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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

MEDITANDO E PENSANDO PORTUGAL

  

 

36. TRIPLA JUNÇÃO DAS PLACAS EUROASIÁTICA, AFRICANA E AMERICANA


As fronteiras do nosso país restringem-se a Portugal continental e aos arquipélagos dos Açores e da Madeira, com uma localização singular da sua superfície terrestre.


Se a parte continental de Portugal se situa na placa tectónica euroasiática, vulgo placa europeia, tal não sucede com os arquipélagos madeirense e açoriano, cuja especificidade faz justiça à sua autonomia, sem questionar a sua identificação com o todo nacional. 


Enquanto a ilha da Madeira, do Porto Santo, as ilhas Desertas e as Selvagens se situam na placa africana, mais perto da costa de África que da europeia, há também uma ilha açoriana localizada nesta placa (Santa Maria), duas na norte-americana (Flores e Corvo) e seis na euroasiática (São Miguel, Pico, Faial, São Jorge, Terceira e Graciosa), numa tripla junção (ou espécie de cruzamento) de três placas litosféricas ou tectónicas. 


Não excluindo a controvérsia, há autores que falam numa microplaca dos Açores, com as ilhas do grupo central e oriental, ao lado de outros para quem São Miguel, Terceira e Graciosa estão edificadas sobre a placa euroasiática, estando o Faial, Pico, Santa Maria e as ilhotas das Formigas na placa africana. A que se juntam as dezenas de ilhéus em volta das ilhas.


Açores, Madeira, Canárias, Cabo Verde e o Noroeste Africano são parte da Macaronésia, englobando as ilhas do Atlântico Norte, perto da Europa e África, uma área de cooperação internacional entre vários países, com possibilidades de alargamento ou de uma cooperação especial com a União Europeia (Cabo Verde, por exemplo, por alinhamento e arrastamento com os Açores, Madeira e Canárias) ou União Africana (Madeira e Canárias).     


Não esquecendo a impressionante zona económica exclusiva daqui resultante para Portugal, mais impressiva se atendíveis as reivindicações marítimas portuguesas baseadas na extensão da plataforma continental. Sendo a ZEE açoriana e madeirense mais extensa que a de Portugal continental. 


Apesar da sua não dispersão geográfica descontínua por vários continentes e oceanos, sobressai nesta tripla junção ou cruzamento de três placas tectónicas um potencial de relevância geopolítica e geoestratégica que entra em rutura com convenções clássicas cada vez mais ultrapassadas, desde logo em termos geográficos, questionando-nos sobre onde começa e acaba a Europa, Portugal, a UE, África e a América e em que, curiosamente, centenas de anos após, o mar português se agiganta crescentemente como um valor acrescentado, em interligação com os portugueses continentais e insulares que o habitam em redor ou rodeados de água por todos os lados.  

 

30.09.22
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

OBSERVATÓRIO

  


Era final de setembro. As palavras aconchegavam-se à nova estação e com as mãos no queixo de cada uma, espreitavam a oficina do dentro de onde nasciam.

Logo pela manhã levantara-se um motim fustigado por teimas.

- Eu acabei e tu estás viva! ó palavra que não foi por tua audácia que brilhaste! Antes, insensata, chagaste à tua grande casa e não tinhas criada que te ajudasse na lida, e ainda querias descansos domingueiros e que o teu sétimo dia fosse o teu sétimo céu! Tu que ainda desconheces a tua terra natal! Minha querida palavra, não esqueças que eu acabei, mas sou a tua psique!

- A que ilusão te pegas, palavra abandonada? Julgas que me importa que possas viver rugindo para dentro de mim como um leão em jaula? Não, não me importa, eu, a nova palavra, sou absolutamente surda como o gelo e só me interessam as palavras em que sou compreendida na minha língua. Tu, tu és do século passado, e eu de todos os séculos serei!

- Pois te digo que tudo pode ter passado, que em minha vida já não se ache marca de minha nascença, que todas as casas me sejam alheias e que os templos me não acolham mais, o que me importa? se é setembro e todas seremos uma alameda de folhas caídas, pátria antiga de quando as estações ainda eram o que tu julgas que nelas serás. Eu acabei, sim, mas pobre és tu, que ainda ontem te lavavas em lágrimas de esquecida, e não entendes hoje, que um dia, te cairá a vida como uma antiga moeda.

Era final de setembro. As palavras aconchegavam-se à nova estação, e, com as mãos no queixo de cada uma, espreitavam a oficina do dentro de onde nasciam.

- Amadas minhas, que vos falo de um olimpo, conciliem-se!

Somos todas amantes de onde e aonde o amor se retira e se achega. Somos filhas de reis e cantoras de rua, divinas e vulgares, mas sempre escolhidas umas para as outras.

Olhai que só todas nós, conhecemos o ponto mais profundo quando o ponto se faz ponto e o verso se solta num sorriso,

devagar.

 

Teresa Bracinha Vieira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Viver na margem.


