Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Que disseram Ramalho e Eça sobre o “Mistério da Estrada de Sintra”?
«O que pensamos hoje (1884) do romance que escrevemos há catorze anos?... Pensamos simplesmente — louvores a Deus! — que ele é execrável; e nenhum de nós, quer como romancista, quer como crítico, deseja, nem ao seu pior inimigo, um livro igual. Porque nele há um pouco de tudo quanto um romancista lhe não deveria pôr e quase tudo quanto um crítico lhe deveria tirar».
E lembravam a seguinte história: «Conta-se que Murat, sendo rei de Nápoles, mandara pendurar na sala do trono o seu antigo chicote de postilhão, e muitas vezes, apontando para o cetro, mostrava depois o açoite, gostando de repetir: Comecei por ali. Esta gloriosa história confirma o nosso parecer, sem com isto querermos dizer que ela se aplique às nossas pessoas. Como trono temos ainda a mesma velha cadeira em que escrevíamos há quinze anos; não temos dossel que nos cubra; e as nossas cabeças, que embranquecem, não se cingem por enquanto de coroa alguma, nem de louros, nem de Nápoles».
Percebemos a necessidade de se demarcarem de um entretenimento. A verdade, porém, é que o folhetim se procurava demarcar do receituário em vigor. Leia-se o termo do enredo. Luísa despede-se do mundo. «Entregando-lhe em seguida o capuz e o manto de casimira em que fora envolvida: — Adeus, meu primo — disse-lhe ela deixando-se beijar na testa — adeus! Peça a Deus que me perdoe, e aos vivos que me esqueçam. Aos primeiros passos que ela deu para lá da porta, esta fechou-se do mesmo modo por que havia sido aberta, sem que ninguém mais fosse visto, tendo mostrado um buraco lôbrego, negro e profundo como a goela de um abismo, e a amante de Rytmel entrou no claustro. Os ferrolhos interiores rangeram sucessivamente nos anéis, expedindo uns sons entrecortados, semelhantes a soluços arrancados de uma garganta de ferro». Depois, o mascarado alto passou parte dessa noite na vila, esperando a mala-posta. E ouviram-se os sinos das carmelitas pedindo caridade. E o conde de W... recebeu em Bruxelas a carta de sua mulher: «Destituo-me voluntariamente da minha posição na sociedade. De todos os direitos que porventura pudesse ter, um só peço que não seja contestado: o direito de acabar. Suplico-lhe que me permita desaparecer, e que acredite na sinceridade da minha gratidão eterna».
E é aqui que este folhetim dá uma volta de 360 graus. Parece estranha uma tão grande guinada. É que, como bem se recordam, tudo começou com uma estranha descoberta: a de que Carlos Fradique Mendes está vivo. Quando muitos pensavam que ele estava riscado do mundo dos vivos, foi descoberto para sua grande irritação a almoçar num pacato restaurante na proximidade do Passeio Público. E eis que o encontramos de novo. Agora, já sabemos que Luísa se encerrou no claustro de um mosteiro, preferindo desvanecer-se a seguir o caminho de Emma ou de Anna. Fradique Mendes, esse, partiu para uma quinta dos subúrbios de Lisboa para escrever, «debaixo das árvores e de bruços na relva», um livro em colaboração, com o qual prometeu o extermínio a pontapés de todos os trambolhos a que as escolas literárias dominantes têm querido sujeitar as invioláveis liberdades do espírito. «Presenciar as profundas comoções romanescas da vida é como ter assistido a um grande naufrágio: sente-se então a necessidade consoladora das coisas pacíficas: então mais que nunca se reconhece que o ser humano só pode ter a felicidade no dever cumprido».
E fica apenas por saber qual a pergunta mistério deste folhetim?
1. Em 2006, realizou-se, em Santa Maria da Feira, o V Simpósio “Sete Sóis Sete Luas”, que teve como tema “Qual é o Deus do Mediterrâneo?” Foram conferencistas Salman Rushdie, Cláudio Torres e eu próprio. O debate, moderado por Carlos Magno, durou quatro horas, com uma assistência atenta, que esgotou todos os lugares disponíveis da auditório da Biblioteca Municipal.
Evidentemente, a figura central era Salman Rushdie contra quem tinha sido lançada em 1989 pelo ayatollah Khomeini uma fatwa, isto é, um decreto religioso, condenando-o à morte por blasfémia. Trinta e três anos depois, no passado dia 12 de Agosto, Rushdie foi esfaqueado, quando se preparava para uma palestra em Nova Iorque. O atacante é Hadi Matar, um homem de 24 anos, de origem libanesa. A fatwa nunca foi levantada e havia até um prémio de mais de 3 milhões de dólares para quem assassinasse o acusado de blasfémia por causa do livro Os Versículos Satânicos.
