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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Viver na margem.


“Notre vrai moi n’est pas tout entier en nous.”, Jean-Jacques Rousseau


No livro Journal du dehors Annie Ernaux escreve acerca da sua vida em Cergy-Pontoise (Ville Nouvelle situada a quarenta quilómetros de Paris). Para a escritora a chegada a um lugar que emergiu do nada em poucos anos, desprovido de toda memória, com construções espalhadas por um imenso território, de limites incertos, foi uma experiência avassaladora. (Ernaux 2021, 7)


Ao tentar ser testemunha de um território novo e marginal, povoado por pessoas que vêm de muitos sítios, Ernaux verifica que não há qualquer ordem ou hierarquia no que diz respeito às experiências que se têm do mundo. As sensações e as reflexões que cada lugar, cada pessoa ou cada objeto suscitam são independentes de qualquer valor cultural e continuam sempre a conservar a sua opacidade e o seu enigma. Através de uma escrita que fotografa o real Ernaux afirma: “…l’hypermarché offre autant de sens et de vérité humaine que la salle de concert.”(Ernaux 2021, 9)


Através da observação pura, Ernaux descobre em si memórias, obsessões e escolhas nunca antes pensadas ou concretizadas. A observação do mundo exterior transporta a autora para o seu mundo particular e íntimo. Na opinião de Ernaux, é o mundo que nos rodeia que nos revela quem realmente somos.


Ora, para Fiona Handyside, no texto “J’aimé vivre là: Re-thinking the parisian suburbs in Annie Ernaux and Eric Rohmer” (Nottingham French Studies, Vol. 48 No. 2, Summer 2009) Ernaux consegue fazer do subúrbio um lugar capaz de ligar elementos díspares e capaz de reformular a maneira como nos vemos como nos relacionamos com os outros. A representação que Annie Ernaux faz de Cergy-Pontoise é capaz de fundir o observador e o observado; o interior e o exterior; a multidão e o indivíduo; a cidade e o campo. Para Handyside, tal representação é muito importante porque é acima de tudo uma visão humana e termina com as oposições que estruturam historicamente a paisagem urbana - a periferia está normalmente associada a conceitos como segregação, simplificação, fragmentação, incompletude e inacessibilidade.


Mas a cidade nova de Ernaux surge neste livro como um lugar que junta e que leva à descoberta. A história de Ernaux entrelaça-se com as histórias dos demais e a manifestação do seu eu dá-se num território inesperadamente descentral e alheio. Ao de repente estar no outro lado, num espaço imenso, desconhecido e à margem, a autora sente-se muito mais próxima do mundo e dos outros: “Pourquoi je raconte, décris, cette scène, comme d’autres qui figurent dans ces pages. Qu’est-ce que je cherche à toute force dans la realité? (…) Ou bien, noter les gestes, les attitudes, les paroles de gens que je rencontre me donne l’illusion d’être proche d’eux.” (Ernaux 2021, 36)


Ana Ruepp