“Notre vrai moi n’est pas tout entier en nous.”, Jean-Jacques Rousseau


No livro Journal du dehors Annie Ernaux escreve acerca da sua vida em Cergy-Pontoise (Ville Nouvelle situada a quarenta quilómetros de Paris). Para a escritora a chegada a um lugar que emergiu do nada em poucos anos, desprovido de toda memória, com construções espalhadas por um imenso território, de limites incertos, foi uma experiência avassaladora. (Ernaux 2021, 7)


Ao tentar ser testemunha de um território novo e marginal, povoado por pessoas que vêm de muitos sítios, Ernaux verifica que não há qualquer ordem ou hierarquia no que diz respeito às experiências que se têm do mundo. As sensações e as reflexões que cada lugar, cada pessoa ou cada objeto suscitam são independentes de qualquer valor cultural e continuam sempre a conservar a sua opacidade e o seu enigma. Através de uma escrita que fotografa o real Ernaux afirma: “…l’hypermarché offre autant de sens et de vérité humaine que la salle de concert.”(Ernaux 2021, 9)


Através da observação pura, Ernaux descobre em si memórias, obsessões e escolhas nunca antes pensadas ou concretizadas. A observação do mundo exterior transporta a autora para o seu mundo particular e íntimo. Na opinião de Ernaux, é o mundo que nos rodeia que nos revela quem realmente somos.


Ora, para Fiona Handyside, no texto “J’aimé vivre là: Re-thinking the parisian suburbs in Annie Ernaux and Eric Rohmer” (Nottingham French Studies, Vol. 48 No. 2, Summer 2009) Ernaux consegue fazer do subúrbio um lugar capaz de ligar elementos díspares e capaz de reformular a maneira como nos vemos como nos relacionamos com os outros. A representação que Annie Ernaux faz de Cergy-Pontoise é capaz de fundir o observador e o observado; o interior e o exterior; a multidão e o indivíduo; a cidade e o campo. Para Handyside, tal representação é muito importante porque é acima de tudo uma visão humana e termina com as oposições que estruturam historicamente a paisagem urbana - a periferia está normalmente associada a conceitos como segregação, simplificação, fragmentação, incompletude e inacessibilidade.


Mas a cidade nova de Ernaux surge neste livro como um lugar que junta e que leva à descoberta. A história de Ernaux entrelaça-se com as histórias dos demais e a manifestação do seu eu dá-se num território inesperadamente descentral e alheio. Ao de repente estar no outro lado, num espaço imenso, desconhecido e à margem, a autora sente-se muito mais próxima do mundo e dos outros: “Pourquoi je raconte, décris, cette scène, comme d’autres qui figurent dans ces pages. Qu’est-ce que je cherche à toute force dans la realité? (…) Ou bien, noter les gestes, les attitudes, les paroles de gens que je rencontre me donne l’illusion d’être proche d’eux.” (Ernaux 2021, 36)


Ana Ruepp

BRUXELAS, 1976

  


Rue Belliard, Berlaymont, Grand Place – na Primavera amena de 1976, tive o gosto de participar numa delegação portuguesa que visitou as instituições comunitárias. Paulo de Pitta e Cunha coordenava o grupo, com eficácia e entusiasmo. Estava em causa a preparação da adesão de Portugal às Comunidades Europeias – com Aníbal Cavaco Silva, Marcelo Rebelo de Sousa, Jorge Miranda, Pedro Roseta… E aí nos encontrámos com o saudoso Camilo Martins de Oliveira – incansável cicerone no labirinto comunitário. Quando tive a notícia da inesperada morte de Paulo de Pitta e Cunha veio-me à memória essa inesquecível missão. E a essa lembrança juntaram-se muitas outras, como tive oportunidade de recordar com o filho Tiago, em S. Sebastião da Pedreira.


Pitta e Cunha foi meu professor no antigo Curso Complementar e sob a sua direção iniciei funções como Assistente na Faculdade de Direito, depois do concurso público de 1977. E volto à lembrança de Bruxelas e às esperanças e expectativas sobre a ligação necessária entre a construção da democracia e a opção europeia. Entre duas reuniões era esse o tema fundamental das nossas conversas – poder garantir que a nova Constituição portuguesa, que se aprovaria dentro de poucos dias, pudesse ser um fator de equidade e de eficiência, de cidadania e de pluralismo. Na transição dos anos sessenta e setenta, a adesão à AELE-EFTA constituíra um impulso decisivo (como se demonstraria no médio prazo) para a abertura política. Pode dizer-se hoje que nessa negociação se iniciou verdadeiramente a democratização. E hoje, com o triste caminho do Brexit, ficámos longe do que muitos considerámos natural – a convergência luso-britânica, que foi decisiva quer no sucesso da EFTA, quer, depois da adesão do Reino Unido às Comunidades Europeias, na negociação para a entrada dos países ibéricos. Com a argúcia e o sentido prático que se lhe conhecia, fomos ouvindo os ecos do seu ceticismo, e muitos dos seus receios confirmaram-se. Apesar de tudo, a integração dos Estados da Península Ibérica foi a que melhores resultados obteve, quer na economia quer na política.


