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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO


VI. O PAÍS CHORANDO GÉNIO…


Há sempre novos mistérios na cidade. A memória de Acácio, o renomado Conselheiro, suscitou-nos o problema de saber onde terá ido parar a estatueta de lioz de Pero Pinheiro, que se encontrava no Alto de S. João no mausoléu em honra da figura de Pacheco, celebrado por Carlos Fradique Mendes, e esculpido por sugestão de Acácio, em carta ao Diário de Notícias, “Portugal chorando o Génio”. Alguns anos após a morte do notório admirador de Luísa, alguém desejou homenagear Pacheco e Acácio, depondo um ramo de gerberas no mítico monumento. Porém, esse alguém não encontrou mais do que um infame buraco e uma a tabuleta anunciando novo jazigo que ali se iria erguer. Um desalento, um despautério. Onde fora parar a escultura erguida com tanta devoção pela diligência do Conselheiro?


Importa lembrar o que diz Fradique do talentoso Pacheco: “Tenho presente, como num resumo, a sua figura e a sua vida. Pacheco não deu ao seu país nem a obra, nem uma fundação, nem um livro, nem uma ideia. Pacheco era entre nós superior e ilustra unicamente porque tinha um imenso talento. Todavia (…) esse talento que, duas gerações tão soberbamente aclamaram, nunca deu, da sua força, uma manifestação positiva, expressa, visível! O talento imenso de Pacheco ficou sempre calado, recolhido nas profundidades de Pacheco! Constantemente ele atravessou a vida por sobre eminências sociais: Deputado, Diretor Geral, Ministro, Governador de bancos, Conselheiro de Estado, Par, Presidente do conselho – Pacheco tudo foi, tudo teve, neste país que, de longe e a seus pés, contemplava assombrado do seu imenso talento. Mas, nunca, nestas situações, por proveito seu ou urgência de Estado, Pacheco teve necessidade de deixar sair, para se afirmar e operar fora, aquele imenso talento que lá dentro o sufocava. Quando os amigos, os partidos, os jornais, as repartições, os corpos coletivos, a massa compacta da nação, murmurando em redor de Pacheco “Que imenso talento!” o convidavam a alargar o seu domínio e a sua fortuna – Pacheco sorria, baixando os olhos sérios por trás dos óculos dourados, e seguia, sempre para cima, sempre para mais alto, através das instituições, com o seu imenso talento aferrolhado dentro do crânio como no cofre de um avaro. E esta reserva, este sorrir, este lampejar dos óculos, bastavam ao país que neles sentia e saboreava a resplandecente evidência do talento de Pacheco”. Mas que aconteceu verdadeiramente? Moveram-se céus e terra. Consultaram-se os arquivos do Município. De facto, um mestre de obras conseguira comprar por tuta e meia o que restava do sublime monumento, mas nada revelava onde fora para a estátua. Guardada num armazém? Vendida a um ferro velho? Na arrecadação de um antiquário? Nada. A procura foi aturada e sistemática. E lembro mais um passo da genial invocação de Fradique: o talento de Pacheco «nasceu em Coimbra, na aula de direito natural, na manhã em que Pacheco, desdenhando a “Sebenta” assegurou ‘que o século XIX era um século de progresso e de luz’. O curso começou logo a pressentir e a afirmar, nos cafés da Feira, que havia muito talento em Pacheco: e esta afirmação cada dia crescente do curso, comunicando-se, como todos os movimentos religiosos, das multidões impressionáveis às classes raciocinadoras, dos rapazes aos lentes, levou facilmente Pacheco a um prémio no fim do ano. A fama desse talento alastrou então por toda a academia – que, vendo Pacheco sempre pensabundo, já de óculos, austero nos seus passos, com praxistas gordos debaixo do braço, percebia ali um grande espírito que concentra e se retesa todo em força íntima. Esta geração académica, ao dispersar, levou pelo país, até os mais sertanejos burgos, a notícia do imenso talento de Pacheco. E já em escuras boticas em Trás-os-Montes, em lojas palreiras de barbeiros do Algarve, se dizia, com respeito, com esperança: - “Parece que há agora aí um rapaz de imenso talento que se formou, o Pacheco!». Mas faltava saber onde estava a estátua…      

