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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

GOM _ A Vida dos Livros.jpg 
   De 31 de outubro a 6 de novembro de 2022

 

No centenário de José Saramago recordamos a sua viagem ao Porto em “Viagem a Portugal”.

 

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HONRAR O NOME DO PORTO

Para José Saramago na “Viagem a Portugal”, o “Porto, para verdadeiramente honrar o nome que tem é, primeiro que tudo, este largo regaço aberto para o rio, mas que só do rio se vê, ou então, por estreitas bocas fechadas por muretes, pode o viajante debruçar-se para o ar livre, e ter a ilusão de que todo Porto é Ribeira. A encosta cobre-se de casas, as casas desenham ruas e, como todo o chão é granito sobre granito, cuida o viajante que está percorrendo veredas de montanha”. Adivinham-se antepassados pescadores das mulheres que passam, e lembram-se ainda calafates, carpinteiros de barcos, tecelões de panos de velas, cordoeiros e, naturalmente, canastreiros. Daqui houve nome Portugal. A história antiga é de uma cidade-estado, a única portuguesa, fazendo parceria com Gaia e Vila Nova. A história está cheia de vicissitudes, desde a presúria de Vímara Peres à intervenção da Armada heroica dos gascões. Foi D. Teresa quem concedeu ao bispo D. Hugo o couto da cidade em 1111, o que permitiria uma durável autonomia. D. Fernando chamou-lhe Paraíso e o mestre de Avis teve o apoio dos seus povos e mesteres para a sua causa. Aqui se casaria D. João com D. Filipa de Lencastre e nasceria o Infante D. Henrique. E diz a lenda que o sacrifício imposto pela preparação da armada de Ceuta, deixou apenas as “tripas”, depois tornadas acepipe, para alimentação dos portuenses… E não se esquece a designação de Cidade Invicta, outorgada por D. Maria da Glória, a rainha que o povo adotou, a lembrar a heroica resistência no Cerco do Porto (1832-33), depois da chegada dos Bravos do Mindelo e da hospitalidade cidadã – a lembrar o que Garrett dizia: nós os do Porto podemos trocar os bb pelos vv, mas nunca a liberdade pela tirania… E D. Pedro não esqueceria esse povo extraordinário, oferecendo à população do Porto o seu coração, que a igreja da Lapa alberga. 

 

PARTINDO DA SÉ.

«O viajante está no largo da Sé, olhando a cidade. É manhã cedo. Veio aqui para escolher caminho, decidir um itinerário. A Sé ainda está fechada, o paço episcopal parece ausente. Do rio vem uma aragem fria. O viajante deitou contas ao tempo e aos passos traçou mentalmente um arco de círculo, cujo centro é este terreiro, e achou que quanto queria ver do Porto estava delimitado por ele. Não tem, em geral, assim tantas preocupações de rigor. E provavelmente virá a infringir esta primeira regra. No fundo, aceita os princípios básicos que mandam dar atenção ao antigo e pitoresco e desprezar o moderno e banal. Viajar desta maneira por cidades e outros lugares acaba por ser uma disciplina tão conservadora como visitar museus: segue-se por este corredor, dá-se a volta a esta sala, para-se diante desta vitrina ou deste quadro durante um tempo que a observadores pareça suficiente e comprovativo das bases culturais do visitante, e continua-se, corredor, sala, vitrinas, vitrina, sala, corredor… (…) Por estar fiando estes pensares é que decidiu começar a sua volta descendo as Escadas das Verdades, aquelas que por trás do paço episcopal vão descendo, em quebra-costas para o rio. São altos os degraus, maus de descer, piores ainda de subir. Que razões terão sido a deste batismo, não sabe o viajante, tão curioso de nomes e das origens deles (…). Por estas encostas andam subindo e descendo gentes desde os tempos do conde Vímara Peres (…). Aqui em baixo é a Ribeira. O viajante passa sob o arco da Travessa dos Canastreiros, boa sombra para Verão, mas agora gélida passagem, e durante meia manhã andará por este Bairro do Barredo, a ver se aprende de vez o que são ruas húmidas e viscosas, cheiros de fossa, entradas negras de casas» …

