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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO


VIII. O MORGADO DAS PERDIZES…


Dei-me a procurar numa coleção antiga de obras da minha livraria  uma representação de Joãzinho das Perdizes, o célebre artífice dos votos e das influências, símbolo do caciquismo, do carneiro com batatas, dos votos arregimentados do tempo do rotativismo, entre Regeneradores e Históricos. A figura foi criada no ano de 1868, o ano atribulado da janeirinha. Descobri-a numa edição da “Biblioteca Escolhida” da “A Morgadinha dos Canaviais – Crónica da Aldeia” de Júlio Dinis, feita na casa de J. Rodrigues & Cª Editores, de 1933, com ilustrações de Alfredo Roque Gameiro. E vejamos a gravura em pormenor. Acolá está ele, o Joãozinho das Perdizes, no centro da ilustração, com as suas suiças desajeitadas, bebendo o seu copo, na vasta assembleia da venda da aldeia. Mestre Bento Pertunhas, acusa o Conselheiro Manuel Bernardo de prometer demais, ao que o brasileiro Eusébio Seabra, de inconfundível vestimenta, obtempera que não o convencem as falas mansas e os anúncios das estradas que vão construir-se, pretendendo-se que existam para benefício de todos. São os mágicos melhoramentos do Conselheiro Fontes (já aqui comparado a Bismarck por Tibúrcio Torres). Mas, o brasileiro é ácido! “Para mim é que ele vem de carrinho…” .  


Mas voltemos ao nosso morgado das perdizes. «Tudo por lá era o Sr. Joãozinho: não havia função, rixa, solenidade oficial para que ele não fosse consultado. É que a superioridade do morgado das Perdizes não era daquelas que intimidam e acanham o povo; ninguém hesitava em falar-lhe e em procurá-lo em casa, porque, falando e vivendo com eles o Sr. Joãozinho não constrangia ninguém. Os seus defeitos, a sua vida de feiras e de tavernas eram outras tantas causas a popularizá-lo; justo é porém que se diga que algumas boas qualidades também para isso concorriam. O Sr. Joãozinho não era avarento, nem soberbo. Sentado a beber, e com dinheiro no bolso, não consentia que pessoa alguma, desde o mais rico proprietário até o jornaleiro mais miserável, recusasse tomar assento a seu lado». Naquela roda de debate político, com muita desconfiança por causa das estradas que aí vinham, há prognósticos sobre as próximas eleições gerais. Há um larvar descontentamento ali em Grijó, Vila Nova de Gaia. Desta vez, Joãozinho ainda não sabe como votará. Muitas dúvidas! Talvez seja voto perdido! E o Seabra não está pelos ajustes. E o morgado das perdizes assevera que se os tais homens das bandeirolas tornam a passar nas terras “sempre lhes meço as costas com um marmeleiro que lá tenho, e que já me serviu para varrer a feira de Santo Estêvão. Uns mariolas». Na roda da conversa as queixas desenvolvem-se. «Quando se fala em estradas, já estou a tremer» (disse um dos lavradores) «O que elas vêm cá fazer é cortar-nos os campos, e afinal não sei para que servem».


Depois de nos encontrarmos com diversas figuras marcantes da nossa história constitucional, temo aqui duas genuínas figuras: o conselheiro Manuel Bernardo Mesquita, pai de Madalena, a Morgadinha, que depende da mobilização dos seus apaniguados; e o morgado Joãozinho das Perdizes que vai deixar suspensos os leitores do romance, sem saberem qual o destino político do conselheiro. E é neste ponto que vamos suspender o nosso relato. Não se trata de saber o que aconteceu e que todos muito bem sabemos. Trata-se sim de apurar neste complicado ano de 1868 como vamos desatar o nó que se vai estabelecer, quando um grupo de pundonorosos ilustres pretende salvar a pátria através do primado da virtude!…

Agostinho de Morais


>> Pedras no meio do caminho no Facebook    

A VIDA DOS LIVROS

De 8 a 14 de agosto de 2022.


A homenagem que prestamos a Ana Luísa Amaral é inteiramente subscrita por Eduardo Lourenço no número 187 da revista Colóquio Letras da Fundação Calouste Gulbenkian, de setembro de 2014, sobre o livro “Escuro” (Assírio e Alvim), que o ensaísta apresentou publicamente. Oiçamos o nosso querido e saudoso mestre.


