Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO


XIV. OS TIGRES DE MOMPRACEM


A figura de Sandokan chega-me à lembrança e às mãos, na saudosa coleção da Romano Torres. Se acabo de falar de Corto Maltese, devo recordar que recentemente foram descobertas no espólio de Hugo Pratt diversas pranchas onde se documenta o encontro com Sandokan. E invoco Fernão Mendes Pinto, de Malaca até ao Japão, ligando a ele a alusão mítica e imaginosa de Sandokan, o Tigre da Malásia, não por ele só, mas também por Gastão de Sequeira, o português que o acompanha e representa os nossos mercadores e mercenários, que povoaram a Malásia, o Bornéu e as Molucas desde o século XVI. É muito curioso encontrar em cada canto do mundo um português. Corto é neto de um português célebre e Emílio Salgari colocou como braço direito de Sandokan um outro herói portuguesíssimo. É verdade que Emílio Salgari deu-lhe originalmente um nome pouco credível de Yañes de Gomera, mas a linhagem portuguesa não oferecia dúvidas. Entre nós foi conhecido como Gastão de Sequeira (que não deve perder-se). E Mompracem, a ilha celebrizada por Sandokan, que este desejava libertar do jugo de Sir James Brooke, pode ser Mengalum, nome relacionado com o grande Fernão de Magalhães, protagonista do maior feito na história da navegação, na grande travessia do Oceano Pacífico. Magalhães teria estado em Mengalum aquando da visita ao Sultão do Brunei… A alternativa seria a ilha próxima de Kuraman, mas a minha preferência é a outra. Devo aqui recordar aqui a prolífera tradutora portuguesa Leyguarda Ferreira (1897-1966), da série Sandokan em Portugal, bem como de Max du Veuzit e Magali, além de Dickens, Walter Scott, Jane Austen e Dumas. Foi ainda colaboradora de “O Senhor Doutor – Um Amigo que Diverte, Educa e Instrui” (1933-1944), ao lado de José Gomes Ferreira (o avô Cachimbo), Odette de Saint-Maurice e Ana de Castro Osório. Do mesmo modo que Júlio Verne, Emílio Salgari (1862-1911) era um falso viajante, que nunca deambulou além do Adriático, e que colhia informações em enciclopédias, revistas, relatos de viagens e mapas de longes terras. O jovem Emílio tinha vocação marítima, mas reprovou na escola naval, fazendo-se então repórter. Nos folhetins criou um universo de intensa ação, surpresas narrativas, cenários exóticos e personagens fortes. Umberto Eco em “A misteriosa chama da Rainha Loana” (2007) invoca o seguinte “estava de novo a remexer no armário, estavam lá todos os romances de Salgari, com capas coloridas, onde por entre volutas elegantes surgiam sombrio e impiedoso o Corsário Negro, e de cabeleira preta e bonita touca delicadamente desenhada no rosto melancólico, o Sandokan dos Dois Tigres, com a sua cabeça feroz de príncipe malaio num corpo felino, a voluptuosa Surama e os prahos [pirogas] dos Piratas da Malásia. (…) Era difícil dizer se estava a redescobrir alguma coisa ou se estava simplesmente a ativar a minha memória de papel, pois fala-se muito ainda de Salgari, e críticos sofisticados dedicam-lhe artigos cheios de nostalgia. A descoberta continua.
 

Agostinho de Morais

 >> Pedras no meio do caminho no Facebook 

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE DIOGO VAZ PINTO


Lisboa –


Janeiro de dois mil e onze –, este
teu céu e dos meses frios parece
embriagar as aves derramando-se
lentamente. A vagarosa luz de tanque
morto devolve-nos o rosto
em cada um dos teus recantos de cansaço
e ângulos feridos onde ainda me acho
acumulando resíduos de uma idade
fabulosa. Os teus náufragos
à superfície destes jardins ácidos
de sombras, sombras que afiam o bico
nas lápides e os espiam, distraídos:
o olhar nesse gozo de ir pelo abandono
sob a asa do fim da tarde.