 

TEATRO GRANÍTICO

O viajante deixa-se deslumbrar pela cidade acantonada no teatro granítico de socalcos a partir da Ribeira. Calcorreia as calçadas de granito e homenageia os artistas, no museu que leva o nome de Soares dos Reis, no Palácio das Carrancas. A “Virgem do Leite” de frei Carlos é talvez “a obra mais importante que se guarda aqui”, mas o coração do viajante tem um lugar especial para Henrique Pousão e Marques de Oliveira. E, de regresso à Sé, entra nos Clérigos e considera que a cidade não reconhece devidamente a importância de Nasoni. Se Fernão de Magalhães é eternizado por uma ampla avenida, Nasoni e a sua injustamente pequeníssima rua “riscou no papel viagens não menos aventurosas: o rosto em que uma cidade se reconhece a si própria”. E na Sé, mais do que a robustez e o orgulho militar, merece glorificação a galilé de Nasoni que tão bem integrada aparece no conjunto. E é Nasoni o herói, sem dúvida, desta visita: “este italiano, criado e educado entre mestres de outro falar e entender”, que “veio aqui escutar que língua se falava no Norte português e depois passou-a à pedra”. “O interior da igreja avulta pela grandeza das pilastras, pelo voo das abóbadas apontadas”. E saindo da Sé o viajante olha os telhados do Barredo e descobre a fonte do pelicano, temendo, porém, pela sua conservação e perenidade… “Quando o viajante estiver de partida, tornará a ir à Fonte do Pelicano, olhará aquelas iradas mulheres que presas à pedra se desafiam, saberá que há ali um segredo que ninguém lhe saberá explicar, e é isso que leva do Porto, um duro mistério de ruas sombrias e casas cor de terra, tão fascinante tudo isto como ao anoitecer as luzes que se vão acendendo nas encostas, cidade junta com um rio que se chama Doiro”…

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA


É a prata da minha amada


É a prata da minha amada.
Dir-lhe-ei docemente adeus,
e que não arranque os espinhos da primeira rosa,
subindo pela vida.
E quando eu caminhar pelo vale da sombra,
ela descerá ao pequeno porto, descalçando as sandálias,
mergulhando no mar,
repetindo os nomes de todos os que partiram,
de todos os que a amaram,
hesitando à entrada da taberna,
vendo o meu lugar vazio, o violino sobre a mesa, um
silêncio maior que a lentidão das praias,
e pensará em tudo, em cada som, em cada lágrima, em
nada.
Ela voltará as costas.
Nunca fomos deste mundo, dir-lhe-ei por fim, ao fechar
a última porta.


in Caminharei pelo Vale da Sombra, 2011


It is my beloved’s silver


It is my beloved’s silver.
I’ll gently say good-bye,
and tell her not to cut the thorns of the first
life-climbing rose.
And when I walk through the valley of the shadow,
she’ll come down to the small harbour, taking off her sandals,
dive into the sea,
repeating the names of all who left,
of all who loved her,
hesitating at the tavern door,
seeing my empty place, the violin on the table, a
silence greater than the slowness of the sea shores,
and she’ll consider everything, in each sound, in each tear, in
nothing.
She’ll turn her back.
We have never been of this world, I’ll finally tell her, as I close
the last door.


