como Pai/Mãe e não como Senhor, Rei ou Imperador, e o seu reino não é um império, mas a Humanidade toda enquanto comunidade de filhos e filhas. A revolução de Jesus está no novo encontro com Deus, omnipotente, mas não com a omnipotência do arbitrário e da dominação, mas enquanto Força infinita de criar e de servir, para que todos se possam realizar plenamente.
E volto a Jean Delumeau, historiador eminente, católico convicto, que deixou obras essenciais sobre o passado do cristianismo, e, como só quem conhece e reflecte sobre o passado pode projectar o futuro, uma, luminosa, sobre o futuro, em 2015: L’avenir de Dieu (O futuro de Deus). E lá está: no contexto da imagem terrífica de Deus, que tem de ser revista, “hoje, os cristãos podem mais seguramente afirmar: ou os homens perdoam uns aos outros ou criaram já muitas vezes e, ai!, criam hoje também o inferno na Terra.” Hoje, quando já vivemos numa aldeia planetária, “descobrimos que somos forçosamente solidários uns com os outros e, para não perecermos, estamos condenados a unir-nos e a erguer uma governança mundial que deveria ter os meios de ser obedecida.” E indo ao núcleo da questão: qual é o grande mal do cristianismo? A sua ligação ao poder. “Pelas suas consequências, uma das mais trágicas falsas vias para as Igrejas cristãs foi, depois do fim das perseguições, a ligação entre o poder imperial romano e a hierarquia eclesiástica, simbolizada e fortificada pela coroação de Carlos Magno pelo Papa.” Não se deve esquecer que desde sempre tinha havido, no Império Romano e fora dele, ligação e amálgama entre o poder religioso e o poder político. Foram, por isso, necessários muitos séculos e conflitos incessantes para que “o religioso e o político aceitem por fim distanciar-se um do outro, num equlíbrio aliás instável e que é necessário reajustar continuamente.” De qualquer modo, “desde o início do século IV, a Igreja tornou-se um poder.” Ora, “esta deriva perigosa”, que durante muito tempo só a poucos chocou, ainda não terminou. A Igreja Católica “tem atrás de si um grande e belo passado de escritos religiosos sublimes, inumeráveis iniciativas caritativas e múltiplas obras de arte. Realizou uma obra civilizadora grandiosa e mundial. Deu à Humanidade legiões de santos e santas, canonizados ou não, incansavelmente dedicados ao serviço do próximo. Mas a sua grande fraqueza foi ter-se constituído em poder… Ora, é preciso que de ora em diante abandone o poder, pratique a humildade para poder de novo convencer e dar-se a si mesma estruturas mais flexíveis do que no passado e, portanto, capazes de evoluir. Porque hoje é necessário aceitar e dominar evoluções inevitáveis.”
Nesta espécie de “testamento” (Delumeau tinha 92 anos), apresenta então “pistas e proposições” para o futuro.
O governo da Igreja tem de “ser profundamente repensado e reconstruído”, devendo estar “mais atento do que no passado aos desejos e aspirações dos fiéis”. Não deveriam estes “poder escolher os seus representantes que constituiriam uma espécie de parlamento da catolicidade?”
Há uma série de reformas urgentes que “a civilização em que estamos mergulhados impõe”. Por exemplo, “não impor o celibato aos padres (o que não impediria em nada a existência de fiéis que livremente escolham o celibato, para se consagrar inteiramente à Igreja e à oração)”. O que pode impedir a ordenação de homens e mulheres casados para presidir às comunidades e à Eucaristia?
Impõe-se “valorizar o lugar da mulher na Igreja”, indo aliás ao encontro de várias práticas das primeiras comunidades cristãs. “Esquece-se demasiado que o cristianismo, historicamente, contribuiu em grande medida para a libertação da mulher.” Desejava, pois, “com uma forte convicção, a reabilitação plena e completa da mulher no catolicismo”. Estamos na civilização da “inovação absoluta, a que devemos fazer face, desembaraçando-nos dos reflexos, desconfianças e interditos herdados de um passado superado. Ora, não encontraremos nos Evangellhos nem razões teológicas nem maldições eternas a sancionar o ‘sexo fraco’. Atendendo à evolução recente e inédita da nossa civilização, o catolicismo deve, portanto, dar finalmente à mulher todo o seu lugar, em igualdade com o homem, nos ministérios e no governo de uma religião que se quer universal e comum a homens e mulheres. O êxito de uma nova evangelização passa, na minha opinião, pela reabilitação completa da mulher nas Igrejas cristãs. Por imperativo da minha alma e consciência, e antes do silêncio que em breve a morte me imporá, quero lançar um grito de alarme: na minha opinião, a salvação e o futuro do cristianismo, e nomeadamente do catolicismo, passam por esta completa reabilitação da mulher.” Nesta linha, multiplicam-se os testemunhos de teólogos eminentes e de bispos.
A doutrina do pecado original contradiz a evolução e o Evangelho. É preciso mudar a linguagem, pois ninguém entende hoje expressões como: “desceu aos infernos”, “subiu aos céus”, “ressurreição da carne”…
Impõe-se o diálogo ecuménico e inter-religioso. Não se pode ignorar a ciência, e é fundamental estar atento às novas tecnologias, e refiro concretamente as NBIC (nanotecnoligias, biotecnologias, inteligência artificial, neurociências)…
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 30 de julho de 2022