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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO

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XX. O IMPAGÁVEL ABRANHOS

 

Há um fantasma, destes que cultivam a presença nestas páginas, que encanita sobremaneira Fradique, ainda que produzido na mesma oficina. É Alípio Severo Abranhos, nascido em Penafiel no Natal de 1826 (o ano da Carta Constitucional), tantas vezes esquecido na panóplia queiroziana. Acácio e Pacheco batem-no aos pontos, mas são da mesma genealogia. Será ciúme? Será apenas irritação ou alergia? É tudo. O certo é que este Abranhos nasceu tarde e com uma marca de legitimidade queiroziana algo tardia e enfraquecida, graças à recriação do filho José Maria do genial autor. Filho de um alfaiate e de uma camponesa, era sobrinho de uma tia dos Noronhas de Penafiel que o adotou. A lista de marcas deixadas pela personagem na história pátria perdem-se no horizonte e no número.

Eleito por Freixo de Espada à Cinta, em condições muito especiais, passaria dos Reformadores aos Nacionais (sem grande dificuldade, pois a essência dos dois era a mesma) e ficou conhecida uma frase lapidar, sendo ele Ministro da Marinha e Ultramar: “Moçambique situa-se na costa ocidental de África”, ignorando ingenuamente a monstruosidade que dizia. António Enes disse um dia que do Terreiro do Paço era difícil ver a lonjura colonial. Uma vez compreendida pelo Abranhos a gaffe, este retificou: “a ocidente ou oriente, a latitude não altera a substância e a justeza de minhas propostas”.

Quanto ao mais, se as questões sociais o preocupavam, logo propôs que os pobres fossem recolhidos em celas, onde lhes seriam ofertadas rações de caldo iguais às dos prisioneiros, de modo que o país tivesse melhor imagem, havendo que isolar o indigente. Mas nos Anais dos lugares seletos está a sua grande metáfora: “o povo assemelha-se a um elefante e o elefante a uma criança. Por isso, para quê combater um monstro invencível, se é tão simples iludi-lo”.

Z. Zagalo foi o mais célebre dos secretários particulares (com renovada imortalização por Artur Portela Filho). E há um mistério dificílimo de descobrir. De facto, de todos os fantasmas que vimos apenas Abranhos nunca mais foi visto por viv’alma. Só Z. Zagalo aparece, apesar de muito pouco e de modo fugidio. De Abranhos, nada. Até mesmo o monumento funerário que ainda se mantém no Cemitério dos Prazeres, apenas apresenta uma figura. E quem o conheceu assevera a pés juntos que o fácies da homenagem pétrea do escultor Craveiro que, ao contrário da de Pacheco continua bem visível, segundo as más-línguas, é o de Zagalo e não de Abranhos. Seriam eles uma e a mesma pessoa?

É evidente que o eterno secretário nega, mas, de facto, tudo leva a crer que Abranhos se tenha recusado a pousar para a posteridade, ou, se calhar, não teve tempo para o efeito, tendo pedido a seu fiel secretário que o fizesse por ele, o que realmente pode ter acontecido. E é de Alípio (ou de Z. Zagalo) esta afirmação bizarra: “Os governos democráticos conseguem tudo, com mais segurança e admiração da plebe, dizendo com doçura, por aqui se fazem favor, acreditem que é o bom caminho, assim o povo amolece na indiferença e assim podemos exercer a soberania em proveito próprio”. Os dois fantasmas aqui se apresentam como raras almas penadas.

 

Agostinho de Morais

 

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ANTOLOGIA

 

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INDO A ERASMO DE ROTERDÃO…
por Camilo Martins de Oliveira

 

Dizia eu que um dos motivos do meu regresso ao espólio do meu homónimo Camilo Maria fora uma edição discográfica inspirada no "Elogio da Loucura" de Erasmo de Roterdão". (Mais uma iniciativa de Jordi Savall, na sua preocupação com itinerários de diálogos pluriculturais). Aquele que foi amigo de Thomas More e Damião de Góis, entre outros, e que foi considerado um "reformador" da Igreja - com Melanchthon e Lutero, e outros mais (no entanto, contra o próprio Lutero recusou-se a abandonar a fé católica) -, era um homem de sageza e espírito aberto e benevolente, que se manteve fiel à confissão pública de uma Igreja que, por vezes "oficialmente" pouco atenta ao mundo e receosa dos homens e da história, nem sempre foi capaz de entender os ideais de informação racional e crítica, e de diálogo, do humanismo renascentista. Terá muitas vezes sentido - ele que recusou o barrete cardinalício proposto pelo papa Paulo III, mas foi conselheiro de Carlos V e amigo do papa Adriano VI - quanta fé e serenidade inteligente são por vezes necessárias para se cultivar e manter bem viva a fidelidade à misteriosa comunhão dos santos.