© Translated by Ana Hudson, 2014
in Poems from the Portuguese

ANTOLOGIA


EVELYN WAUGH VEM À BAILA…
por Camilo Martins de Oliveira

 

Minha Princesa de mim:

Escrevi uma longa carta ao nosso Camilo, falando-lhe de morte, dor e serenidade. Sabes o que sinto e sei como o sentes comigo. Mas também acabei por dissertar um pouco sobre as idades da morte. Tenho vindo a ler os "Essais sur l´histoire de la mort en Occident" do Philippe Ariès, publicados em volume este ano (1975). Penso que fiz aí um esforço de objetivação, necessário ao equilíbrio emocional que nem sempre consigo controlar. Aliás, escrevi ao Camilo neste 50º aniversário da morte do G..., por receio de me comover ou, melhor, de nos comovermos muito, se contigo o abordasse. Sinto todavia que anda em mim um remorso vagabundo, um escrúpulo de lhe ter escrito sobre situações e sentimentos que nos atingem até aos limites da nossa compreensão das coisas: Portugal está em plena revolução, o Camilo está em Bruxelas, bem sei, mas deve sentir-se afetado, para além de tudo o que possa compreender e até explicar, pelo que também é, no imediato, incompreensível e incerto. Mantem-se calado, mas referiu-me, em carta recente, como lhe doeu o coração, com "saudade" da Pátria, ao escutar, na catedral de Saint Michel e Sainte Gudule, umas "lamentações" de Jeremias adaptadas e postas em música, em 1663(?), por Matthias Weckmann, em Hamburgo, depois da peste lhe ter levado a mulher: "Wie liegt die Stadt so wüste, die voll Volkes war..." A cidade solitária e abandonada lembra uma viúva: grande entre as nações, soberana entre os estados, está reduzida à servidão. É bem verdade que não se força a realização de um sonho. E que a grandeza das nações é como a que os homens se pretendem: chega sempre o dia em que tudo isso se reduz a pó. Talvez porque, afinal, já o era: "Memento homo quia pulvis es et in pulverem reverteris..." O sonho do Estado Novo foi o do Portugal restaurado nas suas raízes históricas e na sua vocação universal e imperial. Tanto quanto sei, o sonho do "Quinto Império" não foi estranho a visionários como o jesuíta António Vieira ou o modernista Fernando Pessoa. Hoje, a "Revolução dos Cravos" pretende anunciar uma era nova de liberdade, abundância e paz... Uma nova Jerusalém, construída sobre o abandono de uma ordem política económica e social, com os seus valores, e de um império, com os seus recursos e oportunidades. Como será? Até que ponto o bom senso prevalecerá sobre a euforia, e o esforço sobre a irresponsabilidade? O projeto grandioso - e, acredito, com intenção patriótica - do Estado Novo falhou por ter parado no tempo, não ter percebido que a melhoria das condições de vida de um povo, ou o crescimento do produto de uma economia, não são calmantes de aspirações e desejos, antes são incentivos a novas ambições. Desconfiado, provinciano íntegro chocado com a "luxúria" da burguesia citadina da República Portuguesa, num período em que se fizeram grandes fortunas (na indústria, no comércio e na finança) e se acentuou a exploração de um proletariado urbano crescente  -   e uma mão de obra forçada, nas colónias  -  o professor de Coimbra, determinado, entendeu que o seu projeto de Estado Corporativo, inspirado pela procura da harmonia social preconizada pela «Rerum Novarum», passaria pela moralização e disciplinação da burguesia liberal enriquecida, e pela "domesticação" das massas operárias e dos movimentos e partidos que, a seu ver, ameaçariam a ordem e bom funcionamento do Estado e abririam a porta à entrada do totalitarismo comunista. A imposição autoritária da disciplina política e social, bem como da economia financeira do Estado, permitiu três décadas de crescimento económico, limitando todavia o exercício de certas liberdades cívicas e também da iniciativa económica (a que não foi estranho o regime do condicionamento industrial). Mas a expansão de uma pequena e média burguesia, e a melhoria das suas condições de vida e do seu estatuto social, transformaram a sociedade portuguesa e criaram uma tensão crescente entre as aspirações a um tipo de vida - que o cotejo (pela experiência dos emigrantes e pela televisão) com o de outros povos europeus tornava cada vez mais apetecível - e a ideologia e cultura do conservadorismo ambiente. A guerra nos domínios africanos foi o catalizador da derrocada: quer porque pedia sacrifícios financeiros e humanos a populações aspirantes ao bem-estar e bem-gozar a vida, quer porque o êxito de uma nova classe de africanistas (entre os quais se contavam universitários, grandes empresários e quadros mais qualificados) criava algum ressentimento entre a gente da "metópole" que pensava ser sacrificada para os proteger. O projeto grandioso de um Portugal multirracial e pluricontinental tornava-se inviável pela incapacidade do Estado em mobilizar o povo para uma ação comum e a longo prazo, sobretudo num ambiente internacional demissionário e hostil. Prevaleceu a vontade de conforto e a esperança de que a possível integração numa Europa abastada e liberal seria o destino prometido aos portugueses... Neste momento, todavia, o oportunismo da esquerda radical tenta atirar o país para a loucura de um socialismo utópico. Acredito mais no poder de oposição a esta nefasta pretensão que a pequena e média burguesia portuguesa - desde o norte e centro rural e conservador até ao operariado ligado ao PS - possam mover, do que numa mobilização política da CE para "salvar" Portugal. A solidariedade europeia como ação ética e prática está por provar na universalidade. O núcleo de nações que a formou é interesseiro, com políticos que vão ao mercado dos votos. Mais tarde, se felizmente se concretizar essa aspiração europeia de Portugal, veremos se os novos benefícios adquiridos não irão provocar novos desejos de rendimentos e consumo, tal como vem sucedendo nas nossas sociedades afluentes, materialistas e míopes. Lembro-me de te ter ouvido dizer naquele jantar cheio de cabeças pós-modernistas: ´Não cuidem da moral e depois queixem-se!´  Eu talvez seja conservador, mas tu és reacionária. Por vezes, com graça e com razão. Por isso também penso em ti, sempre, sempre, com muita ternura...". Esta carta de Camilo Maria à sua Princesa serve aqui para realçar a atenção lúcida com que o Marquês de Sarolea acompanhou o PREC, desligando-se da consideração de efemérides para se concentrar na compreensão de fatores dos processos sociais e políticos que ao longo do tempo são, afinal, identificáveis pela sua permanência no coração dos homens. Pelo gosto dessa visão elevada (filosófica) dos acontecimentos, mentalidades e comportamentos ao longo da história, traduzirei outros trechos da carta que ele me escreveu dissertando sobre os "Essais" do Ariès acima referidos. Para descortinarmos sinais dos tempos na diferença das ideias da morte e seu acolhimento na "Chanson de Roland" ou no "Tristão e Isolda" e no que Evelyn Waugh ironizou no seu "The Loved One"...