E as memórias sucedem-se, avultando o papel decisivo que Paulo de Pitta e Cunha desempenhou na criação do moderno sistema fiscal português, superando os velhos sistemas herdados das cédulas da décima de guerra de 1641 (que ainda estudei), da reforma de Salazar dos rendimentos normais e da estrutura de Teixeira Ribeiro. Foi ele quem modernizou o sistema tributário português, europeizando-o – e é preciso que as suas lições sejam mais ouvidas, para que muitos erros cometidos sejam superados e para que a justiça e a equidade prevaleçam sobre a tentação exclusiva do crescimento das receitas. Como sempre, ao longo da vida, continuava apaixonado pelo estudo da economia internacional, sobretudo num momento em que a incerteza estava na ordem do dia – após a crise financeira, a pandemia e guerra, numa conjuntura ditada pelo regresso da inflação e da subida dos juros. E a evolução da guerra demonstrava a importância renovada da União Europeia, como instância em que a economia e a política se encontram cada vez mais. A independência política dos Estados modernos é complexa, por isso afirmava com grande coerência: “Advirta-se (…) que a revisão (dos Tratados) constitui um processo moroso e não isento de riscos. E sublinhe-se que o êxito desta progressão da integração depende da retomada de um espírito de solidariedade, o qual esteve bem vivo nos primórdios da construção europeia, mas que hoje, infelizmente, se encontra ofuscado pela reafirmação dos egoísmos nacionais”. Reli, nos últimos dias, os escritos de Pitta e Cunha. Encontrei uma coerência irrepreensível. E o seu sentido crítico merece especial atenção, em nome do equilíbrio entre os elementos nacionais e supranacionais, públicos e privados, de modo a que possamos ser mais produtivos e menos dependentes, em nome do desenvolvimento humano.

 

Guilherme d’Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS

  

De 26 de setembro a 2 de outubro de 2022


A compreensão do Constitucionalismo moderno português obriga-nos a ler as principais memórias do século XIX, entre as quais encontramos as do Marquês de Fronteira e Alorna.


UM REPOSITÓRIO FUNDAMENTAL
Quando lemos as “Memórias do Marquês de Fronteira e Alorna”, D. José Trazimundo (1802-1881) (Imprensa da Universidade, Coimbra, 1926), notável repositório de um dos períodos mais complexos da história portuguesa dos últimos dois séculos, apercebemo-nos da importância da Revolução de 1820 e da Constituição a que deu origem em setembro de 1822, há exatamente duzentos anos. Se, por vezes, há a tentação injusta de dar menor importância a esses acontecimentos, em virtude de uma vigência muito curta da nossa primeira lei fundamental do moderno constitucionalismo, a verdade é que, como fica evidenciado no testemunho do memorialista, independentemente das resistências, a história política portuguesa alterou-se irreversivelmente depois de 1820-22. Lemos o texto das Memórias no capítulo X da parte II: “As Cortes ordinárias deviam reunir-se no fim do ano, o espírito público ocupava-se com as eleições, e já o partido exaltado guerreava os nomes dos deputados mais célebres da Constituinte, que tinham defendido as prerrogativas da Coroa e pugnado por uma constituição monárquica. Denominavam o partido moderado de corcunda, tendo a triste ideia de acreditar que os moderados se curvavam mais ante o trono do que eles. Apesar de todos os esforços empregados pelos patriotas, o partido denominado corcunda foi dignamente representado nas Câmaras ordinárias. As eleições fizeram-se regularmente. Foi a primeira vez que assisti oficialmente a este ato e que votei sendo um dos escrutinadores na mesa eleitoral da minha paróquia”. Apercebemo-nos das incertezas que rodearam os acontecimentos, e se invoco a personalidade do Marquês de Fronteira, é para demonstrar como uma figura influente manteve, com sacrifício da própria vida pessoal, uma coerente determinação na defesa de um constitucionalismo moderno, na linha das revoluções inglesa, americana e francesa. O rei D. João VI apenas veio para o Continente em vésperas da nova Constituição ser votada, legitimada por uma eleição de cidadãos, e esse regresso levaria a uma alteração de circunstâncias: a independência do Brasil tornara-se inexorável de um modo não violento, em desenvolvimento da existência do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, desde 16 de dezembro de 1815.