Agostinho de Morais


>> Pedras no meio do caminho no Facebook   

ANTOLOGIA


RECORDAÇÕES MUSICAIS E UMA PRINCESA…
por Camilo Martins de Oliveira


Três edições discográficas recentes e um livro que recebi ainda com cheiro a tinta trazem-me à memória uma pessoa querida de mim, logo direi quem. Os discos são recordações de géneros musicais (e não só) diferentes (graças a Deus!): um, que me chegou de Londres, dá pelo título de "18th-century Portuguese Love Songs"; o segundo reúne várias gravações de música do séc. XVI sob o tema do "Elogio da Loucura" de Erasmus van Rotterdam; o terceiro é uma interessante e sentida achega ao fado, não só enquanto expressão musical, mas como tradição de sensibilidades culturais e seu encontro. Também já veremos como. A pessoa recordada por mim foi - e é-me - muito próxima: pelo seu nome (incompleto) de batismo era meu homónimo: Camilo Maria, 15º marquês de Sarolea, nascido em 1900 e falecido em 1979. Confiou-me um perturbante espólio de cartas e apontamentos vários, alguns dos quais se referem às obras ou temas que acima invoquei. Os textos respetivos foram redigidos em várias línguas: francês, alemão, algum inglês, castelhano, italiano e português. Por vezes recheados de citações e trechos em latim e grego. Confesso que, muitas vezes, me inspirei neles para o que, ao sabor do gosto de dizer ou da necessidade íntima de fazê-lo, eu mesmo escrevi autenticamente meu. Hesitei em rever essa herança interior, por receio ao espelho. E mais ainda receei manifestá-lo, porque o pudor deverá ser discreto. Mas nem sempre resistimos à tentação de comunicar o que temos por indizível. Ao escrever estas linhas (quantas serão?), move-me um como reconhecimento da brevidade da vida, e o assentimento de que há um coração dos homens cuja idade não sabemos, talvez por ser na eternidade. Numa carta escrita a uma princesa que não ouso identificar, Camilo Maria cita estes versos de "modinhas" portuguesas de fins de setecentos ou princípio de oitocentos, as tais de que William Beckford dizia que "os que nunca as escutaram nunca conhecerão a música mais voluptuosa e feiticeira que existiu desde os Sibaritas. "Foi por mim, foi pela sorte /minha desgraça tecida/sou, ó céus, bem desgraçada / nem morro nem tenho vida!" Ou ainda: "Amor vem manso, mansinho, / no coração habitar. / E depois de estar de dentro, quer só ele as regras dar... / Ai amor, amor, amor / vocês zombam com amor / e não é para zombar..." Vêm as citações na sequência de uma referência circunstancial: "Achei-te triste e fechada esta manhã, eu que te estava (e estou!) tão grato por me teres visitado. Talvez depois da tua partida, pela tarde, o dia entristeceu e se fechou. Mas rezo e penso que as nuvens tão baixas nos trazem para perto o céu... e que esta chuva miudinha vai encharcando os campos de frutas e flores, de sombras futuras e benignas, e de cores, tantas cores, que ainda não vemos! Tudo afinal se cria no escuro silencioso do mistério, nesta promessa ininteligível do Deus que esperamos... É bom contemplar, neste despojamento húmido e incolor do inverno, o Ser que é e está além das aparências. Na saudade, que se exprime sempre em português, estás comigo, dou-te a mão e olho. E o que vejo é uma paisagem que se despe com um misterioso pudor, lento e manso, verde, amarelo, castanho, cinzento, melancólico e frio... tão cheio da graça que emprenha a terra e nos torna sublimes de esperança! Bem hajas!" Nenhuma correspondência entre Sarolea e a Princesa (de …)  é datada. Tampouco achei nela indicação de lugar ou destino. Mesmo a simples alusão a efemérides ou a tempos circunstanciais não me permitem datá-la ou localizá-la. Como se tudo se situasse fora do tempo e do espaço. Ou como se a atualidade de coisas passadas reclamasse a constância de algum modo de ser... Talvez o ser tenha, para além do ser-se, uma consistência própria. Uma densidade ignota, entre a gravidade e a graça, na alma de cada ser humano. Somos, como diz Ortega y Gasset, que tanto gosto de citar, trânsfugas da natureza... Mas seremos também, acredito, trânsfugas de nós mesmos. Há um qualquer território da nossa alma, dessa parte de nós que inconscientemente, por vezes, definimos arriscando dizer "sou eu mas não sei explicar"... há, em cada um de nós, esse território ou terra de ninguém. Onde Jacob lutará com o anjo. Ou onde, talvez, infelizmente, já não haja luta alguma. A ideia da condição humana como batalha, o desgosto do mundo a par da insatisfação com o silêncio de Deus, tudo isto marca a pessoa e os escritos de Camilo Maria que tantas vezes usava uma tradução italiana dum seu apelido alemão, apresentando-se como Vecchio Borgo. Veremos, se for eu capaz de os traduzir, outros passos de textos em que ele quis dizer um percurso espiritual que, todavia, para quem o conheceu "em sociedade", era insuspeitado. Estava simplesmente no lado de lá, no lado do silêncio. Transcrevo, de uma das cartas (de amor?) que sou tentado a revelar, este trecho: "Alheio, mudo, indiferente,/ nos leva o tempo o momento,/ o dia, a hora, a vida toda.../ na roda desse vento acordamos e sabemos/ a manhã que já foi ou já se irá embora!/ Peregrinos hoje e sempre.../ Em qualquer hora!


Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 25.01.13 neste blogue.