MEMÓRIAS DE ADRIANO
Começo por ler Marguerite Yourcenar na longa carta do Imperador Adriano (76-138) ao seu filho adotivo Marco Aurélio (121-180). A escolha da personagem deve-se ao período de transição em que Adriano viveu e que podemos encontrar na explicação da própria Yourcenar: «Encontrei (…) num volume da correspondência de Flaubert, muito lido e muito sublinhado por mim, pouco mais ou menos em 1927, a frase inesquecível: “Não existindo já os deuses e não existindo ainda Cristo, houve de Cícero a Marco Aurélio, um momento único em que só existiu o homem”. Uma grande parte da minha vida ia passar-se a tentar definir, depois a descrever, esse homem sozinho e aliás ligado a tudo». E assim a autora de “Memórias de Adriano” procurou uma vida conhecida, acabada e fixada pela História, “de forma a abranger num só olhar toda a curva; mais ainda, a escolher o momento em que o homem que viveu essa existência a avalia, a examina e chega a ser por um instante capaz de a julgar”. Eis-nos diante do mistério do tempo. É essa a preocupação fundamental deste livro consagrado. E refere-se o paralelo entre a Antiguidade de Adriano e a modernidade de Lawrence da Arábia, tendo um como pano de fundo as colinas de Atenas e o outro a sabedoria do deserto – numa relação biunívoca para compreender o ascetismo e o hedonismo. E o tema comum era o da pessoa que encarava o tempo e que recusava a indiferença. Tudo, de modo a ter a liberdade de dizer, como Yeats: “É a mim próprio que eu corrijo ao retocar as minhas obras”.
Yourcenar (traduzida por Maria Lamas e depois por Helena Vaz da Silva, de quem se tornou amiga) exigia a si mesma a capacidade de compreender a realidade do mundo e a vida. “A substância, a estrutura humana não mudam. Nada mais estável que a curva de um tornozelo, o lugar de um tendão ou a forma de um dedo de um pé. (…) No século de que falo, estamos ainda muito perto da livre verdade do pé nu”. Urge analisar, prevenir, prever – com Plutarco e Marco Aurélio, para entender que os deuses e as civilizações passam e morrem. Não somos nós os únicos a olhar de frente um futuro inexorável”. A clarividência de Adriano evidencia-se. O mundo é complexo, mas vale a pena prosseguir na constante interrogação sobre ele. É Arriano quem escreve uma última missiva final Adriano, sobre o resultado das suas obras. Foi tudo em vão? E Adriano entende não poder fraquejar, por isso, deve continuar a pensar e a sonhar, e a ligar a “disciplina augusta” à virtude da “patientia”. O desafio permanente e indubitável é o de caminhar de olhos abertos, continuando a desejar conhecer os múltiplos aspetos do mundo terreno – o amor, a amizade, a fidelidade, a alegria…
Neste ponto da crónica, o leitor sente-se confuso. Julga ter-se enganado no tema e no título. Conhece talvez a obra de Marguerite Yourcenar, mas agora pensou que haveria uma outra referência. De facto, não se equivocou, veio mesmo ao lugar e ao tema que esperaria, todavia não do modo previsível e costumeiro. Adriano e Marco Aurélio, as personalidades da antiguidade clássica aqui estão, do mesmo modo que a reflexão sobre a vida e sobre a exigência de pensar e de recusar a inércia e a indiferença. É verdade. Este texto foi escrito, no entanto, a pensar numa personalidade portuguesa de referência, que acaba de completar a bonita idade de cem anos. Ponto por ponto, o romance fundamental que invocamos leva-nos à compreensão da vivência do tempo, não como mero percurso dos ponteiros do relógio, mas como revelação de resposta para aquele mistério do tempo que Santo Agostinho confessava ser difícil de resolver. De quem falamos, ensinou-nos pacientemente e sem desistência a complexidade da vida e do mundo: “A unidade da humanidade implica, na linha de ensinamento do Padre António Vieira, o abraço da justiça e da paz, mas tem de ser a justiça, contudo, a tomar a iniciativa desse abraço”. E assim homenageamos, com os melhores votos, o exemplo de Adriano Moreira.
Guilherme d’Oliveira Martins