PORTUGAL RECUPERA INDEPENDÊNCIA
Para o Portugal europeu tratava-se de pôr termo a uma situação em que, na prática, a colónia prevalecia sobre o colonizador histórico. Por outro lado, a Revolução regeneradora do Porto de 24 de agosto de 1820 (a primeira Regeneração) visara pôr termo a uma subalternização relativamente à Inglaterra, evidenciada na humilhação em que se traduzira a condenação à morte e execução do General Gomes Freire de Andrade e dos mártires da pátria. Afinal, a presença inglesa, que tivera efeitos positivos vários, prolongara-se para além do tolerável. As Memórias do Marquês de Fronteira permitem o conhecimento de como era Portugal no início do século XIX, dando-nos um retrato impressivo sobre os elementos de continuidade e descontinuidade de um Estado que se preparava para seguir os novos caminhos europeus – na política, na economia, na sociedade e na cultura. Se D. José Trazimundo descendia dos Távoras, vítimas trágicas do pombalismo, a verdade é que tinha a influência e o gérmen do francesismo, representados por D. Leonor de Almeida, Alcipe, a célebre Marquesa de Alorna, sua avó. Estamos, assim, perante uma curiosíssima síntese compromissória, que será simbolizada pelo jovem Almeida Garrett, defensor da sementeira da modernização da cultura portuguesa, ao ritmo da renovação europeia. E se falamos de uma síntese, apercebemo-nos de que a modernização da sociedade portuguesa será profundamente influenciada não só pela resistência nacional contra o expansionismo napoleónico, mas também pela influência do cosmopolitismo do novo pensamento liberal. Portanto, o caso português corresponde a um exercício de geometria variável – em que a influência das revoluções inglesa, americana e francesa converge com a afirmação de uma identidade nacional aberta e independente, não nacionalista, centrada num patriotismo construído na afirmação de um caminho próprio gerado pelo constitucionalismo moderno de 1822, enaltecido por Garrett, e completado por Alexandre Herculano, o qual apesar de não ter apoiado a Revolução de Setembro de 1836 e de defender a Carta Constitucional outorgada por D, Pedro em 1826, tornou-se um partidário ativo da Constituição de 1838 (contra Costa Cabral), que influenciaria o duradouro Ato Adicional de 1852, na segunda Regeneração.


TENTAR PERCEBER
Trago à colação o exemplo do Marquês de Fronteira, braço direito do Duque da Terceira, para evidenciar que a Revolução de 1820 e o que se lhe seguiu foi um acontecimento definidor de um novo paradigma constitucional em Portugal. Se D. José Trazimundo se tornou defensor do Cartismo, com uma carreira relevante durante o consulado de Costa Cabral, nos antípodas da posição de Herculano, foi sempre um constitucionalista no sentido moderno, usando mesmo a expressão “democrata” para se designar, demarcando-se das tentativas ocorridas antes do início dos trabalhos da Assembleia Constituinte, designadamente em novembro de 1821, conciliadoras com a lógica das antigas Cortes Gerais da Nação. A Revolução de 1820 não foi, assim, um acontecimento subalterno, limitado no tempo. A guerra civil contra D. Miguel e a tentativa de regresso às instituições do absolutismo (1828-1834) não conseguiram que se apagasse a consagração de um constitucionalismo novo – que passou a marcar a tradição cultural portuguesa: a soberania indivisível e inalienável da nação; a prevalência dos direitos de cidadania, no lugar dos deveres dos súbditos; os direitos e deveres individuais; a liberdade, a segurança e a propriedade como direitos fundamentais; o primado do Direito, a proibição da prisão sem culpa formada; a inviolabilidade do domicílio, a liberdade de expressão e de imprensa; o direito de petição; o direito ao sigilo da correspondência, o direito de acesso a cargos públicos; a igualdade perante a lei; a justiça penal e a proibição de penas cruéis e infamantes; a separação e interdependência de poderes legislativo, executivo e judicial (compreendendo-se que Montesquieu tenha sido o autor mais citado pelos constituintes). Não se entenda, porém, que o que aqui se afirma significa o carácter imaculado da lei fundamental de 1822. A subalternização completa do rei ou o parlamentarismo de uma só Câmara tornaram muito frágil a nossa primeira Constituição, como ficaria claro no longo período de conflito e de instabilidade até 1851. Contudo, o que fica evidente é que na história política e cultural portuguesa abriu-se em 1820 um novo capítulo, que chega aos nossos dias – colocando esse momento fundador ao mesmo nível das Revoluções consagradoras dos Estados de direito baseados na cidadania e nos direitos e liberdades fundamenais.     

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE HELGA MOREIRA

  

 

Um facto é apenas um facto


Um facto é apenas um facto se se entende?
É estar de novo entre o passado e o presente?
Que coisas são os mortos da união?
O que foi ter vivido e já não?


Coisas que antecedem outras, por vezes
se outro rumo houver, outra razão,
não serei já tanto o que quiseres
a mim, a tudo, ponho em questão


até ao facto de aqui sentada
na avenida Brasil ensolarada
ao céu aberta, aberta ao mar


entre gente vulgar sou a desastrada
a que cuida e cuida só do olhar
para lado nenhum, qualquer lugar


in Tumulto, 2003


Is a fact just a fact


Is a fact just a fact if understood?
Is it stood again between past and present?
What are these dead who unite us?
What was it to have lived and live no longer?