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 15.03.13 neste blogue.

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


123. O ENCONTRO COM NÓS PRÓPRIOS


Desgostosos de nós próprios, há a procura de diversas formas de evasão. Onde o escapismo excede as necessidades vitais em condições normais de saúde física e psíquica, desde a alucinação da velocidade, ao álcool e droga, uma excessiva busca de novidades na alimentação, vestuário, compras, num permanente acompanhamento da moda e do ritmo que nos rodeiam, rumo a uma ilusória compensação.

Num mundo de coisas em que o homem está “coisificado”, também o tempo é uma coisa, dado ser usual dizer que é dinheiro. 

E há a fadiga, que se puramente física ou intelectual tem o seu remédio no sono, sendo perigosa se interferir com o repouso, pelo que há que demandar um equilíbrio entre a necessidade premente de travar o andamento impetuoso da vida moderna e a impossibilidade de remar contra a corrente da história. 

E o aborrecimento como desejo frustrado de aventuras ou, pelo menos, de incidentes que permitam às vítimas do tédio distinguir um dia dos outros, sendo o seu oposto a agitação.   

Sem esquecer o espírito de competição que concebe a existência como uma luta, onde é devido respeito ao vencedor, sendo o trabalho pervertido pelos ideais exaltantes do eclipse dos concorrentes, em que os ócios o são na mesma medida, chegando a ser um aborrecimento o repouso que acalma, restabelece e restaura. 

