PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO
XVII. ALECRIM E MANJERONA
Um dos fantasmas mais perturbadores da nossa história cultural é António José da Silva, o Judeu (1705-1739), nascido no engenho do avô materno, Baltazar Rodrigues Coutinho, no bairro da Covanca, em São João de Meriti, no Rio de Janeiro. Seu pai era João Mendes da Silva, advogado e poeta. Ainda muito jovem foi viver para a freguesia da Candelária. Cristão-novo, sendo vítima da perseguição que dizimou a comunidade do Rio em 1712. Contudo, conseguiu manter a fé judaica secretamente. Sua mãe, Lourença Coutinho, foi deportada para Portugal, acusada de judaísmo pela Inquisição. Seu Pai veio para Portugal para acompanhar o processo da mulher, exercendo a atividade de advogado. António José estuda, provavelmente, no Colégio de Santo Antão e, em 1722, inscreve-se para estudar Leis e Cânones na Universidade de Coimbra. Em 1726, interrompe os estudos, regressando a Lisboa onde é acusado num primeiro processo inquisitorial. Também sua mãe, Lourença Coutinho, e os seus dois irmãos, André e Baltasar, são acusados de práticas judaizantes e condenados à abjuração. Em 13 de outubro, António é preso nos Estaus. Apesar de amigo do influente diplomata Alexandre de Gusmão, Conselheiro de D. João V, foi barbaramente torturado, tendo ficado inválido durante algumas semanas, sendo obrigado a abjurar no Auto-de-fé de outubro desse ano. Foi posto em liberdade, o que não aconteceu com sua mãe, libertada em 1729, depois de ter sido torturada e de ser considerada penitente num auto-de-fé. António José tem os seus bens confiscados e é condenado a pena de cárcere, hábito penitencial perpétuo e exigência de ser instruído nos mistérios da fé. Então voltou à dramaturgia depois de um curto período como causídico no escritório de seu pai com o irmão Baltasar. As suas sátiras têm grande sucesso, pela eficácia da crítica ao ridículo da sociedade, com referências frequentes à mitologia greco-latina. A única música operática que sobreviveu foi composta por António Teixeira. O sucesso artístico agravou, porém, a perseguição de que foi alvo. Nem a proteção do Conde da Ericeira impediu a perseguição.
Luís de Freitas Branco considerou António José da Silva o verdadeiro fundador da ópera nacional. Sem ele teriam decorrido trezentos anos da nossa história do Teatro, depois de Gil Vicente até Garrett, sem uma dramaturgia digna de registo. Pode dizer-se que António José da Silva simboliza no teatro português o período que corresponde ao reinado de D. João V, em pleno ideal barroco, envolvendo a luxúria e a ostentação de uma faustosa corte, beneficiária dos lucros do ouro do Brasil. Havia um chocante contraste entre a opulência e as misérias de uma sociedade frágil, pobre e atrasada e a Inquisição atuava impiedosamente, perseguindo judeus e cristãos-novos. Em 1733 representa no Teatro do Bairro Alto a sua primeira ópera, “A Vida do Grande D. Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança”. Morava então no Socorro, próximo do Teatro do Pátio das Arcas, que funcionava onde hoje é a rua Augusta, fundado por Fernão Dias de La Torre cerca de 1590. O teatro ardera em 1697, mas fora reconstruído como importante pátio de comédias, cujas receitas revertiam a favor do Hospital de Todos os Santos. Sente-se a influência da comédia espanhola, nomeadamente de Lope de Vega e Calderon de la Barca, designadamente pelo espírito inconformista segundo os ideais barrocos e os cânones usados em Itália e nos palcos europeus. O artista vive o espírito do tempo segundo uma arte menos retórica e mais ocupada com o deleite dos sentidos. António José da Silva escreve sobretudo em prosa, sendo que “a prosa deixara de se usar no teatro desde Sá de Miranda, Camões e António Ferreira”; inserindo a música na intriga dramática, de acordo com o modelo de transição entre a comédia espanhola e o melodrama italiano. No Teatro do Bairro Alto, numa sala do Conde de Soure, na rua da Rosa, adaptada às lides teatrais, chamada Casa dos Bonecos, António José faz representar entre 1733 e 1739 as oito óperas que lhe são atribuídas: D. Quixote (1733), Vida de Esopo (1734), Os Encantos de Medeia (1735), Anfitrião ou Júpiter e Alcmena e O Labirinto de Creta (1736), Guerras do Alecrim e Manjerona e As Variedades de Proteu (1737), Precipício de Faetonte (1738), esta última quando o autor se encontrava encerrado nos cárceres da Inquisição. Em 1735, António José da Silva casa-se com Leonor Maria de Carvalho, antiga penitenciada em Valhadolid, de quem tem uma filha Lourença. As suas peças e representações obtêm grande sucesso de público e reconhecimento nos meios cultos. Após a morte do Conde da Ericeira foi denunciado à Inquisição. Em 1737 é preso com a mulher, a mãe, o irmão e a cunhada durante as cerimónias judaicas de Yom Kipur. Após um longo processo é condenado em 1739 de convicto, negativo e relapso, sendo relaxado em carne, garrotado e queimado. Em 1744, Francisco Luís Ameno publica “Teatro Cómico Português” (2 volumes) onde se incluem as oito obras de António José da Silva, sem menção de autoria. Trata-se do exemplo de quem representa a vitalidade da cultura portuguesa, impondo-se contra a cegueira da intolerância. Falando das extraordinárias guerras, com música de António Teixeira (1707-1774), estamos perante uma ópera joco-séria, na qual dois galantes, pinga-amores e caça-dotes, D. Fuas e D. Gilvaz procuram cair nas boas graças de duas irmãs ricas, D. Clóris e D. Nise, utilizando o criado de Gil, Semicúpio, cheio de graça, entusiasmo e genica. As meninas andam disfarçadas, mas revelam a sua identidade por levarem uma um ramo de alecrim, outra um ramo de manjerona. Semicúpio arma estratagemas para introduzir o patrão na casa da pretendida, mas acaba por se enamorar de Sevadilha, criada de Clóris. Se o avarento D. Lançarote, tio das meninas, deseja casá-las com seu sobrinho D. Tibúrcio não consegue graças às artimanhas de Semicúpio – e no final, desfeitos os equívocos da comédia de enganos, casam-se os namorados e Semicúpio com Sevadilha.
Agostinho de Morais
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