Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Já vimos, como Joãozinho das Perdizes invocou o pau de marmeleiro como disciplinador de conflitos e organizador da nação. É verdade que muito do palavreado usado na venda de Grijó correspondia mais a entusiasmo do que à realidade. Estamos no ano de 1868, data da publicação da “Morgadinha”. Os acontecimentos relatados situavam-se nos primórdios da política das Obras Públicas e dos melhoramentos de António Maria Fontes Pereira de Melo, no esteio do seu amigo Rodrigo da Fonseca. O certo é que havia desconfiança, pois a memória de Costa Cabral ainda estava viva. Daí a ambiguidade do discurso do brasileiro Eusébio Seabra. Não ficara esquecida a reação da Maria da Fonte e da Patuleia contra as papeletas da ladroeira, que eram as matrizes prediais. As bandeirolas temidas pelo morgado das perdizes eram reminiscências dessa memória, que não se apagava. Em Janeiro de 68, rebentou um motim de pequenos comerciantes e proprietários em nome da moralidade pública contra o novo imposto sobre o consumo. O jornal portuense “O Primeiro de Janeiro” nasceu deste movimento… Caiu o governo regenerador de Fontes e foi convidado o Duque de Loulé para constituir um novo executivo, mas rejeitou, seguiu-se a recusa do marquês de Sá da Bandeira e seria empossado António José de Ávila, futuro Duque d’Ávila e Bolama. O artífice deste sobressalto foi o Bispo de Viseu que aqui está representado com o seu pau de marmeleiro a fazer de bengala, para o que desse e viesse. Depois do golpe, acabou o imposto, nasceu o novo Partido Reformista, cujo programa era moralizar a nação, que durou pouco, até se fundir com os Históricos, criando o Partido Progressista. E o “Album das Glórias”, pela pena de João Rialto (Guilherme de Azevedo), conta esta deliciosa história: “Possuído do desânimo que assalta os bravos que no meio da feira parlamentar se sentem tolhidos… de leis para brandirem um arrocho, o reverendo bispo abismado do que apalpou e do que viu nas regiões do poder, voltou em breve às suas montanhas e à sua diocese como deve voltar um verdadeiro crente – “com o credo na boca!”. Se bem que desde então desça em longos intervalos das serranias para a política, a tribuna parlamentar deveu-lhe ainda (…) a frase mais sintética e mais expressiva de que se pode ufanar a loquela de um povo. No meio de uma discussão desorientada na aridez cerebral da Câmara Alta, no ponto culminante da contenda, o sr. Bispo pediu a palavra e bradou: - Sr. Presidente, anda qualquer coisa no ar! Os retóricos militantes riram desta exclamação, mas na verdade nunca tiveram outra que exprimisse de forma mais exata e mais nítida o estado mental da nossa sociedade, a obscuridade do seu ponto de vista, a incerteza dos seus destinos! «Anda qualquer coisa no ar!» Quer dizer: tapemos o nariz e esperemos. Ninguém sabe de que natureza é nem donde veio este cheiro; o que se percebe perfeitamente é que nas instituições existem miasmas que corrompem a atmosfera. O reverendo Bispo de Viseu pôde não ter grandes vistas políticas, mas ao menos mostra que tem ventas. Bem faz ele persistindo em não tomar o poder para continuar a tomar bom rapé!»... Assim tenhamos tanto faro.
Quando lemos atentamente a obra de Friedrich Nietzsche e nos debruçamos com simpatia sobre a sua vida, não podemos deixar de ficar afectados pelo drama até à loucura que a questão de Deus constituiu para ele, filho de pastor protestante. Aquele que fora uma criança piedosa e estudara teologia havia de proclamar publicamente em 1882, através de um louco, em A Gaia Ciência, a morte de Deus: "Deus morreu! Deus está morto! E fomos nós que o matámos!" "Conta-se ainda - continua - que o louco entrou nesse mesmo dia em várias igrejas e aí cantou o seu requiem aeternam deo. Expulso dos templos, ripostou sempre apenas isto: 'Que são agora ainda estas igrejas senão os túmulos e os monumentos funerários de Deus?'.”
Mas, ao mesmo tempo, o júbilo perante o "acto mais grandioso da História", que foi a morte de Deus, é atravessado por estas perguntas terríveis: "Quem nos deu a esponja para apagar todo o horizonte? Que fizemos nós, quando soltámos a corrente que ligava esta terra ao sol? Para onde se dirige ela agora? Para onde vamos nós? Para longe de todos os sóis? Não estaremos a precipitar-nos para todo o sempre? E a precipitar-nos para trás, para os lados, para todos os lados? Será que ainda existe um em cima de um em baixo? Não andaremos errantes através de um nada infinito? Não estaremos a sentir o sopro do espaço vazio? Não estará agora a fazer mais frio? Não estará a ser noite para todo o sempre, e cada vez mais noite?".
