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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

QUE FUTURO PARA A IGREJA?

 

Nas sociedades, também na Igreja, o pior é o poder enquanto domínio. Jesus, a pedido deles, ensinou os discípulos a rezar. Ensinou-lhes o “Pai nosso”, dirigindo-se a Deus como  Pai/Mãe e não como Senhor, Rei ou Imperador, e o seu reino não é um império, mas a Humanidade toda enquanto comunidade de filhos e filhas. A revolução de Jesus está no novo encontro com Deus, omnipotente, mas não com a omnipotência do arbitrário e da dominação, mas enquanto Força infinita de criar e de servir, para que todos se possam realizar plenamente.


E volto a Jean Delumeau, historiador eminente, católico convicto, que deixou obras essenciais sobre o passado do cristianismo, e, como só quem conhece e reflecte sobre o passado pode projectar o futuro, uma, luminosa, sobre o futuro, em 2015: L’avenir de Dieu (O futuro de Deus). E lá está: no contexto da imagem terrífica de Deus, que tem de ser revista, “hoje, os cristãos podem mais seguramente afirmar: ou os homens perdoam uns aos outros ou criaram já muitas vezes e, ai!, criam hoje também o inferno na Terra.” Hoje, quando já vivemos numa aldeia planetária, “descobrimos que somos forçosamente solidários uns com os outros e, para não perecermos, estamos condenados a unir-nos e a erguer uma governança mundial que deveria ter os meios de ser obedecida.” E indo ao núcleo da questão: qual é o grande mal do cristianismo? A sua ligação ao poder. “Pelas suas consequências, uma das mais trágicas falsas vias para as Igrejas cristãs foi, depois do fim das perseguições, a ligação entre o poder imperial romano e a hierarquia eclesiástica, simbolizada e fortificada pela coroação de Carlos Magno pelo Papa.” Não se deve esquecer que desde sempre tinha havido, no Império Romano e fora dele, ligação e amálgama entre o poder religioso e o poder político. Foram, por isso, necessários muitos séculos e conflitos incessantes para que  “o religioso e o político aceitem por fim distanciar-se um do outro, num equlíbrio aliás instável e que é necessário reajustar continuamente.” De qualquer modo, “desde o início do século IV, a Igreja tornou-se um poder.” Ora, “esta deriva perigosa”, que durante muito tempo só a poucos chocou, ainda não terminou. A Igreja Católica  “tem atrás de si um grande e belo passado de escritos religiosos sublimes, inumeráveis iniciativas caritativas e múltiplas obras de arte. Realizou uma obra civilizadora grandiosa e mundial. Deu à Humanidade legiões de santos e santas, canonizados ou não, incansavelmente dedicados ao serviço do próximo. Mas a sua grande fraqueza foi ter-se constituído em poder… Ora, é preciso que de ora em diante abandone o poder, pratique a humildade para poder de novo convencer e dar-se a si mesma estruturas mais flexíveis do que no passado e, portanto, capazes de evoluir. Porque hoje é necessário aceitar e dominar evoluções inevitáveis.”


Nesta espécie de “testamento” (Delumeau tinha 92 anos), apresenta então “pistas e proposições” para o futuro.


O governo da Igreja tem de “ser  profundamente repensado e reconstruído”, devendo estar “mais atento do que no passado aos desejos e aspirações dos fiéis”. Não deveriam estes “poder escolher os seus representantes que constituiriam uma espécie de parlamento da catolicidade?”


Há uma série de reformas urgentes que “a civilização em que estamos mergulhados impõe”. Por exemplo, “não impor o celibato aos padres (o que não impediria em nada a existência de fiéis que livremente escolham o celibato, para se consagrar inteiramente à Igreja e à oração)”.  O que pode impedir a ordenação de homens e mulheres casados para presidir às comunidades e à Eucaristia?


