Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO


V. UM OUTRO CONSELHEIRO


Se houvesse um local em Lisboa para colocar um memorial de recordação do Conselheiro Acácio, seria a meio da rua Garrett, rua Larga de Santa Catarina, naquele ponto em que Luísa se despede apressadamente para entrar na igreja dos Mártires. Nado e criado em Lisboa, com cerca de setenta anos, Acácio era um alfacinha de gema, solteirão sem família conhecida. Vivia com a governanta, que o atraiçoava, resistia às investidas de D. Felicidade. Era aposentado de diretor-geral do Ministério do Reino, vivendo num terceiro andar na Rua do Ferragial. Foi feito Cavaleiro da Antiga Ordem Militar de Santiago da Espada, em atenção aos seus merecimentos literários e às obras publicadas no domínio da economia política. Era autor de vultuosas monografias, como: Elementos Genéricos da Ciência da Riqueza e Sua Distribuição - Segundo os Melhores Autores; além do exaustivo Relação de Todos os Ministros do Estado desde o Grande Marquês de Pombal até Nossos Dias com Datas Cuidadosamente Averiguadas de Seus Nascimentos e Óbitos e da nutrida Descrição Pitoresca das Principais Cidades de Portugal e Seus Mais Famosos Estabelecimentos. Era ainda assinante antigo do Teatro de S. Carlos e conhecia a sociedade frequentadora da ópera e toda a intelectualidade do tempo. Tudo, sem esquecer a admiração que votava a Luísa, a heroína de “O Primo Basílio”, tendo-lhe dedicado um sentido obituário: «Mais um anjo que subiu ao Céu! Mais uma flor pendida na tenra haste que o vendaval da morte, em sua inclemente fúria, arremessou mal desabrochada para as trevas do túmulo…»


“Era alto, magro, vestido todo de preto, com o pescoço entalado num colarinho direito. O rosto aguçado no queixo ia-se alargando até à calva, vasta e polida, um pouco amolgada no alto; tingia os cabelos que de uma orelha à outra lhe faziam colar por trás da nuca – e aquele preto lustroso dava, pelo contraste, mais brilho à calva; mas não tingia o bigode: tinha-o grisalho, farto, caído aos cantos da boca”. Acrescia a palidez do rosto, as lunetas escuras, a covinha do queixo, “e as orelhas grandes muito despegadas do crânio”, que o vulgo designa como orelhas de abano. Mas à figura física, temos de juntar a verve, que fez de Acácio um tipo social e mental inconfundível: “Sempre que dizia – El Rei! Erguia-se um pouco na cadeira”, “nunca usava palavras triviais”, “dizia sempre «o nosso Garrett, o nosso Herculano»”. Por outro lado, não dizia vomitar ou regurgitar, mas sim “restituir”. Tudo junto, torna as suas palavras sinal picaresco de chiste… A personalidade, os gestos, a mentalidade de Acácio, paradigma de Conselheiro, deram lugar ao adjetivo “acaciano”, uma singular afirmação de sobrevivência da personagem presente na própria Correspondência de Fradique Mendes, quando este, ao fazer um resumo daquilo que na existência há de exemplar e contraditório, diz: “Em resumo adoro a Vida — de que são igualmente expressões uma rosa e uma chaga, uma constelação e (com horror o confesso) o conselheiro Acácio”. Do mesmo modo, na carta sobre o célebre Pacheco, pode ler-se, a respeito da morte daquela espécie de alter ego do Conselheiro: “Jaz no Alto de S. João, sob um mausoléu, onde por sugestão do senhor conselheiro Acácio (em carta ao Diário de Notícias) foi esculpida uma figura de Portugal chorando o Génio”. Ora, o mistério que desta vez suscito tem a ver com esse pedaço de pedra de lioz que misteriosamente desapareceu…


Agostinho de Morais


>> Pedras no meio do caminho no Facebook  

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


117. IMPERIALISMO, MESSIANISMO, EURASIANISMO, “NOVOROSSIA”


Para o filósofo russo Ivan Ilyin, anticomunista e defensor de uma “ditadura democrática”, a Rússia não é um “mecanismo artificialmente instalado”, mas sim um “organismo historicamente formado e culturalmente justificado”. É impossível amputá-la sem a ferir, fazer sofrer ou morrer. Faz uma exortação mística ao destino imperial russo, confiante de que chegará a hora em que a Rússia renascerá da desintegração e da humilhação, iniciando uma nova era de desenvolvimento e grandeza. Países e regiões que estavam sob o controlo natural da Rússia serão disputados e tomados por vizinhos imperialistas. Porquê? Porque o Ocidente não apoia nem compreende a originalidade russa. O objetivo é desmembrar a Rússia, colocá-la sob o controlo ocidental, para a desfazer e, por fim, fazê-la desaparecer, levando-a a que se transforme numa permanente fonte de guerras. O Ocidente transporta o vírus anticristão, tem um plano de ódio e luxúria de poder, promove valores hipócritas como a “liberdade”. Refere os bascos, catalães, flamengos, valões, croatas, eslovacos, eslovenos e ucranianos como povos incapazes de se tornar estados e, por isso, devem ser controlados por estados vizinhos. Considera que a Ucrânia não existia como nação, era parte da grande Rússia, sendo um crime falar na sua separação.


