Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
É inesgotável a leitura da «Peregrinação». E ainda há muito caminho a fazer para compreendermos a importância desta obra única. Este é o fantasma com quem mais gosto de lidar. É um espírito autêntico, daqueles que a história nos reserva e podemos encontrar onde menos se espera. Ele, de facto, deixou toda a sua vida bem marcada no tempo e se houve quem duvidasse da sua existência e da sua verdade, fica-nos a certeza de que a personagem de António Faria é mesmo meio pessoa meio fantasma, por ser uma espécie de alter ego de Fernão Mendes. No seu caso nunca saberemos a verdade absoluta, mas sabemos, de ciência certa, que tudo o que ele passou foi algo que não deixou de acontecer, qualquer que seja o protagonista… Fernão Mendes Pinto construiu, no dizer de António José Saraiva, «um Oriente espantosamente humano, com estilo próprio. Um Oriente que não é feito só de cidades, templos e esculturas, mas também do estilo falado, de etiquetas humanas, de sentimentos típicos». Eis uma vantagem fantástica. Hoje sabemos da verosimilhança de tudo quanto nos relatou. Pode até ter acontecido que não sendo ele, Fernão Mendes, o real protagonista de tudo, facilmente entendemos que tudo ocorreu de facto. E os estudiosos desse período são os primeiros a considerar que não é possível compreender o que João de Barros ou Diogo do Couto nos disseram sem ler Fernão Mendes Pinto. Enquanto as personagens dos cronistas talvez tenham feito o que dizem, as da “Peregrinação” marcaram mesmo a sociedade em que viveram e ainda hoje são relevantes…
O Padre Adelino Ascenso, missionário experimentado e culto com larga experiência no Japão, tem tido oportunidade de explicar urbi et orbi o difícil romance de um profundo entendido nas relações com os portugueses Shusaku Endo “Silêncio” (que Martin Scorsese levou à teka), sobre a apostasia de um jesuíta português no século XVII: “O Senhor não ficará em silêncio. Mesmo admitindo que Ele se mantenha calado, toda a minha vida até hoje falará d’Ele para todo o sempre”. Estava em causa a barreira de cultura entre uma religião estrangeira e a cultura japonesa. No entanto, o cristianismo no Japão é heterogéneo e surpreendente – há os mártires e os cristãos escondidos, os que deram testemunho e os outros, que preferiram mergulhar na vida japonesa, dilacerados entre a fidelidade do gesto e a fidelidade do princípio, tendo como fundo o silêncio dramático da dúvida e do remorso. “Podes pisar-me!” – parecia dizer Cristo representado no “fumie” usado para consumar a negação. Afinal, há o mistério do silêncio – ausência de palavras, audição do universo e fidelidade íntima. A distância cultural é mais forte do que os julgamentos precipitados. Fernão Mendes deve ser lembrado (como António Alçada gostava de fazer), sobre uma célebre conversa do Mestre Belchior com o rei japonês do Bungo: «o padre lhe tornou que muito satisfeito estava de seu bom propósito, mas que se lembrasse que a vida não estava nas mãos dos homens, pois todos eram mortais, e se ele acertasse de morrer antes (de se batizar), onde iria a sua alma? Ao que ele, sorrindo-se, disse: - Deus o sabe…».
Com as tremendas responsabilidades que pesam sobre ele, o Papa Francisco olha para o futuro: o seu futuro, o futuro da Igreja, o futuro do mundo…
1. Qual o futuro de Francisco? Ele sabe que tem 85 anos e que anda em cadeira de rodas e que há rumores de renúncia no ar, tão desejada por alguns sectores ultraconservadores que anseiam por ver-se livres dele. De qualquer forma, mesmo sentindo-se um pouco diminuído, não está nos seus planos a renúncia para breve. Disse-o recentemente a duas jornalistas mexicanas, María Antonieta Collins e Valentina Alazraki: “Não tenho nenhuma intenção de renunciar. Para já, não.”
Repetiu a mesma coisa na conferência de imprensa no regresso da recente “peregrinação penitencial” ao Canadá. Confessou que uma eventual renúncia “não é uma catástrofe: pode-se mudar de Papa, isso não é um problema”. De qualquer forma, acrescentou, “não pensei nessa possibilidade. Isso não quer dizer, porém, que não venha a pensar nisso num futuro próximo.” Evidentemente, não poderá “continuar com o mesmo ritmo de viagens de antes. Com a minha idade e com esta limitação, devo poupar-me um pouco para servir a Igreja ou até pensar na possibilidade de me afastar”. De qualquer forma, declarou: “continuarei a fazer viagens e a estar perto das pessoas, pois julgo que a proximidade é um modo de servir.” Deu como quase certa a sua viagem ao Kazaquistão em Setembro — “é uma viagem tranquila, é um congresso” — e reiterou a sua intenção de ir à Ucrânia e realizar a visita à República Democrática do Congo e ao Sudão do Sul, prevista para os princípios de Julho e adiada por causa da recuperação do joelho.