Há que achar o equilíbrio adequado para tornar realizáveis na prática os nossos objetivos, fixando prioridades sem perder o sentido do que é fundamental, que deverá ser o encontro com nós próprios, vencendo o aborrecimento, a fadiga, a monotonia, o tédio, um excessivo e impulsivo espírito de competição. 

Interessa o entusiamo silencioso (não o ruidoso e fanático) que nos projeta com alegria para o trabalho, promove a criatividade, o progresso material e espiritual, em contra corrente com o cansaço repetitivo da mesma tarefa, pois uma geração incapaz de suportar e superar o aborrecimento, a monotonia, o tédio, entre outras causas de infelicidade, é um grupo de pessoas medíocres, desligadas do gradual progresso da natureza e da humanidade, que abandonaram os prazeres mais tranquilos da vida em favor da expressão derrotista “matar o tempo” em vez de o viver.    


28.10.22
Joaquim M. M. Patrício 

CRÓNICA DA CULTURA

  


Neste poderoso livro Misericórdia

há uma vida quase desconhecida, mas veemente, que se passa num lar da terceira idade, no qual a mãe de Lídia

irá viver os seus últimos tempos de vida.

Num ambiente concentracionário a escritora consegue atingir a esperança pelo mistério que a todos envolve,

afinal,

que a todos amarra,

num tempo de muitos tempos de pessoas em fim de vida

e de outras

quando tudo é experiência da condição humana.

E de tudo nos despedimos antes de entrar para estes locais-casas-do-adeus-final.

Antes,

há despedidas das nuvens e da lua que permanecem; dos bules de chá e dos caminhos para casa; das glicínias, do guarda-fato das peças amadas, das fotografias, e demais realidades que o livro recorda como de imprescindível despedida.

E é preciso não esquecer que este adeus é de um nunca mais ver pelo mesmo ângulo

e é de algum modo,

a memória surpreendente com a qual Dona Alberti enfrenta a nova residência-lar, acautelando que

Morrer é isso mesmo, é a verdade e a mentira já serem coisas iguais,

e isso ela não permitirá, nem que tenha de abrir todas as gavetas de uma cómoda imaginária até encontrar dois ouvidos:

o dela e o dos outros.

Até que consiga dar luta à charrete, cadeira de rodas das tangentes e secantes, empurrada por quem se não vê, mas que pode visar a alma

se nada se souber dos dias belos.

 

Um livro duro, realista até nos conflitos entre os residentes

quando nem se aproximando a morte se esbatem as classes sociais.

Quando até as formigas são suspeitas,

e as crianças acendem balões de cheiros de maçã assada com memórias de canela.

E cheia de fulgor:

Deixa-me da mão, ó noite. Estou cheia de energia, quero voltar ao pátio da escola e saltar até me voar o chapéu.

 

A filha de Dona Alberti

é escritora,

e diz à mãe que escreve sobre o cão da História

e admite

com um saber fulgurante de quem engravida,

que voltou a não descobrir

aquilo que queria,

 

e que por essa razão precisará de escrever outro livro.

 

Pelos livros de papel, por quem oferece livros em vez de vazios e violências,

para que se não deixem os homens ao abandono, e se lhe escutem e interpretem as falas, e se lhes faça companhia,

 

e pelo fenómeno multiplicador da poesia

 

assim te aguardo e te espero ó Lídia Jorge!

Teresa Bracinha Vieira

OS MORTOS TÊM SAUDADES NOSSAS

 

Estes dias outonais em que celebramos o centenário de Agustina Bessa-Luís são ocasião para lembrar o que um dia nos disse: “depois de mortos temos muito mais para ensinar”. E recordo uma visita que a romancista fez com José Régio à casa de Camilo Castelo Branco, em Seide, relatada em “O Tempo e o Modo” (nº 15, abril de 1964). O texto está repassado de paixão pelo mundo romanesco. A descrição baseia-se numa construção fascinante, suscitada pelo génio e pela imaginação criadora.  


