Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Continuo às voltas com as pilhas de livros da minha biblioteca. Desta vez, despedi-me por um pouco do fantasma de Camilo Castelo Branco, a quem voltarei em breve. Ontem à noite, depois do meu passeio higiénico, vislumbrei numa das esquinas do meu bairro um amigo do velho Calisto Elói. Confesso-vos que quase me esquecera dele. Tem a mesma pose fora de moda e a distração própria de quem há muito não vive neste mundo, mas é um apaixonado da banda desenhada e tornou-se um colecionador frenético de aventuras de Banda Desenhada. Desta vez, fiz por nos desencontramos, mas uma das nossas últimas charlas foi sobre a genealogia de Corto Maltese. Em lugar da recordação medíocre de Calisto, embrenhou-se agora na descoberta das raízes familiares portuguesas do herói de Hugo Pratt. E depois de ler as «Memórias Secretas» de Mário Cláudio (D. Quixote, 2018) entrou na busca sistemática dessa ligação lusitana. Tudo começou quando percebeu que o mundo dos fantasmas de Mário Claúdio constitui um manancial inesgotável. A vida reserva-nos muitas surpresas!... O entusiasmo do meu conhecido é tão sistemático e até doentio que ele vive presentemente num novo mundo de fantasmas – uma plataforma de ironia e pesadelo, como se se tivesse mudado em sonhos para Veneza, com “Casanova, saltando da masmorra para uma coluna, e depois para um telhado, Scarlatti vogando de rosto velado por tules vermelhos, cautério para a sua incurável antropofobia, quem poderá garantir que não resultante da obsessão cultivada pelas ninfetas órfãs, e cantoras de um coro de querubins”. A Sereníssima República dos Doges é um mundo à parte de tudo o que possamos conhecer. Entre Lorde Byron e George Sand, Ruskin e Hemingway, aparece o imprevisível Corto Maltese. Também eu, como Mário Cláudio, conheci tardiamente a personagem, já que só em 1967, na revista “Sgt. Kirk”, Hugo Pratt lhe deu corpo. E tornou-se um notável mito romanesco – nascido a 10 de julho de 1887, filho de Vânia “la Niña de Gibraltar” (de quem Ingres se enamorou) e de um marinheiro da Cornualha. Corto foi dado à luz na ilha de Malta, sede da Soberana Ordem, na descendência de um português célebre, Grão-Mestre da dita Ordem, Frei Manuel Pinto da Fonseca (1681-1773). E deve lembrar-se que foi em sua em honra que a cidade de Qormi, onde se produz o melhor pão da ilha (e quiçá da Europa), se designou como Cittá Pinto, adotando o seu brasão de armas, com cinco crescentes vermelhos, simbolizando os otomanos que o mestre venceu com a própria espada de uma só vez. Os outros três Grão-Mestres da Soberana Ordem de Malta foram: Frei Afonso de Portugal (falecido em 1207), Frei Luís Mendes de Vasconcelos (falecido em 1623) e Frei António Manoel de Vilhena (1663-1736). Pinto da Fonseca fora milagrosamente salvo, depois de uma grave doença, pela sedutora Severiana, mãe da avó Corto, Maria de los Milagros, filha de Pinto da Fonseca. Milagros não teve as glórias que seu pai gostaria que tivesse tido, pois quem sucedeu a Pinto da Fonseca pôs fim a todas as honras. E assim temos a estirpe portuguesa de Corto, que ganhou tal nome pela exiguidade do seu corpo à nascença. Com estes novos elementos, talvez compreendamos melhor o fundo aventureiro, de quem se apaixonara pela obra-prima de Thomas Morus, ou não fosse português Rafael Hitlodeu… E como chegou Corto a Portugal? Pela mão de Dinis Machado e Vasco Granja, em 8 de março de 1975, na revista Tintin. Dir-se-ia que Mário Cláudio legitimou essa opção e completou-a. Hugo Pratt faz desaparecer Corto Maltese durante a guerra de Espanha, mas não foi o fim… Não desapareceu então, como assevera uma carta de Pandora. A 3 de novembro de 1941, dizem as “Memórias Secretas”, apesar da guerra sangrenta, Corto arrendou uma pequena casa na Ilha de Burano, na lagoa de Veneza, no Adriático, onde também moraram Tarao, Pandora, Abel e Sephora. Mas aí temos matéria para mais enigma....
1. Perguntar “Que Europa queremos?”, coloca uma questão de fundo a que temos de responder: ou assumimos a nossa pertença ao mundo ocidental e fazemos da relação transatlântica um eixo fundamental de uma política de construção europeia, ou rejeitamos essa especificidade e elegemos o antiamericanismo e o imperialismo americano como causa estrutural de ressentimentos e traumas. O 11.09.2001 mudou a nossa perceção sobre o mundo em termos geoestratégicos e de sobrevivência. A que acresce a atual invasão da Ucrânia, tida como uma ameaça mundial, em especial para o ocidente.