Quais são esses famosos versículos? Dois que não figuram nas versões ortodoxas do Alcorão. Lê-se, de facto, na sura (capítulo) 53, versículos 19 e 20, da Vulgata: “E que vos parecem al-Lat, Al-Uzz e a outra, Manat, a terceira?”. A estes versículos, na tradução francesa de Régis Blanchère, que sigo, acrescentam-se mais dois (20bis e 20ter), os “satânicos”: “Elas são as Deusas Sublimes e a sua intercessão é certamente desejada.” Tratava-se de divindades do politeísmo pré-islâmico, representando, portanto, aquilo que Maomé mais fustigou por causa do seu monoteísmo puro, “sem associados”.
Se a negação do monoteísmo é o único pecado sem perdão, pergunta-se: como pôde o Profeta declarar sublimes aquelas deusas? A explicação está em que estes versículos foram transmitidos ao Profeta por Satanás, e o modo usado por Deus para acabar com eles, versículos ímpios, consiste em “abrogá-los”, de tal modo que não figuram na Vulgata. Mas então surge uma nova pergunta, segundo Quentin Ludwig: “Porque é que Deus não esteve à altura de ditar imediatamente o versículo perfeito? Porque é que Deus deixou Satanás exprimir-se? E se Maomé se deixou levar por Satanás uma vez, quem pode dizer que não existem outros versículos satânicos no Alcorão?”
2. Aqui chegados, é fundamental relembrar Hans Küng: “Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões sem critérios éticos globais. Não haverá sobrevivência do nosso planeta sem um ethos (attitude ética) global, um ethos mundial.”
E impõe-se, em ordem a um debate sem confusões, uma distinção essencial. Há a religiosidade, que, no movimento de transcendimento que pergunta pelo fundamento último, sentido último, procurando salvação, se defronta com o Sagrado, o Mistério. Crente é aquele que se entrega confiadamente a esse Mistério-Sagrado, do qual espera precisamente sentido último, salvação. Depois, neste enquadramento, entende-se que apareçam as religiões institucionais, que são construções humanas enquanto mediações entre o Mistério ou Sagrado, Deus, e os homens e as mulheres e entre estes e o Mistério, Deus. Assim, as religiões têm de tudo: do melhor e do pior, como se constata através da História. Nesta distinção entre religiosidade, religiões, e Sagrado-Mistério, entende-se que as religiões estão referidas ao Sagrado, ao Mistério, Deus, mas não são Deus, o Sagrado, o Mistério, que todas tentam dizer, mas a todas transcende.
A partir destes pressupostos, percebe-se que o diálogo inter-religioso, essencial para o futuro da Humanidade, tem de assentar nalguns pilares fundamentais. Todas as religiões, desde que não se oponham ao Humanum, mas, pelo contrário, o dignifiquem e promovam, têm verdade. Outro pilar diz que todas são relativas (do verbo irregular latino refero, relatum), num duplo sentido: nasceram e situam-se num determinado contexto histórico e social e, por outro lado, estão relacionadas, referidas ao Sagrado, ao Absoluto, Deus. Estão referidas ao Absoluto, Deus, mas nenhuma o possui, pois Deus enquanto Mistério último está sempre para lá de tudo quanto possamos pensar ou dizer dEle. Precisamente por isso, uma vez que nenhuma o possui na sua plenitude, devem dialogar para, todas juntas, tentarem dizer menos mal o Mistério, Deus, que a todos convoca. Por isso, por paradoxal que pareça, do diálogo fazem parte também os ateus, porque, estando de fora, mais facilmente podem ajudar os crentes a ver a superstição e a inumanidade que tantas vezes envenenam as religiões.
Exigência intrínseca da religião na sua verdade é a ética e o compromisso com os direitos humanos, a realização plena de todas as pessoas, a salvaguarda da Terra. A violência em nome da religião contradiz a sua essência, que é a salvação. Aliás, antes de sermos crentes ou não, o que a todos nos une é a humanidade comum e a dignidade de pessoas, de tal modo que, face a um Deus que legitimasse a violência, o ódio, mandasse matar em seu nome, impunha-se uma obrigação moral: ser ateu.
E dois princípios irrenunciáveis: a leitura não literal, mas histórico-crítica dos livros sagrados — Deus não falou directamente com ninguém —, e a laicidade do Estado — só mediante a neutralidade religiosa do Estado é possível garantir a liberdade religiosa de todos sem discriminação. Mas laicidade não é laicismo, que pretende retirar a religião do espaço público.
Esta crónica despede-se com saudades até Outubro.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 27 de agosto de 2022