Cidade entre todas irreal, teu colo
firme resiste, sismo a sismo,
enquanto o sono nos inclina, e vagueio
como por um triste sonho de que
me cansei de acordar. Caminhos
onde teimam flores obscenas, pequenas
flores nauseabundas entre as raízes da chuva
e surdos sons, sorvendo essa luz esquecida
de que sobra um resto e vem separar-me
duas pulsações.


Nos teus cafés ardem, calmos, bebedores
de silêncio / emigrados doutros mundos,
sentados a estas mesas endoidecidas
onde entalharam pássaros, breves
compêndios e rotas que nos levaram
tão longe só para te sentirmos a falta.


Velhos rádios louvam sem descanso
a tua memória, ruínas de melodias,
notas que nos enchem o sangue, a voz,
só sublinhando este terrível encanto,
ecos e presenças deste teu belíssimo
mosaico d’escombros.
Tão perto das palavras, esse frágil
pulso: versos brancos à espera
de tudo. Ânsias, um bater d’asas,
algo que acenda o rastilho destas febres
etílicas, azias geniais.


Um puto desses de que mais gostas
tem uma navalha nas mãos e risca
casulos, retira-lhes a larva que aguardava
a beatitude do voo, e atravessa-as num fio,
ensinando-nos mais qualquer coisa
sobre isso da desilusão.


Vejo coisas, vejo-as mexer pelas tuas ruas
nestes ritmos de súplica, a doce humilhação
de figuras devorando-se umas nas outras
como em espelhos. A menina e moça,
está um pouco velha, mas o seu corpo
ainda é doce, uma leitura demorada
que chega e só fala a estranhos,
ou cala-se, cerra os olhos e, quieta,
parece dançar sozinha. Rara,
cada pequeno gesto quase histórico,
estende o seu fio de Ariadne entre
os teus bairros depredados. Este gosto
a declínio, a fim de império.
Esta hora em que todo o ocidente
receberá de um dos teus loucos
a extrema-unção.


Unpublished, 2011
© Diogo Vaz Pinto


Lisbon –


January twenty eleven – this
sky of yours and of the cold months seems
to inebriate the birds and spread out
at length. The slow light of the dead
pool hands its face back to us
at each of your tired corners and
wounded angles, in which I still find
myself gathering the residues of
a fabulous age. Your castaways
float on the surface of these acid
gardens of shadows, shadows sharpening
their beaks on tombstones, distractedly preying:
gaze that enjoys the abandonment
under the wing of late afternoon.


Unreal city among all, your firm
berth subsists from seism to seism,
while sleep leans on us, and I wander
through a sad dream
from which I’m tired of waking. Paths
where obscene flowers insistently grow, small
stinking flowers among roots of rain and
deaf sounds, sucking in the forlorn light
whose remains live between
two heartbeats.


In your cafés, drinkers of silence / 
emigrants from other worlds
serenely burn, sitting
at crazy tables engraved with birds, brief
compendia and routes that took
us so far only to make us miss you.


Old radios incessantly praise
your memory, melodies in ruins,
notes that fill up our blood, our voice,
just to impress on us your terrifying charm,
echoes and presences of your most beautiful
mosaic of debris.
So close to words, that fragile
pulse: blank verses waiting for
everything.  Yearnings, a flap of wings,
something to set fire to the fuse of these
ethylic fevers, genial indigestions.


One of those kids you most favour
holds a knife and slices
cocoons, pierces the larvae that hoped
for the beatitude of flight, and hangs them
on a string, teaching us something else
about that desillusion stuff.


I see things, I see them move about your streets
in rhythms of supplication, sweet humiliation
of self devouring figures
like in mirrors.  The maiden
has aged but her body
is still sweet, a reading that takes time
and when it arrives speaks only to strangers
or stays silent, closes her eyes and, standing still,
seems to dance alone. She’s rare,
each of her gestures is almost historic
and she pulls her Ariadne’s thread through
your plundered quarters. This taste of
decline, of end of empire.
This hour when all the west
will be given its last rites
by one of your fools.

 

© Translated by Ana Hudson, 2011
in Poems from the Portuguese