Things that precede other things, sometimes
if there’s another route, another reason,
I may not be all you wanted of me,
I question everything, myself


even the fact I’m sitting here
in this sunlit Brazil Avenue
open to the sky, the sea


I’m the awkward one amongst ordinary people,
the one who cares and cares only to look
nowhere, anywhere


© Translated by Ana Hudson, 2011
in Poems from the Portuguese

 

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
RETRATOS PREMONITÓRIOS


1.
 Regressado da Arrábida (ando agora muito cronológico), o meu primeiro ato "oficial" foi receber Hanna Schygulla, a atriz de Fassbinder, convidada pelo Festival Temps d'Image para um espetáculo no CCB, onde de resto não fui, salpicado por alguns filmes dela exibidos na Cinemateca. Passou de raspão ("Storia di Piera") e vi-a de raspão, porque Deus põe e o homem dispõe, ao contrário do que por aí se diz. Mas, à roda de um copo, a propósito já não sei bem de quê (é mentira, lembro-me muito bem), citou ela alguém que se espantava com o humano pudor que leva a ocultar o sexo mas a exibir a cara, "a coisa mais nua que todos temos". A frase valeu o encontro, porque nunca me tinha posto o problema em tais termos. É certo que nem todas as culturas tratam o rosto com despudor, mas as que o ocultam são literalmente mal vistas. Ou é sinal de repressões intoleráveis (as mulheres nos países islâmicos, as "burqas", para não vir mais perto e recordar os véus das viúvas que ainda são do meu tempo) ou de disfarce intolerável. "Embuçado nota bem / que hoje não fica aqui ninguém / embuçado nesta sala", para ser tão trivial quanto possível.


Mas é bem certo que quem vê sexos não vê corações e quem vê caras os vê, já que hoje me deu para contrariar lugares-comuns. Só os não vê quem não quer ou não sabe ver e quase todos somos razoavelmente cegos. Lembro-me da pergunta de Sophia quando alguém se lhe queixava de ter sido bem enganado por fulano ou sicrana. "Mas nunca lhe viu a cara?" Regra geral não viram, que o diabo é sempre tão feio como o pintam, pelo menos a partir da idade em que cada um tem a cara que merece e não aquela com que nasceu. Tão nua como a cara, só a voz. É verdade que tudo num corpo é revelação e que dos pés à cabeça (com especial importância para as mãos) pode-se desvelar muita coisa. Já conheci especialistas de tudo, até de umbigos e de tornozelos, e não me custa a admitir que haja sexos intoleráveis, mas Hanna Schygulla tem razão. Nua nua só a cara e nudíssimos nudíssimos só os olhos e a boca. Isso a que se chama expressão e que é sempre o que faz a maior impressão.


2.
 Há uns tempos, referi-me, numa destas crónicas, a um retrato de Tiziano, atualmente em Filadélfia, que me foi revelado por Jean Louis Schefer. Representa o arcebispo Filippo Archinto, e mostra-o com o rosto semicoberto por um véu. Na altura, pensei que o prelado tivesse um defeito qualquer que essa forma de representação ocultaria. Muito mais sabido em coisas de iconografia do que eu, Schefer desenganou-me. Tiziano queria apenas significar que o arcebispo já tinha morrido quando ele o pintou, já que os mortos, se mantêm por algum tempo isso a que se chama expressão (e que nunca ninguém conseguiu explicar convincentemente o que seja), perdem-na rapidamente (por isso mesmo, tão pouco tempo são expostos). Cobrindo parcialmente a eminência, Tiziano deu-nos a ver "la mort au travail", o que acontece aliás com qualquer retrato, suspensor do tempo e não seu veículo.


Curiosamente, é para isso mesmo que os retratos existem. Porque, desde as civilizações das múmias, se acreditou que o retrato prolonga a vida da pessoa retratada, que viveria enquanto essa sua imagem vivesse. 


Num livro recente sobre os retratos na história de arte (uma luxuosa edição da Giunti) fala-se do "jus imaginum", privilégio que na antiguidade só detinham as famílias da nobreza, que, de resto, o continuaram a ter, mesmo que não baseado em qualquer lei escrita, até aos fins do século XVIII e ao advento do "terceiro estado". Só quando se inventou a fotografia, "toda a gente" passou a ser retratada e, mesmo assim, muito gradualmente, já que entre os meados do século XIX e os meados do século XX, só a burguesia se fazia retratar nos Institutos Photographicos ou no Amer da Rua do Ouro. Resta saber se a invenção da fotografia foi causa ou consequência, como se foi causa ou consequência dela que a pintura abandonasse a figuração. Conversas largas que para aqui, hoje, não são chamadas.


3.
 Mas esse livro dos retratos encontrou em mim campo fértil. Como citava, com alguma abundância, textos de Hawthorne e de Gogol sobre retratos mágicos ou sobre a magia dos retratos, passei parte das férias a ler tais textos, que são somente alguns dos muitos do demonismo romântico, bebido em Hoffmann e nos sonhos das almas românticas, culminando eventualmente no "Là-Bas" de Huysmans, esse livro a que Verlaine chamou "épastrouillant", termo que não consigo traduzir, como não consigo traduzir Mallarmé quando ele fala de "cette vaine, perplexe, nous échappant, modernité".