 

Foi este apego simultâneo à fidelidade na fé e na comunhão da Igreja, mas também ao exercício da liberdade responsável - já que, como disse S. Paulo aos Coríntios, "em cada um se manifestam os dons do Espírito para o bem comum" - que levou o Marquês de Sarolea a interessar-se por Erasmo, como, mais tarde, pelo pensamento eclesiológico do Padre Yves Congar, dominicano perseguido, depois perito do Concílio Vaticano II e, finalmente, cardeal.

 

Apesar de nos desviar deste discurso - e só por citar Erasmo de Roterdão (Erasmus van Rotterdam) e o seu "elogio" ou "Laus Stultitiae" ou, ainda, "Encomium Moriae" - não resisto a traduzir uns passos de uma carta de Camilo Maria à Princesa de... aqui vai:

«Posto que o bom senso se deve à experiência, a quem deve ele ser reconhecido? Ao Sábio que nada empreende, por modéstia ou timidez de carácter; ou ao Louco, isento de modéstia, que não pode ser tímido porque não conhece o perigo? O Sábio refugia-se nos livros dos antigos, e nada aí aprende, além de frias abstrações; mas o louco, abordando as realidades e os perigos, adquire, a meu ver, o verdadeiro bom senso...". "Ocorre-me, minha muito querida, este passo de Erasmo, por me ter lembrado da nossa visita, em Roma, à igreja de San Luigi dei Francesi. Parámos longamente a contemplar "O chamamento (ou a vocação) de S.Mateus" de Caravaggio: um raio de sol entra pelo lado superior direito do quadro, apanha a mão direita, indicadora, de Cristo, e vai iluminar a mão de Levi (Mateus) que ao seu próprio peito pergunta: sou eu?

 

No Evangelho atribuído a Mateus (pouco importa se o seu autor material foi a mesma pessoa) o episódio é descrito com intensa brevidade: "Ao passar (Jesus), viu Levi, filho de Alfeu, sentado no posto de cobrança, e disse-lhe: Segue-me. Ele levantou-se e seguiu Jesus". Eis um ato de loucura simples: Levi abandona-se ao perigo, a um salto no desconhecido...

 

Mas não será o desconhecido metade, pelo menos das nossas vidas? O que é, afinal, a realidade? Aquilo que presumimos nosso e segurável, indiscutível, inalterável?

 

Por me teres dito que relesse o evangelho de S. Mateus, dei com os versículos seguintes a este relato: "Encontrando-se Jesus à mesa em casa de Levi, muitos publicanos e pecadores estavam também à mesa com Jesus... ao verem-no comer com eles, os fariseus interrogavam os discípulos: Porque é que ele come com publicanos e pecadores?... Jesus respondeu-lhes: eu não vim chamar os justos mas os pecadores!"

 

Jesus Cristo, pelo seu desafio das convenções e da morte, era certamente louco. Isso mesmo concluirá Moria (Loucura, em latim) no "Elogio". Como se, parafraseando S. Paulo, dissesse que a loucura de Deus é mais sábia do que a sabedoria dos homens.

 

As lembranças são como uma sobremesa de cerejas... com "champagne" a refrescar a gorja e a memória e as cerejinhas a puxarem por uma e por outra!

 

A esperança dos pecadores, levou-me de Roma a Washington, ao “Regresso do filho pródigo" do Bartolomé Murillo, exposto na National Gallery of Art. Não sei porquê, há nessa cena de um pai velhinho que se debruça para abraçar um filho suplicante, não só uma representação, quiçá edificante, da misericórdia de Deus. Há mais: há uma alegoria do Amor. Tout court. Como escreveu um grande poeta português: "Transforma-se o amador na cousa amada..."

 

Transforma-se, digo agora, o misericordioso no perdoado... A misericórdia - chamemos-lhe mesmo perdão - está na essência do Amor. Não é possível perdoar sem sentir o que é a sublime alegria de se ser perdoado. Não quero ser blasfemo: mas muitas vezes me ocorreu que a compaixão de Deus - esse sofrer (com os homens) que é a crucifixão e morte de Jesus e que se repete na eucaristia - é Deus que perdoa e pede perdão. É a única resposta possível à existência do mal. Fora disto, tudo é absurdo. Nem haveria ressurreição.

 

Também de misericórdia recíproca se alimenta afinal o amor humano. Recordo aqueles versos que há anos te escrevi:

     Amo a transparência  
     do teu olhar magoado
     e guardo em meu silêncio
     a memória desse olhar...
     e é tão bom tê-lo em mim
     assim guardado
     por muito que me pese
     o seu pesar:
     tão leve é o peso
     das penas partilhadas
     e tão manso e doce
     podê-las partilhar.


Camilo Martins de Oliveira

 

Obs.: Reposição de texto publicado em 01.02.13 neste blogue.