Outro filósofo, Nikolai Daniliévski, teoriza que a Rússia tem um povo eleito por Deus para preservar a verdade religiosa do mundo, a sua grande missão justifica-se naturalmente, propondo uma união de todos os povos eslavos sob a liderança russa, dada a inviabilidade de o seu país vir a fazer parte da Europa. A inimizade desta com a Rússia é estrutural. Só a União Eslava pode estar à altura de uma Europa unida a ocidente, permitindo um novo equilíbrio mundial contra a vontade de um domínio ocidental. A Rússia é demasiado grande e diferente para se aliar ao Ocidente, sendo o seu tamanho o primeiro impedimento, não se podendo esperar que seja apenas uma, entre outras, das grandes potências europeias, dada a sua imensidão e poder. Nega a caraterística de universalidade ao Ocidente, acentuando a importância de uma dominação russa universal. 


Piotr Savitski, economista e geógrafo, fala na Eurásia, rebate a separação feita pelos Urais, defende um “terceiro continente” (a Eurásia), de coerência botânica, harmonia do relevo e clima, um território unificado, cujo centro é a Rússia.


Aleksandr Dugin, o mais famoso mentor do eurasianismo, bipolariza o globo em telurocracias (países da terra, do sangue e do povo) e talossocracias (países marítimos, do indivíduo e do racionalismo). A Rússia é uma telurocracia e os Estados Unidos e Europa Ocidental talossocracias. Eurosianismo versus Atlanticismo. A nação russa, definindo-se pela cultura e religião, não cabe nas fronteiras atuais, consubstanciando-se num império pela sua vocação civilizadora e messiânica. A fragmentação da União Soviética criou nações artificiais como a Bielorrússia, a Sérvia e a Ucrânia. Prevê um confronto com o Ocidente relacionado com a tentação de os Estados pós-soviéticos serem atraídos pela Europa ocidental e pelos EU, não podendo a Geórgia e a Ucrânia ser parte integrante do império atlantista. Refere ter começado a contagem decrescente impeditiva da anexação da Ucrânia pelo império americano, apoiando a possibilidade de se travarem conflitos bélicos pela Crimeia e leste ucraniano. Enfatiza que a política externa deve focar-se num inimigo comum, a destruir: os EU, o liberalismo e a democracia. Deve instigar-se o antiamericanismo, como bode expiatório, a todos os níveis. E estimular-se a dependência energética da Europa, implementando a Rússia apoio, compensações e recursos aos seus aliados.     


Para o ideólogo Alesandr Prokhanov a “via russa”, messiânica, imperial e belicista brotou no século XV com a teoria de Moscovo, a terceira Roma, destinada a substituir Constantinopla, emergindo agora um quinto império (após a Rússia de Kiev e Novgorod, de Moscóvia, dos Romanov e o soviético) que justifica anexações, havendo um messianismo russo que obedece à ideia de uma justiça divina, sendo a Rússia teocêntrica e o Ocidente antropocêntrico.  


Evocando uma unidade indestrutível e espiritual entre a Rússia e a Ucrânia, que a fuga desta para o Ocidente amputaria os russos de uma parte de si mesmos, surge o projeto da Novorossia (Nova Rússia). Prevê ligar a Rússia à Transnístria, região ocupada por pró-russos, na República Moldova, ocupando também o sul da Ucrânia, incluindo Mariupol, Mykolaiv, Kherson e Odessa, recuperar o Donbas (Lugansk e Donetsk), a leste, e Kharkiv, em nome da defesa de cidadãos russos, russófonos e da língua russa do “sudeste da Rússia”.  


O projeto ideologicamente mais ambicioso é o da União Eurasiática, “imitação” da UE, englobando a Arménia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão e Rússia, que tem como irrevogável a não junção da Ucrânia, e que se pode ampliar numa “Eurásia aberta de Lisboa a Vladivostoque”, nas recentes palavras de um ex-presidente russo.  


Sobressai uma Rússia ferida no seu orgulho, hipernacionalista e supremacista, que se diz humilhada, maltratada e ofendida, a querer reconquistar o poder que lhe foi subtraído, ampliando o seu estatuto imperial, numa lógica que apelida de correção da História. Tem o providencialismo como fundo permanente da personalidade e alma russa, transversal a outros povos, onde também emerge um quinto império, a fazer lembrar, entre nós, Vieira, Pessoa e Agostinho da Silva.  


Mas em que há sempre um império que se tem por melhor que os outros, que quer convertê-los, dominando-os e subjugando-os, se necessário, pela força, a começar pelos mais próximos, os “irmãos mais novos”.  

 

05.08.2022
Joaquim Miguel de Morgado Patrício