Impõe-se “valorizar o lugar da mulher na Igreja”, indo aliás ao encontro de várias práticas das primeiras comunidades cristãs. “Esquece-se demasiado que o cristianismo, historicamente, contribuiu em grande medida para a libertação da mulher.” Desejava, pois, “com uma forte convicção, a reabilitação plena e completa da mulher no catolicismo”. Estamos na civilização da “inovação absoluta, a que devemos fazer face, desembaraçando-nos dos reflexos, desconfianças e interditos herdados de um passado superado. Ora, não encontraremos nos Evangellhos nem razões teológicas nem maldições eternas a sancionar o ‘sexo fraco’. Atendendo à evolução recente e inédita da nossa civilização, o catolicismo deve, portanto, dar finalmente à mulher todo o seu lugar, em igualdade com o homem, nos ministérios e no governo de uma religião que se quer universal e comum a homens e mulheres. O êxito de uma nova evangelização passa, na minha opinião, pela reabilitação completa da mulher nas Igrejas cristãs. Por imperativo da minha alma e consciência, e antes do silêncio que em breve a morte me imporá, quero lançar um grito de alarme: na minha opinião, a salvação e o futuro do cristianismo, e nomeadamente do catolicismo, passam por esta completa reabilitação da mulher.” Nesta linha, multiplicam-se os testemunhos de teólogos eminentes e de bispos.


A doutrina do pecado original contradiz a evolução e o Evangelho. É preciso mudar a linguagem, pois ninguém entende hoje expressões como: “desceu aos infernos”, “subiu aos céus”, “ressurreição da carne”…


Impõe-se o diálogo ecuménico e inter-religioso. Não se pode ignorar a ciência, e é fundamental estar atento às novas tecnologias, e refiro concretamente as NBIC (nanotecnoligias, biotecnologias, inteligência artificial, neurociências)…

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 30 de julho de 2022

PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO


I. UM ENCONTRO INVEROSÍMIL


O que vou contar é a pura verdade do que aconteceu, mas com é fácil de verificar, estamos perante um episódio que tem os contornos do inverosímil… Um velho amigo meu, com muitos anos de conhecimento e trabalho conjunto no domínio complexo e etéreo do património do Estado ou da fazenda pública, tinha comigo um trato que era o de nos encontramos periodicamente num restaurante da baixa – “O Sancho”. Havia duas características secretas de que ninguém suspeitava desse meu amigo, uma tinha a ver com a sua paixão por Eça de Queiroz, e a outra era a escrita, sob pseudónimo, de intrincados romances policiais, em parceria com um primo seu. No primeiro caso, acumulava prémios em concursos entre queirosianos, por escrever os melhores textos ao estilo do mestre de “Os Maias”. No segundo, publicava ao ritmo de um metrónomo, complexos exercícios dignos de ombrear com Sir Conan Doyle e Agatha Christie… Num desses encontros periódicos, algo de muito estranho aconteceu.


A refeição foi vulgar, como sempre era: sopa de legumes e um linguado clássico. Falámos de Finanças Públicas, do Dicionário de Administração Pública, que dirigia com proficiência, e retivemos por momentos a nossa atenção relativamente a Carlos Fradique Mendes, cuja personalidade literária considerávamos como boa companhia.


Mas nesse momento, houve um daqueles ápices de surpresa e de comunicação, como acontece talvez em sessões suspeitas com mesas de pé de galo. E sentimos, que alguém nos olhava com suspeita atenção. Estava sentado num dos cantos do restaurante, só, lendo distraidamente um livro antigo, que depois contatámos tratar-se de uma edição de bolso das “Fleurs du Mal” de Baudelaire da Gallimard, com o inevitável monograma NRF. Virámos o nosso olhar para esse canto da sala, e apercebemo-nos de que a personagem chamou apressadamente o chefe de mesa, terminando com urgência o leite-creme queimado que tinha na sua frente.


O meu interlocutor perguntou-me entre dentes: “- Será ele?”. Mas quando me virei já só o vi de costas, a sair apressadamente. Lembrando-me da primeira impressão e ligando-a à figura que me era dado ver, respondi maquinalmente: “– Não tenho qualquer dúvida, é mesmo ele!”. E nesse momento, a personagem conseguiu ouvir a minha afirmação”. Sei hoje que não me perdoaria esse reconhecimento.