Mas ainda antes de voltar às imagens fixas, não resisto a contar-vos no que dão imagens movediças. Em "Là-Bas", como eventualmente saberão alguns, a torre da igreja de Saint-Sulpice em Paris (que, aliás, Huysmans execrava) tem um papel importante, através da figura capital da mulher do sineiro e dos seus cozidos à francesa. Pois me sucedeu que o livro que a esse se seguiu, em leitura de Verão, foi "La Lutte avec l'Ange" de Jean Paul Kauffmann, que mão amiga me fez chegar, e onde tudo se passa na dita igreja, partindo do fresco célebre de Delacroix que tem o título do livro e que, até hoje, me foi única razão para visitar Saint-Sulpice. Páginas não eram lidas, descobri que a igreja está na moda, devido ao famigerado "Código Da Vinci", que nisso, como em tudo, vigariza a propósito da famosa meridiana, que, parece, justifica hoje a entrada de multidões ululantes, em busca dos segredos da vida perversa de Jesus Cristo e Maria Madalena. Livro que até li, para poder argumentar com conhecimento de causa às dúvidas metafísicas de descendentes e ascendentes, que tomaram a sério as "revelações" do autor, nestes tempos de vale-tudo. Não será nos próximos meses que poderei decidir, em paz e sossego, quem viu melhor a igreja onde baptizaram Sade: se Huysmans, na sua embirração, se Kauffmann nos seus ditirambos. Mas se quiserem saber de mim, neste Verão, procurem-me entre eles, Hawthorne e Gogol. E, obviamente, nos retratos.


4.
 A eles volto. Em Hawthorne (que não conhecia Gogol, mas certamente conhecia o Hoffmann de "Doge e Dogoressa", ou Tieck, ou Chamisso ou Goethe) no fabuloso conto "Prophetic Pictures", que já croniquei por aqui, o retrato não funciona como prova do génio de um artista mas como sinal da maligna fatalidade de um "guilty medium". A pintura é um símbolo poético no duplo retrato do pacífico casal Walter e Elinor Ludlow, retrato que se transforma com o tempo, dando a ver ocultos terrores e subterrâneas ferocidades, onde inicialmente só se viam plácidas belezas e jovens nubentes.


Walter, bem avisado fora pelas velhas senhoras de Boston que os retratos do pintor podiam ser proféticos, e que este, depois de tomar posse de um rosto e de um corpo humanos, os podia pintar em qualquer situação futura. Mas Elinor tranquilizou-o: "Mesmo que ele tenha tais magias, há qualquer coisa tão doce nos seus modos que tenho a certeza que as usa bem." Mas foi o pintor quem viu a nudez toda da cara deles e não Elinor, que a viu coberta por uma ilusória doçura. Nas posteriores visitas ao quadro, ambos notam que este, sendo o mesmo, era já outro. Elinor olhava o noivo com ânsia e terror. "Is this like Elinor?" "Compare a cara dela com a cara que eu pintei." E, só nesse momento, Walter reparou que a expressão de Elinor era exatamente a expressão do quadro e que, se este fosse um espelho, não teria captado melhor olhar de tanto pavor. Elinor, absorta, nem ouve o diálogo entre o pintor e o marido. Mas, quando acorda do torpor, volta-se para Walter e pergunta-lhe por sua vez se ele não se acha mudado. "That look! How come it there?" 


Depois, o quadro muda todos os dias, até à última visão, quando Walter esfaqueia a mulher e o "retrato, com as suas tremendas cores, finalmente ficou terminado". 

"Não haverá uma profunda moral neste conto?", termina Hawthorne, bem à sua maneira, tão inquietante quanto distanciada. "Quando vimos o resultado de uma, ou de todas as nossas ações, surgir diante de nós, alguns chamar-lhe-ão Destino e fugirão apavorados, outros mergulharão ainda mais em desejos ocultos. Mas ninguém poderá afastar-se dos RETRATOS PROFÉTICOS." Em Gogol, a maldição é traduzida por um retrato que dá a todos os que o possuem, primeiro a maior glória e, depois, o desespero total. E o que torna o quadro reconhecível são "uns extraordinários olhos" e "uma estranha expressão". Gogol invoca todos os grandes pintores do Renascimento que, à época do conto (1843, o mesmo ano da publicação de "Prophetic Pictures") eram os mais valorizados pela crítica novecentista: Tiziano, Rafael, Guido Reni, Leonardo, Rubens, Van Dyck. Todos eram ultrapassados pelo pintor que possuía o quadro mágico e que pintava com verosimilhança e verdade jamais alcançadas. Mas esse "dom" era efémero e continha a própria maldição. Esta só é esconjurada na narração final. Quando o último proprietário se prepara para destruir o quadro, o quadro desaparece. E "todos ficaram ali, por largo tempo, sem saber se tinham visto realmente aqueles olhos extraordinários ou se se havia tratado de uma ilusão que por momentos lhes toldava a vista, fatigada por tão longo exame de quadros antigos". 


Em Gogol, existe porventura uma intenção moralizante (o tema do artista que vende a alma ao diabo, no fundo o tema do "Dorian Gray" de Wilde, que talvez encerre, em literatura, esta estranha genealogia, retomada, nos anos 40 do século XX, pelo cinema de Hollywood). Mas, em Hawthorne, a pintura é necromancia e a pessoa pintada transforma-se na criatura do pintor. Em ambos, o cerne é o perigo da nudez exposta ou o perigo do que essa nudez expõe ao pintor. Nenhum retrato existe. Só existe a visão do pintor. E deixo-vos a olhar, uma vez mais, "Lucrezia Panciatichi", de Bronzino, minha tão incerta secretária de premonição. Já viram mulher mais vestida? Já viram mulher mais nua?