«Diante do portão da casa de Seide tinha parado uma caleche verde; um padre obeso, duma palidez de recolhimento e de dietas, inclinava sobre o ombro a cabeça romana como a de um senador vencido. Não dormia. De vez em quando debruçava-se na sombra em que se percebia a fofa espessura duma manta de viagem que, apesar do calor, lhe cobria os joelhos; o olhar vivo riscava por um momento a faixa do portão semiaberto. A sua presença insólita e, no entanto, encarada como legítima, carregava-nos subitamente o coração de uma ansiedade furtiva: “São coisas como estas que a mim me causam calafrios” – disse o Régio». A este calafrio do companheiro de viagem, correspondia, contudo, uma sensação diferente de Agustina que, rindo intimamente, deixava-se entusiasmar pelo que a apavorava. E Camilo atraía-a, ele que se considerava desde novo predestinado para o infortúnio.  Mas, em bom rigor, esse infortúnio era menos condição própria e mais carácter dos outros. E, de facto, aquele ambiente era propício a pensar na comédia e no drama da vida.  “Da sala de trabalho de Camilo veem-se as hortas onde o calor desbota os verdes trigados de azul e do ouro dos primeiros anúncios de outono. Pensamos naquele escritor ali recluso não por desdém do mundo, mas por respeito pela forma de expressão que lhe foi conferida”. E alguém chama pelos visitantes, ou parece chamar. “Uma porta bateu talvez, outra chiou prolongadamente. ‘É alguém que tem saudades nossas’ – dizemos. Só os mortos têm saudades e chamam de longe, para que não os esqueçamos”. De facto, naquela tarde, Régio e Agustina sonhavam acordados em tal ambiente propício.  Camilo ligou sempre o “léxico do coração” a “muita ousadia”. E aquele lugar estava repleto de espíritos e de sentimentos contraditórios. José Régio inquietava-se e Agustina regozijava. O calor continuava. As palavras de Raul Brandão recordam: “A natureza chorava revolvida: a acácia do Jorge batia-lhe devagarinho nos vidros. Quem é que o chama? Atormentado de dores, ouve vozes, vê fantasmas”. Camilo está omnipresente. Os espíritos reais e imaginários abundam nas redondezas – Ana Plácido, Fanny Owen, José Augusto, Vieira de Castro, Simão Botelho, Calisto Elói, Eusébio Macário, tão diversos convívios.  


Num ápice, “já não está ao portão a caleche com o seu estranho viajante abrigado com a manta alpina”. Régio e Agustina perscrutam os arredores, a tentar perceber o que ocorreu. E ela, com intuição feminina, imagina que se trataria de um cónego velho que viria comprar alfaces; “há destes ladinos intuitos sob a forma de excentricidade e do mistério”. Mas comove-se com a estranheza do episódio, que reclama um desenvolvimento. “E, como para defender a gestação da memória, rodeio-a (diz-nos) de uma frialdade hibernal que intimida o doce mundo do convívio presente”. Eis a síntese que Agustina considera essencial. A memória é matéria-prima que se junta à imaginação. E este encontro com Camilo e a presença discreta de José Régio, permite compreender a coexistência e a distinção entre o mundo real e a ficção. Como poderemos entender esses mundos se não nos tornarmos simultaneamente protagonistas, narradores e figurantes capazes de criar ou de destruir? Essa dimensão de “deus ex machina” entusiasmava Agustina, deixava-a em êxtase, perante o mundo encarado como gigantesco palco de sentimentos e paixões.    