De facto, eu sabia que o seu espírito vogava pela cidade. Continuava a existir, apesar de levar quase cem anos de dissimulação. Numa palavra, Carlos Fradique Mendes projetara-se para além da existência literária. E a sua efígie era em tudo semelhante àquela que o caricaturista António aqui nos deixa, e que reproduzo. Era de facto Fradique, ele mesmo, que encontrámos nesse dia já longínquo. Ao fim de muitos anos de presença fugitiva, eu e o meu interlocutor descobrimo-lo, ali, bem próximo de nós. Poucos já dariam por ele, mas o nosso conhecimento da figura não nos oferecia dúvidas. Mas nesse dia, começaria uma tremenda aventura, de que amanhã continuarei a dar-vos conta.


Agostinho de Morais


>> Pedras no meio do caminho no Facebook

A VIDA DOS LIVROS

De 1 a 7 de agosto de 2022.


«Os Sermões» do Padre António Vieira são na língua portuguesa o exemplo do momento mais alto atingido na prosa por uma língua moderna.

 

A VEZ DO PADRE VIEIRA
Depois de termos sido guiados por Francisco de Holanda na jornada romana, é a vez de trazermos à nossa caminhada o Padre António Vieira, encontrado, com especial agrado em diversos recantos desta peregrinação. E cito-o numa carta de cerca de 1670, onde diz com ironia: “Embarquei-me, com esta última, trinta e cinco vezes e sei pouco: que farão os que viram o mar só do Cais da Pedra até Sacavém”. De facto, Vieira teve uma vida viajada e aventurosa, que originou textos “tão diferentes na matéria e lugares em que foram recitados”. Se a missão diplomática de que foi encarregado em 1650 teve como objetivo a paz com a Espanha e a tentativa de casamento de D. Teodósio com a filha de Filipe IV, bem como os projetos relativos aos cristãos-novos, a estada iniciada em agosto de 1669 teve como finalidade as diligências para a canonização do padre Inácio de Azevedo e dos trinta e nove jesuítas assassinados em 1570 por corsários calvinistas quando iam para o Brasil. Tratou-se, porém, de uma missão formalmente modesta (que só viria a ter resultado no século XIX), até porque o regente D. Pedro não concedeu autorização para passagem por Inglaterra em visita a D. Catarina, ficando igualmente prejudicado o encontro em França com o seu amigo Duarte Ribeiro de Macedo. Contudo, nesse ano de 1669 Vieira usa da sua influência e concentra esforços no combate junto da Cúria às práticas do Santo Ofício em Portugal de que o próprio vinha sendo vítima, assim como na defesa dos cristãos-novos e ainda na procura de recursos financeiros para a criação da Companhia Comercial da Índia. Era o tempo em que o Padre João Paulo Oliva desempenhava funções de Superior Geral da Companhia de Jesus e pregador oficial do colégio dos Cardeais. Com a fama trazida pelo português de orador carismático, nasce a ideia de lhe dar encargo de pregador para audiências esmeradas.


OS SERMÕES ITALIANOS
Os primeiros sermões deste período não alcançam, contudo, o sucesso esperado, uma vez que são proferidos em português. O Sermão do Mandato e os alusivos a Santo António ditos em Santo António dos Portugueses são notáveis. “É verdade que Portugal era um cantinho ou um canteirinho da Europa; mas, nesse cantinho da terra pura e mimosa de Deus, quis o céu depositar a fé, que dali se havia de derivar a todas essas vastíssimas terras, introduzida com tanto valor, cultivada com tanto trabalho, regada com tanto sangue, recolhida com tantos suores e metida, finalmente, nos celeiros da Igreja debaixo das chaves de Pedro, com tanta glória”. Mas Vieira sabia também que “luzir português entre portugueses e muito menos luzir com a sua luz, é coisa muito dificultosa na nossa terra”. O pregador circula pela cidade e nós procuramos as suas referências: “Mais gosto de ver em Roma as ruínas e o desengano do que foi a vaidade e variedade do que é, e com isto me parece o mundo mais estreito e a minha cela mais larga”. Só em 1672 na festa de S. Francisco d’Assis o padre prega pela primeira vez em italiano e a fama desde logo se difunde. Na solenidade de S. Estanislau partilha o tratamento do tema com o próprio Padre Oliva, que não esconde a grande admiração pelo português. Confessará Vieira que foi em resultado de muita insistência que cometeu a audácia de usar a língua italiana. Chegarão até nós dez sermões e um discurso em língua italiana, havendo mais onze sermões em português. É o encontro com a Rainha Cristina Alexandra da Suécia (1626-1689) e a participação do orador sagrado nos salões desta que irão torná-lo em Roma um reconhecido e maravilhoso artista, confirmando a grande fama trazida desde onde exercera o seu múnus. Quando passamos pela igreja de Salvatore in Lauro, na via dei Coronari, sentimos a presença da Rainha (que viveu no palácio Farnese) e os ecos do orador sagrado. A rua, inaugurada por Sisto IV (sempre continuamos a encontrá-lo), foi da predileção dos romeiros, que aqui encontravam objetos religiosos, e hoje antiguidades e restaurantes.