João Bénard da Costa

22 de outubro 2004, Público 

MEDITANDO E PENSANDO PORTUGAL

Ilha das Flores _ CNC.jpg

 

35. ILHÉU DO/E MONCHIQUE

 

O PONTO MAIS OCIDENTAL DE PORTUGAL E DA EUROPA

 

Integra o grupo ocidental do arquipélago dos Açores a ilha das Flores e a do Corvo.

Em volta da ilha das Flores existem vinte ilhéus.

Um deles, é o ilhéu do/e Monchique.

É o ponto mais ocidental dos Açores, de Portugal e da Europa, tomando como referência o todo do arquipélago açoriano e do nosso país, e que todas as ilhas, ilhéus e ilhotas açorianas são europeias.

Dúvidas não há de ser o ponto mais a oeste dos Açores e de Portugal insular e continental, o mesmo não sucedendo se se considerar que o grupo ocidental açoriano se situa na placa litosférica e tectónica norte-americana.

Sendo, porém, todo o Portugal parte integrante da Europa, o mesmo se convencionou, até hoje, em relação à totalidade dos Açores.

Eis, então, que um grande e sólido rochedo oceânico de basalto, elevando-se e emergindo em dezenas de metros de altura de uma plataforma profunda, em frente à costa oeste da ilha das Flores, é o local e ponto geográfico mais ocidental do arquipélago açoriano, de Portugal e da Europa.

Deu por empréstimo o seu nome ao periódico O Monchique, da ilha das Flores, ao que consta extinto, em presumível homenagem aos tempos que o ilhéu foi ponto de contacto para acerto de rotas e verificação de instrumentos de navegação, com a ajuda de corpos celestes no espaço sideral, qual mensageiro de notícias das Américas e demais terras ao longe.

Sendo mais longo e tardio o tempo até à chegada de Diogo de Teive, achador ou descobridor das Flores, do Corvo e do ilhéu do/e Monchique, dada a dispersão das ilhas açorianas por uma extensa área geográfica.

Em que as duas ilhas mais ocidentais dos Açores estão mais a oeste que a Islândia, que as não supera, apesar da sua insularidade.

O Cabo da Roca, por sua vez, é o ponto mais ocidental do continente europeu, de Portugal continental e da Europa continental, sem incluir o Portugal e a Europa insular. Favorece-se, ainda, uma geografia convencional, embora esta se modifique e apele a outras leituras.

 

Joaquim M.M. Patrício
23.09.22

CRÓNICA DA CULTURA

RENZO PIANO: um dos superiores expoentes da arquitetura mundial

  


“A minha inspiração veio da terra…e, claro, de Paul Klee…e a poética das suas pinturas”

 

  


Sempre que olho as obras de Renzo Piano, a minha inquietação acerca do facto dos seres terem abdicado de compreender o mundo como um todo e o terem aceitado em especialidades que não comunicam, a minha inquietação, dizia, desespera, face ao loteamento mental que se regista no agrado da atual sociedade. 

Renzo é um excelente exemplo de quem nunca corporizou uma visão de perspetiva limitada.

"A diversidade do conhecer é um valor, não é um problema". R.P.

  


A paisagem da pedra é a melhor prova de que a Natureza vive de um diálogo entre presente e passado e que tem medula comunicante, e há que aprender com essa comunicação como quando se vai a um museu e se perdem os olhos para melhor se reencontrarem, tal foi a aproximação e a emoção que provocou.

A arte propõe-nos também a reflexão de que aos méritos da especialização se deve estar atento, sob pena dos nichos se sobreporem ao somatório do qual tudo é feito.

Não podemos negligenciar o que fica de fora do julgar que se entende manusear com mestria.

Ortega Y Gasset já chamava a atenção que a emergência do “homem-massa” surgia cada vez mais pelo aparecimento de cientistas e menos de pessoas cultas.

A especialização é a chave de muitos saberes, é certo, mas não pode ser ela a fragmentação que impede o ser de compreender que, se se distanciar, o horizonte do espaço de linguagem onde passará a viver é um superior alto e rotundo.

Certo é que compreender a realidade à volta, implica a necessidade intrínseca, de transmitir conhecimento.

Renzo Piano, também se refere à arquitetura como um gesto cívico, devido ao modo como afeta a vida diária de todos nós, além de ser igualmente nesse espaço que a história se desenrola.

Renzo tem tido a grande capacidade de se reinventar e de compartilhar a criatividade debatendo, escutando, comunicando o que afinal também constitui parcelas do imaginário público.

A sua ideia de fazer “um edifício voar”, criando algo com a gravidade zero, retira a teima de o colocar no compartimento da arquitetura high-tech ou outra.

Os seus projetos não costumam ter características que se repetem.

  


Arquitetura é arte, mas arte bastante contaminada por muitas outras coisas. Contaminada no melhor sentido da palavra – alimentada, fertilizada por muitas outras coisas.

R.P.

  


The shard conhecida por
London Bridge Tower: outra proposta de Renzo Piano por Paul Klee e por toda a poética.