GOM

RELIGIÕES: "O DIREITO À ESPERANÇA, À BELEZA, AO CÉU". 1

  


1. O Papa Francisco esteve no Cazaquistão nos dias 13-15 de Setembro, para participar no VII Congresso de Líderes das Religiões Mundiais e Tradicionais. Coube-lhe o discurso de encerramento, no qual se socorre de várias citações da Declaração final do Congresso. O que aí fica pretende ser uma síntese dos momentos considerados essenciais dos dois textos, sendo o de hoje dedicado à Declaração. Mas começaria por sublinhar a importância decisiva destes encontros sobre as religiões, não só porque, como sublinhou o teólogo Hans Küng, “Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá sobrevivência do nosso planeta sem um ethos (atitude ética) global, sem um ethos mundial”, mas também para que as religiões reflictam, se convertam à sua essência, ao que verdadeiramente devem ser, e assim evitem barbaridades em nome de Deus. Por exemplo, no passado dia 25 de Setembro, o Patriarca Kirill, o representante máximo da Igreja ortodoxa na Rússia, no sermão de Domingo, afirmou que o sacrifício “no cumprimento do dever militar” na guerra contra a Ucrânia “lava todos os pecados”. E o que fez a Inquisição senão assar dissidentes na fogueira, apenas porque, com razão, divergiam da Igreja oficial? E a tragédia da pedofilia?  E as barbaridades em nome do islão?... Nas religiões, há o melhor e o pior…


2. A Declaração conjunta tem como ponto de partida “o facto imutável de que o Todo Poderoso criou todas as pessoas iguais, independentemente da sua filiação racial, religiosa, étnica ou de outro tipo ou da sua condição social, e, assim, a tolerância, o respeito e a compreensão mútua são a base de apoio de todo o ensino religioso.” Mais: “o pluralismo e as diferenças de religião, cor da pele, género, raça e língua são expressões da sabedoria da vontade de Deus na criação.” Por isso, a Declaração acentua que as religiões só podem ser factores de paz: “Cremos que o extremismo, o radicalismo, o terrorismo e todas as outras formas de violência e guerra,  sejam  quais forem os seus objectivos, nada têm que ver com a verdadeira religião e devem ser rejeitados do modo mais enérgico.”


Também por isso, insiste encarecidamente com os governos nacionais e as organizações internacionais “para que prestem uma assistência integral a todos os grupos religiosos e comunidades étnicas que foram e são objecto de violação de direitos e de violência por parte de extremistas e terroristas.” Apela igualmente aos líderes mundiais para que “abandonem toda a retórica agressiva e destrutiva que conduz à desestabilização do mundo e para que cessem os conflitos e o derramento de sangue em todos os quadrantes do nosso mundo.”


Em ordem à resolução dos conflitos, pede a colaboração dos líderes religiosos e dos políticos: “Apelamos aos líderes religiosos e aos políticos de diferentes partes do mundo para que desenvolvam incansavelmente o diálogo em nome da amizade, da solidariedade e da coexistência pacífica”, defendemos “a participação activa desses líderes das religiões mundiais e tradicionais e das figuras políticas proeminentes na resolução de conflitos em ordem a conseguir a estabilidade a longo prazo.” Há “a necessdiade urgente de que os líderes espirituais e políticos trabalhem juntos para fazer frente aos desafios do nosso mundo.”


Não há dúvida nenhuma de que a religião pode contribuir para uma maior humanização, uma humanização integral, plena. Com uma condição: ser bem entendida. Reconhece-se que “o Congresso de Líderes das Religiões Mundiais e Tradicionais desempenha um papel importante na realização de esforços conjuntos para fortalecer o diálogo em nome da paz e da cooperação, bem como dos vlaores espirituais e morais.” Por isso, a Declaração adverte: “Esforçamo-nos por desenvolver um diálogo com os meios de comunicação social e outras instituições da sociedade para esclarecerem a importância dos valores religiosos para promover a alfabetização religiosa, a tolerância inter-religiosa e a paz civil”, continuando: “Constatamos que as pessoas e as sociedades que desestimam a importância dos valores espirituais e as directrizes morais são susceptíveis de perder a sua humanidade e criatividade.” Por isso, ao mesmo tempo que acolhem “com satisfação os progressos realizados nos campos da ciência, da tecnologia, da medicina, da indústria e outros âmbitos”, chamam a atenção para a necessidade da sua “harmonização com os valores espirituais, sociais e humanos.” Fundamental é “aumentar o papel da educação e da formação religiosa para reforçar a coexistência respeitosa das religiões e as culturas e desterrar os perigosos preconceitos pseudoreligiosos.” “Pedimos que se apoiem todas as iniciattivas práticas para levar a cabo o diálogo inter-religioso e interconfessional, em ordem a construir a justiça social e a solidariedade entre os povos. Solidarizamo-nos com os esforços das Nações Unidas e todas as outras instituições e organizações internacionais, governamentais e regionais, para promover o diálogo  entre civilizações e religiões, estados e nações.”


