Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
A figura de Sandokan chega-me à lembrança e às mãos, na saudosa coleção da Romano Torres. Se acabo de falar de Corto Maltese, devo recordar que recentemente foram descobertas no espólio de Hugo Pratt diversas pranchas onde se documenta o encontro com Sandokan. E invoco Fernão Mendes Pinto, de Malaca até ao Japão, ligando a ele a alusão mítica e imaginosa de Sandokan, o Tigre da Malásia, não por ele só, mas também por Gastão de Sequeira, o português que o acompanha e representa os nossos mercadores e mercenários, que povoaram a Malásia, o Bornéu e as Molucas desde o século XVI. É muito curioso encontrar em cada canto do mundo um português. Corto é neto de um português célebre e Emílio Salgari colocou como braço direito de Sandokan um outro herói portuguesíssimo. É verdade que Emílio Salgari deu-lhe originalmente um nome pouco credível de Yañes de Gomera, mas a linhagem portuguesa não oferecia dúvidas. Entre nós foi conhecido como Gastão de Sequeira (que não deve perder-se). E Mompracem, a ilha celebrizada por Sandokan, que este desejava libertar do jugo de Sir James Brooke, pode ser Mengalum, nome relacionado com o grande Fernão de Magalhães, protagonista do maior feito na história da navegação, na grande travessia do Oceano Pacífico. Magalhães teria estado em Mengalum aquando da visita ao Sultão do Brunei… A alternativa seria a ilha próxima de Kuraman, mas a minha preferência é a outra. Devo aqui recordar aqui a prolífera tradutora portuguesa Leyguarda Ferreira (1897-1966), da série Sandokan em Portugal, bem como de Max du Veuzit e Magali, além de Dickens, Walter Scott, Jane Austen e Dumas. Foi ainda colaboradora de “O Senhor Doutor – Um Amigo que Diverte, Educa e Instrui” (1933-1944), ao lado de José Gomes Ferreira (o avô Cachimbo), Odette de Saint-Maurice e Ana de Castro Osório. Do mesmo modo que Júlio Verne, Emílio Salgari (1862-1911) era um falso viajante, que nunca deambulou além do Adriático, e que colhia informações em enciclopédias, revistas, relatos de viagens e mapas de longes terras. O jovem Emílio tinha vocação marítima, mas reprovou na escola naval, fazendo-se então repórter. Nos folhetins criou um universo de intensa ação, surpresas narrativas, cenários exóticos e personagens fortes. Umberto Eco em “A misteriosa chama da Rainha Loana” (2007) invoca o seguinte “estava de novo a remexer no armário, estavam lá todos os romances de Salgari, com capas coloridas, onde por entre volutas elegantes surgiam sombrio e impiedoso o Corsário Negro, e de cabeleira preta e bonita touca delicadamente desenhada no rosto melancólico, o Sandokan dos Dois Tigres, com a sua cabeça feroz de príncipe malaio num corpo felino, a voluptuosa Surama e os prahos [pirogas] dos Piratas da Malásia. (…) Era difícil dizer se estava a redescobrir alguma coisa ou se estava simplesmente a ativar a minha memória de papel, pois fala-se muito ainda de Salgari, e críticos sofisticados dedicam-lhe artigos cheios de nostalgia. A descoberta continua.
Janeiro de dois mil e onze –, este teu céu e dos meses frios parece embriagar as aves derramando-se lentamente. A vagarosa luz de tanque morto devolve-nos o rosto em cada um dos teus recantos de cansaço e ângulos feridos onde ainda me acho acumulando resíduos de uma idade fabulosa. Os teus náufragos à superfície destes jardins ácidos de sombras, sombras que afiam o bico nas lápides e os espiam, distraídos: o olhar nesse gozo de ir pelo abandono sob a asa do fim da tarde.
Cidade entre todas irreal, teu colo firme resiste, sismo a sismo, enquanto o sono nos inclina, e vagueio como por um triste sonho de que me cansei de acordar. Caminhos onde teimam flores obscenas, pequenas flores nauseabundas entre as raízes da chuva e surdos sons, sorvendo essa luz esquecida de que sobra um resto e vem separar-me duas pulsações.
Nos teus cafés ardem, calmos, bebedores de silêncio / emigrados doutros mundos, sentados a estas mesas endoidecidas onde entalharam pássaros, breves compêndios e rotas que nos levaram tão longe só para te sentirmos a falta.
Velhos rádios louvam sem descanso a tua memória, ruínas de melodias, notas que nos enchem o sangue, a voz, só sublinhando este terrível encanto, ecos e presenças deste teu belíssimo mosaico d’escombros. Tão perto das palavras, esse frágil pulso: versos brancos à espera de tudo. Ânsias, um bater d’asas, algo que acenda o rastilho destas febres etílicas, azias geniais.
Um puto desses de que mais gostas tem uma navalha nas mãos e risca casulos, retira-lhes a larva que aguardava a beatitude do voo, e atravessa-as num fio, ensinando-nos mais qualquer coisa sobre isso da desilusão.
Vejo coisas, vejo-as mexer pelas tuas ruas nestes ritmos de súplica, a doce humilhação de figuras devorando-se umas nas outras como em espelhos. A menina e moça, está um pouco velha, mas o seu corpo ainda é doce, uma leitura demorada que chega e só fala a estranhos, ou cala-se, cerra os olhos e, quieta, parece dançar sozinha. Rara, cada pequeno gesto quase histórico, estende o seu fio de Ariadne entre os teus bairros depredados. Este gosto a declínio, a fim de império. Esta hora em que todo o ocidente receberá de um dos teus loucos a extrema-unção.
January twenty eleven – this sky of yours and of the cold months seems to inebriate the birds and spread out at length. The slow light of the dead pool hands its face back to us at each of your tired corners and wounded angles, in which I still find myself gathering the residues of a fabulous age. Your castaways float on the surface of these acid gardens of shadows, shadows sharpening their beaks on tombstones, distractedly preying: gaze that enjoys the abandonment under the wing of late afternoon.
Unreal city among all, your firm berth subsists from seism to seism, while sleep leans on us, and I wander through a sad dream from which I’m tired of waking. Paths where obscene flowers insistently grow, small stinking flowers among roots of rain and deaf sounds, sucking in the forlorn light whose remains live between two heartbeats.
In your cafés, drinkers of silence / emigrants from other worlds serenely burn, sitting at crazy tables engraved with birds, brief compendia and routes that took us so far only to make us miss you.
Old radios incessantly praise your memory, melodies in ruins, notes that fill up our blood, our voice, just to impress on us your terrifying charm, echoes and presences of your most beautiful mosaic of debris. So close to words, that fragile pulse: blank verses waiting for everything. Yearnings, a flap of wings, something to set fire to the fuse of these ethylic fevers, genial indigestions.
One of those kids you most favour holds a knife and slices cocoons, pierces the larvae that hoped for the beatitude of flight, and hangs them on a string, teaching us something else about that desillusion stuff.
I see things, I see them move about your streets in rhythms of supplication, sweet humiliation of self devouring figures like in mirrors. The maiden has aged but her body is still sweet, a reading that takes time and when it arrives speaks only to strangers or stays silent, closes her eyes and, standing still, seems to dance alone. She’s rare, each of her gestures is almost historic and she pulls her Ariadne’s thread through your plundered quarters. This taste of decline, of end of empire. This hour when all the west will be given its last rites by one of your fools.