Pergunto: Não tem Nietzsche razão? Não é isto que se passa hoje: desorientação, falta de sentido, a consumação do niilismo?
Deus tinha de morrer, porque o Deus anunciado pelo cristianismo oficial era o inimigo da vida. No seu O Anticristo, Nietzsche condena o cristianismo como "a única grande maldição, a única máxima corrupção interior, o único grande instinto de vingança, (...), a única imortal mancha desonrosa da humanidade...". Porquê? Porque Deus foi "degradado a contradição da vida, em vez de ser a sua glorificação e sim eterno! Em Deus declara-se a hostilidade à vida, à natureza, à vontade de viver! (...) Em Deus diviniza-se o nada, canoniza-se a vontade do não-ser...!"
Isso, porém, aconteceu, porque Jesus, o "ditoso mensageiro" que "morreu como viveu, como ensinou", "para mostrar como se deve viver", foi, segundo Nietzsche, pervertido por São Paulo e pela Igreja. Como pode ler-se nos escritos póstumos, "a Igreja é exactamente aquilo contra o que Jesus pregou e contra o que ensinou os seus discípulos a lutar." "No fundo, houve apenas um cristão, e morreu na cruz. O 'Evangelho' morreu na cruz". O que se seguiu foi uma "má nova", uma "notícia infausta", um "Disangelho." No entanto, "o cristianismo autêntico, originário, será possível em todos os tempos..." Jesus tinha acabado com o próprio conceito de "culpa", tinha "negado todo o abismo entre Deus e o homem, ele vivia essa unidade de Deus e do homem como a sua 'boa nova'". Foi São Paulo que avançou com a doutrina absurda do Deus que entregou o Filho como vítima - "que paganismo horrendo!", exclama Nietzsche. "Paulo foi o maior dos apóstolos da vingança...", e os sacerdotes enquanto senhores dominaram as consciências escravizadas através da moral do ressentimento.
Mais uma vez, não tem Nietzsche razão? Como foi possível pregar um Deus que enviou o Filho para ser crucificado e assim pagar a dívida infinita da Humanidade e Deus poder reconciliar-se com ela? Não foi a mensagem de Jesus a melhor notícia que a Humanidade alguma vez ouviu e viu: Deus é bom, Ele é Pai/Mãe de todos e só quer a alegria, a realização plena de todos? Como foi possível fazer do Evangelho (notícia boa e felicitante) um Disangelho?
Afinal, que Deus foi esse que morreu? Não tinha mesmo de ser morto? É assim que Nietzsche vai passar a vida atenazado entre a vontade prometeica do superhomem sem Deus e a constante nostalgia do Deus desconhecido. Foi ao Deus desconhecido que o jovem Nietzsche dirigiu esta oração impressionante, comovente:
"Antes de prossseguir no meu caminho e lançar o meu olhar para a frente uma vez mais, elevo, só, as minhas mãos para ti, em direcção a ti. A ti, das profundezas do meu coração, tenho dedicado altares festivos para que, em cada momento, a tua voz me pudesse chamar. Sobre esses altares estão gravadas em fogo estas palavras: 'Ao Deus desconhecido'. Teu, sou eu, embora até ao presente me tenha associado aos sacrílegos. Teu, sou eu, não obstante os laços que me puxam para o abismo. Mesmo querendo fugir, sinto-me forçado a servir-te. Eu quero conhecer-te, desconhecido. Tu, que me penetras a alma e, qual turbilhão, invades a minha vida. Tu, o incompreensível, mas meu semelhante, quero-te conhecer, só a ti quero servir". O mesmo Nietzsche confessou a Ida, a mulher do seu grande amigo F. Overbeck: "Tu nunca abandones a ideia de Deus. De certeza, tu tem-la, sem te dares conta disso. Eu abandonei-a; quero criar algo de novo, e não posso nem quero voltar atrás. Acabarei por sucumbir a esta paixão que me esfalfa constantemente. Vou-me desmoronando, mas isso não me importa."
Concluo, com aquela diatribe dura e melancólica de Nietzsche contra os padres, prevenindo contra a infelicidade, que traz consigo sempre mais infelicidade. “Até entre eles há heróis. Muitos deles sofreram demasiado: por isso, querem fazer sofrer os outros.” Também deixou escrito: “Eu só acreditaria num Deus que soubesse dançar.” Jesus não dançou em Caná?
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 6 de agosto de 2022