2. Entretanto, a ida ao Kazaquistão, de 13 a 15 de Setembro próximo, foi confirmada pelo Vaticano. Para participar no VII Congresso de Líderes de Religiões Mundiais e Tradicionais.
Precisamente aí poderia dar-se o tão desejado encontro com o Patriarca de Moscovo, Cirilo, que, desgraçadamente, continua a abençoar a invasão e a guerra da Ucrânia. Francisco, pelo contrário, com mais de 70 intervenções a favor da paz, tem manifestado disponibilidade para visitar tanto Kiev como Moscovo, colocando a diplomacia da Santa Sé ao serviço de uma mediação em ordem a uma paz justa e duradoura. Como acaba de declarar o Secretário de Estado, cardeal Pietro Parolin, à revista italiana de geopolítica “Limes”, “o Papa gostaria de ir a Kiev para levar consolação e esperança às pessoas afectadas pela guerra”, anunciando igualmente a sua disposição para ir a Moscovo, “desde que haja condições que sejam realmente úteis para a paz.” Afirmou: “A diplomacia da Santa Sé não está vinculada a um Estado mas a uma realidade de direito internacional que não tem interesses políticos, económicos, militares. Põe-se ao serviço do bispo de Roma, que é o pastor da Igreja universal. A Igreja é pacifista porque crê e luta pela paz”. Parolin reconheceu que o diálogo entre Roma e Moscovo é “um diálogo difícil, que avança com pequenos passos e também experimenta altos e baixos”, mas “não está interrompido”.
Francisco vive sobremaneira preocupado com o perigo nuclear. Por isso, não se cansa de declarar como doutrina oficial da Igreja que “o uso e a posse de armas atómicas são imorais”.
3. Francisco deixa uma marca indelével na Igreja. Ele não quer uma Igreja “autorreferencial”, ela tem de estar aberta ao mundo, “em saída”. A liturgia tem de ser viva, não um ritual seco. Contra uma Igreja piramidal, centrada na hierarquia, afirma uma Igreja sinodal, na qual todos têm voz, sem tabus. Certamente a Igreja tem de ser fiel à tradição, mas uma tradição viva, contra o imobilismo... E, aqui, voltando à citada conferência de imprensa, fica um exemplo de abertura. Uma das perguntas incidiu sobre os contraceptivos. E Francisco aproveitou para reflectir sobre o dogma e a moral em vias de desenvolvimento, citando S. Vicente de Lérins, no século X: “a verdadeira doutrina para avançar e desenvolver-se não pode ficar parada, isto é, consolida-se com o tempo, mas sempre em contínuo progresso”. “Uma Igreja que não desenvolve o seu pensamento em sentido eclesial é uma Igreja que recua, e este é o problema hoje de tantos que se dizem tradicionais”, impedindo que a Igreja avance, apenas “porque sempre se fez assim.” São “tradicionalistas”, “retrógrados”. Deste modo, Francisco mostrou a abertura actual à contracepção.
Ainda sobre a renúncia. Francisco é jesuíta, e há um ponto essencial para um jesuíta: o discernimento. Ele irá, portanto, segundo as circunstâncias, discernindo, para tomar a decisão certa. Como ficou dito, irá ao Cazaquistão em Setembro. Em 28 de Agosto, visitará Aquila, cidade italiana onde se encontra o túmulo de Celestino V, o último Papa, antes de Bento XVI, a renunciar. Mas, logo no dia seguinte, os cardeais todos do mundo estão convocados para uma reunião. Francisco quer aconselhar-se sobre a reforma da Cúria e, sobretudo, o processo sinodal.
É minha convicção que ele, excepto no caso de total incapacidade, não renunciará enquanto Bento XVI viver. E tudo fará para poder estar presente, em Outubro de 2023, no Sínodo sobre a sinodalidade.
4. Como ele próprio disse, quando vir que “não posso continuar ou prejudico ou sou um estorvo”, espera “ajuda” para tomar a decisão de retirar-se. E, retirado, não será “Papa emérito”, mas “bispo emérito de Roma”. E que fará? “Gostaria de atender confissões e ir visitar os doentes”.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 13 de agosto de 2022