UMA SUBTIL NAVEGAÇÃO A CÉU ABERTO
«Os que conhecem e amam a poesia de Ana Luísa Amaral sabem como ela é uma subtil navegação a céu aberto entre os recifes da realidade. (…) Ana Luísa é da raça das sibilas e das cassandras, mas também das penélopes fiando às avessas o fio mortal da vida como obscuridade original na esperança de que se volva luz. E mesmo luz eterna. Esta vocação onírica e mítica, revisitação do imaginário clássico do Ocidente, irmana e distingue a sua aventura poética da outra corrente também a ela paralela da poesia como empresa real de transfiguração da vida épica inaugural da humanidade em modelo dos atos mágicos e utópicos de uma outra criação. (…) Toda a sua original obra poética podia levar o título de Memórias Revisitadas, uma outra versão do mítico título proustiano ‘Em busca do Tempo Perdido’, não em mera chave sublimemente autobiográfica, mas transtemporal como jogo de todos os tempos: «Em vez de vinte tempos / de mudança / queria um tempo / só meu: revisitado // Um tempo o mesmo / tempo sempre o mesmo / polvilhado de salas / de visita // Um tempo de mudar / formas às coisas / às vezes / abrir portas.» Embora fascinada pelos mistérios na aparência mais profundos que os do «tempo humano», é neste e deste que a sua voz poética se faz glosa e se extasia: «Revisitar os sítios / do pressentimento: / quase não ter-te / o tempo a recolher-se // E não mandar no tempo, / eu impotente / a vê-lo recolher-se // Tu quase a já / não estares / volume a menos // Revisitar / a / tua / ausência».


SOB O SIGNO DE DOIS VIDENTES
No seu livro de poemas “Escuro”, colocado sob o signo de dois videntes, S. João da Cruz e William Blake, Ana Luísa revisita uma vez mais a pura memória, a de uma infância onde obscuridade escutada e «a mais pura alegria» se misturam». Através «de tempos que nunca sobre si mesmos se fecham, (Ana Luísa) encontra no absoluto da paixão, com abandono e perda glorificada, a sua música mais rente ao silêncio, a da obscuridade da alma convertida como a de Mariana no cântico dos cânticos de todas as seduzidas e abandonadas. Chama-se «A Carta», dirigida ao que lhe foi tudo e ninguém, pura chama de amor por Stendhal lembrada como a mais alta forma de paixão:


«Senhores: / hão de a dor e a ausência ter sabor, / um certo cheiro doce e demorado, / em forma de mil olhos // Pois vós olhastes essa minha ausência, / dissestes que dali criei palavras, / mas não por minha mão // Na vossa história, senhores, /eu fui só voz, /em vez de gente inteira // Inteira, nunca o fui, / dobrada ao meio pelo escuro das vestes, / pelas juras forçadas que cumpri, / pelo dever que me ditou meu pai // Porém, fui eu que as fiz, às letras dessas cartas, / eu, que as fui construindo devagar, / na escuridão da cela […] // Não fui só voz: / fui eu, dona de mim, / porque as letras me foram, e o amor, /e o ódio vagaroso // Só para isso me valeu viver, / para compor, igual a sinfonia, / tudo o que considerei // Ele foi só palavras que em palavras forjei, / bigorna onde moldei espadas e lanças, / o lume necessário // Só não moldei / as grades da prisão onde vivi: / essas, moldastes vós / até incandescência // Mas eu, nas letras que compus, / eu inventei a ausência como mais ninguém. / Eu fui a mão da ausência / numa cela escura // E os atos dele foram-me as metáforas, / imagens a seguir-me, mais fortes / do que a vida. / Por isso me chamastes, senhores, / no vosso tempo, uma palavra nova e ágil: / literatura // E assim eu fui-vos voz, / e doce mito. E nada mais / vos fui // Quero dizer-vos hoje, / neste tempo tão escuro, / mas de um escuro diverso do que tive: / adeus // Deixai-me o escuro, o meu. / Porque ao lado da minha, / a vossa ausência, essa que em mim plantastes, / nada é. // Tomáreis vós saber o que é ausência / Ausência: eu: demorada nestas linhas. / Dizer com quanto escuro / a noite se desfaz / e se constrói».


Desta ausência Ana Luísa fez não uma luminosa habitação, mas uma espécie de esplendor, não como aquele com que Rilke dourou a Morte, mas pura saudade intérmina da Vida. Bem haja ».


(O Texto encontra-se integralmente digitalizado, como acontece com toda a coleção de “Colóquio Letras”).

 

Guilherme d’Oliveira Martins