A RAINHA CRISTINA DA SUÉCIA
Muito provavelmente foi a audição de um dos sermões num ofício religioso em Salvatore in Lauro que suscitou o convite para que em cinco terças feiras da Quaresma de 1674 pregasse breves reflexões sobre o tema “Conhece-te a ti mesmo”, a propósito das cinco pedras da funda de David – a que acresceu o discurso “Lágrimas de Heráclito”. Neste caso, coube a Vieira participar num jogo citadino que se traduzia num confronto entre o riso e o choro, cabendo ao português defender o choro na perspetiva de Heráclito e a Jerónimo Cattaneo o riso em Demócrito. “Se a primeira propriedade do racional é o risível, o exercício próprio do mesmo racional, e o uso da razão, é o pranto” – usando o pregador um subterfúgio pelo qual tornava o choro um meio natural de ligar razão e espírito. Aliás, quanto ao tema do conhecimento, a propósito de David, a primeira pedra de cor branca simbolizaria o conhecimento e a transparência; a segunda, de cor negra, representaria a dor do bem perdido; a terceira, vermelha, cor da vergonha, corresponderia ao “pejo do mal cometido”; a quarta, o temor do castigo futuro, sendo amarela e pálida; e trataria a quinta da esperança do gosto eterno, simbolizada pelo verde, cor da esperança – “spes eterni gaudii”. O verdadeiro conhecimento de David e a sua força provinham do fundo da sua alma. “Levai na memória a pedra do conhecimento próprio, e lembrai-vos que sois almas, e almas mortais: levai a pedra da dor do bem perdido, e doei-vos do pecado: levai a pedra do mal cometido, e envergonhai-vos de Deus e dos homens, e de vós mesmos: levai a pedra do temor do castigo eterno, temei mais que todas as pedras do Inferno, o ódio e as blasfémias contra Deus. Levai finalmente, a pedra da esperança do céu, e vivei como que espera salvar-se, e gozar o sumo bem, sumamente”. Este é o período mais alto do pregador, que conquista plenamente as cortes refinadas do Papa Clemente X e de Cristina da Suécia. É aquele em que Vieira, com a proteção papal e livre do controlo da Inquisição portuguesa, pode retomar a perspetiva profético-religiosa que culminará na “Chave dos Profetas”, cuja originalidade e sentido profundo o tempo tem vindo a revelar. O certo é que, já no regresso do clérigo a Portugal, Cristina da Suécia convidará o Padre António Vieira para seu confessor: “Agora, mais que nunca é V. Reverência desejado de uma senhora que por servir a Cristo não quis reinar…”, segundo o próprio Superior Geral em epístola datada de 12 de setembro de 1680. O orador sagrado recusa, porém, o convite, alegando a idade avançada e as doenças que continuam a fazer-se sentir. Nota-se que há uma preocupação dos amigos de Vieira em Roma no sentido de o libertar dos efeitos das ações nefastas dos adversários, que, de facto, continuarão a fazer-se sentir até ao fim dos seus dias, já na Bahia. O pregador compreende a situação, mas prefere terminar a escrita e a publicação da sua obra, que em parte significativa conseguirá.

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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