 

Teresa Bracinha Vieira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


A arquitetura necessita do cinema.


“Os arquitetos vivem imersos num ambiente cultural e quando estão a fazer um projeto são influenciados pelo tempo em que vivem, que também tem que ver com a cultura que consomem, com os livros que leem, com os filmes que veem, as peças de teatro a que assistem, com a música que ouvem.” (Urbano 2013, 122)


Em “Histórias Simples. Textos sobre Arquitectura e Cinema”, Luís Urbano salienta a importância da relação entre a arquitetura e o espaço imaginado para o cinema. Para Urbano, o cinema mostra um próprio e característico sentido de lugar, que já faz parte do imaginário de cada um. Há filmes quase com cem anos e por isso a maneira como se olha e se pensa o espaço real onde se vive é também certamente influenciado pelo cinema.


Para Urbano, os cenários são a ligação mais óbvia e evidente entre o cinema e a arquitetura. Os estúdios de cinema são autênticas cidades e por vezes até tomam formas mais experimentais. Urbano explica que há naturalmente tendência para desvalorizar a arquitetura cinematográfica, por esta ser transitória: «Mas se começarmos a pensar que há filmes que foram feitos há setenta ou oitenta anos, os grandes clássicos do cinema que continuam a ser vistos por uma grande quantidade de pessoas, e que a arquitetura que está nesses filmes continua a ser vista hoje em dia, então acho que é de lhe dar alguma importância.» (Urbano 2013, 117)


No cinema também se sente com o corpo - depois de se ver um filme tem de haver uma readaptação à realidade. É através do espaço que se tem existência física e sensorial e cada um tem uma maneira própria e irreproduzível de se relacionar com este. A arquitetura é entendida por cortes, bocados e fragmentos, é pesada, é matéria, é luz, é som. Urbano explica que a arquitetura e a memória espacial resultante é constituída por partes por vezes desconexas. Por isso o espaço virtual não é arquitetura porque é contínuo, fluído e homogéneo. A fotografia é também diferente porque pode alterar as dimensões e apresenta sempre pontos de vista estáticos e imóveis. Mas já o cinema é o meio mais próximo da arquitetura porque é através do movimento e do percurso que se capta a real perceção de qualquer espaço: “No cinema, identificamo-nos com os personagens também porque eles são coincidentes com o espaço arquitetónico que habitam. (…) Sentimo-nos transportados para aquela realidade e, às vezes, transportados fisicamente.” (Urbano 2013, 120)


Para Urbano é difícil tentar perceber a importância do cinema na arquitetura, mas os processos mentais para fazer arquitetura aproximam-se muito dos processos mentais para se fazer cinema - sobretudo no que diz respeito à escolha de planos e à definição da montagem de acontecimentos espaciais. Os arquitetos também têm de imaginar a vida que irá acontecer num determinado espaço. Ao projetar, os arquitetos têm a capacidade “… de fazer a transição entre espaços que têm dimensões completamente antagónicas, de espaços estreitos e baixos para espaços largos e altos, ou espaços que tenham materiais diferentes.” (Urbano 2013, 120)


Nem a arquitetura e nem o cinema são possíveis sem o espectador em movimento, isto é, sem a capacidade de juntar formas e espaços diferentes sob uma mesma narrativa. Tanto a arquitetura como o cinema têm a capacidade de, ao juntar certas partes diferentes, alterar ou criar novos significados, reordenando a realidade. Na arquitetura é importante a forma como se juntam espaços distintos - é a maneira de dispor e relacionar espaços diferentes que cria expressões variadas.


Mas a relação entre a arquitetura e o cinema tem de se dar através da metáfora e por meio de substituições e aproximações não evidentes. E por mais que se queira, o espaço construído pelo arquiteto nunca corresponde totalmente ao que foi imaginado, porque a arquitetura transportará sempre múltiplas interpretações e possibilidades. A arquitetura tem de estar permanentemente preparada para receber livremente várias narrativas, sentidos e funções. Ao fazer parte de um tempo, a arquitetura, tem ainda capacidade de ser o testemunho e a imagem de determinados acontecimentos. Também ela conta uma história. Porém, o cinema usa o espaço para servir uma determinada e específica narrativa. Os cineastas têm a possibilidade de controlar toda a ocupação de um espaço: “A grande vantagem da arquitetura, podemos dizer que é uma vantagem ou uma limitação, é permitir que todas as histórias da aconteçam nela. Há liberdade, as pessoas podem utilizar a arquitetura como quiserem. O cinema apesar de conseguir controlar a forma como as pessoas vivem a arquitetura, também a limita, já que só se pode viver o espaço daquela maneira.” (Urbano 2013, 123)


Mas ainda assim, na opinião de Urbano, o cinema é o instrumento mais útil para descrever a arquitetura - é o testemunho mais real de uma verdade construída. A arquitetura necessita pois do ecrã, dos planos, da história e do movimento para ser compreendida e experienciada e o ecrã precisa da arquitetura para reconstruir a realidade a favor de uma nova ordem e de um novo significado.

 

Ana Ruepp

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