Se a Europa é uma Babel de culturas e línguas diferentes e a sua construção assenta essencialmente nas conveniências geopolíticas e estratégicas resultantes de pressões económicas, demográficas, políticas e de segurança, não é menos verdade que com o alargamento a mais países (via União Europeia) se desejou dar um salto qualitativo de um ente de natureza marcadamente económica para uma entidade política e cultural através da adoção de um tratado constitucional. E falhou. Não só porque não existe uma generalizada consciência e cidadania europeia, mas também porque falta à Europa uma massa de coesão em questões essenciais. Por um lado, o espírito europeu é embrionário e frágil, não ultrapassa as fronteiras do Estado ou da nação querendo, cada um e todos, sempre mais (da Europa e UE) do que aquilo com que se contribui. Por outro lado, há países com visões diferentes, em que os mais desenvolvidos e poderosos não querem ver as suas estratégias muito diluídas num vasto grupo de aderentes. Sempre houve tentativas de unidade europeia que falharam, em que a Europa quis ser Europa, ou mais Europa, e não foi. Desde a República Cristiana, ao império de Carlos Magno, ambições de Carlos V, Napoleão e Hitler.
2. Se uma histórica e permanente fragmentação da Europa se assemelha a uma “manta de retalhos”, em que os mais poderosos (à escala europeia) se têm como privilegiados, de igual modo todas as grandes potências mundiais (europeias ou não) se alimentam do culto de um suposto excecionalismo, próximo ou associado ao universalismo.
Usando as palavras de Bernardo Pires de Lima (Putinlândia, editora Tinta da China): “Todas as grandes potências vivem a mitologia de um pretenso excecionalismo. Há quem tenha adotado uma missão zelosa de universalismo liberal (EUA), quem temporize a singularidade do seu critério de ascensão (China), quem não se conforme com uma civilização contida no espaço (Irão), quem não consiga aceitar o declínio (França), quem não tenha encontrado a fórmula pós-imperial (Reino Unido), quem duvide do seu Karma (Alemanha), quem se glorifique através do espelho da geografia (Brasil), quem não descole por medos vizinhos (Índia). E depois há a Rússia”. Rússia que com a revolução bolchevique descolou da sua escala clássica e foi modelo ideológico mundial, como farol de uma ideologia universal, o socialismo científico, que falhou, sendo agora promotora de um império eurasiano, através da União Eurasiática, em construção. Pretende ser, também, um modelo de diversidade na unidade. Desde o Báltico e dos Cárpatos ao Pacífico, devendo a Eurásia substituir, a prazo, a liderança dos EU. Tendo como indestrutível a ligação à Ucrânia, as tentativas desta, de parceria e de integração na UE, são tidas, pela Rússia, como contranatura e inadmissíveis, devendo juntar-se à União Eurasiática.
3. Não obstante a Rússia ser eurasiática do ponto de vista geográfico, é um país com raízes europeias, de matriz civilizacional essencialmente europeia, pelas suas fontes históricas, nomeadamente cristãs, pela sua literatura, música clássica e as belas artes em geral que são parte da erudição europeia, ocidental e mundial, pela “joia da coroa” russa, fundada por Pedro, o Grande, ser pró-europeia (São Petersburgo), pelo seu centro do poder (Moscovo) e a maioria dos russos viver na Europa, de traços mais comuns com ocidentais do que com os vizinhos do extremo asiático. Os seus grandes momentos estão mais ligados ao Velho continente, sendo legítimo pensar que é mais uma extensão da Europa que da Ásia. Urge encontrar o meio mais adequado rumo a uma coexistência e sã convivência de direitos, tradições e costumes com respeito mútuo. Antes seja, no mínimo, um parceiro estratégico, como já foi, e não a ameaça de agora. O que não implica tergiversar com a agressão da Ucrânia, havendo que pressionar e compelir a política russa a respeitar a vontade soberana de Estados independentes que optem pela UE e o Ocidente, sem prejuízo de uma paz de compromisso.
Estamos face a uma encruzilhada, em que há que fazer uma escolha fundada numa aliança sólida com quem partilhamos os mesmos princípios e valores, os agarra mais de perto ou respeita. Liberdade, dignidade e direitos humanos são valores máximos que devemos preservar e exportar. Se os perdermos ou renegarmos a recuperação de um mundo melhor é utópica. Sem excluir uma inclusão e acomodação em diversidade e responsabilidade dentro dos padrões dominantes e vigentes, rumo a uma convergência de interesses e visão estratégica comum, fazendo a escolha de um mal menor, entre vários, dada a imperfeição da natureza humana, mas em que a magna diferença está em poder criticar, corrigir, escrutinar em liberdade num Estado de Direito que se quer sempre aberto ao debate.