A família e sua importância fundamental não foram esquecidas, os direitos da mulher também não. “Prestamos especial atenção à importância de fortalecer a instiuição da família. Defendemos a protecção da dignidade e dos direitos das mulheres, a melhoria do seu status social como membros iguais da família e da sociedade.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 22 de outubro de 2022

A VIDA DOS LIVROS

  

De 24 a 30 de outubro de 2022


António Cândido Ribeiro da Costa (1850-1922) foi um dos mais brilhantes parlamentares do século XIX, um dos fundadores da moderna Ciência Política em Portugal.

 

“ÁGUIA DO MARÃO” 
Amarante recorda neste ano não só Agustina Bessa-Luís, que há duas semanas foi capa da prestigiada “Babelia”, suplemento literário de “El Pais”, mas também lembra a figura do célebre orador parlamentar e orador sagrado, António Cândido Ribeiro da Costa (1850-1922). É essencial referir o nome de família, como costumava lembrar o ensaísta brasileiro António Cândido de Mello e Souza, por causa das trocas bibliográficas pela coincidência de nome próprio. Hoje, invoco a memória do amarantino, que deixou, ao longo da vida, um rasto de prestígio e de exemplaridade. Filho do presbítero na igreja de S. Cristóvão de Candemil, José Joaquim da Costa Pinheiro, que assumiu a paternidade do filho em testamento publicitado depois da sua morte, António Cândido revelou desde muito cedo extraordinárias qualidades intelectuais. Começou por ser destinado, por vontade do pai, aos estudos teológicos, no Seminário Conciliar de S. Pedro em Braga, que completou com brilhantismo (1867-1870). Em consequência, foi ordenado clérigo. Pouco depois da ordenação, em outubro de 1871, matriculou-se no curso de Direito na Universidade de Coimbra, concluindo o bacharelato em 1877 com brilhantismo. De um modo natural, e na sequência da notoriedade alcançada, prestou, no ano seguinte, provas para Doutor, com grande sucesso, sendo nomeado lente-substituto (1881) e, depois, catedrático (1891).


Cultor dotadíssimo da Oratória, destacou-se logo no ministério canónico, para em seguida se revelar como exemplar no mundo do Direito e na Política. Ainda como orador sagrado destacou-se, aliás, nos discursos proferidos nas solenes exéquias do Duque de Loulé, na Sé de Coimbra (1875) e, sobretudo nas de Alexandre Herculano na Igreja da Lapa, no Porto (13 de novembro de 1877). Anote-se que estes ofícios religiosos do autor de A Voz do Profeta foram rodeados de complexas negociações, em virtude das posições críticas assumidas pelo historiador relativamente à Igreja, apesar de nunca ter escondido a sua religiosidade pessoal. Quando hoje lemos a oração da Igreja da Lapa, compreendemos o elogio exemplar à figura moral de cidadão, mas também ao estudioso que marcou decisivamente a moderna historiografia portuguesa. “Diante dos seus livros erga-se a posteridade, e jugue-os com desassombro; têm, não podiam deixar de ter, a par de grandes verdades e de muitíssimas belezas, erros e imperfeições; mas diante do seu porte austero, da sua honra imaculada, da sua vida honesta e sóbria, da intemerata moralidade dos seus costumes, da genial franqueza da sua alma, da rude mas simpática tempera da sua palavra, quer a dirigisse aos reis a quem servia, quer a endereçasse ao povo de quem mais era, - curvem-se respeitosos os homens de boa vontade E se um dia o nosso país quiser representar nas formas da estatuária a dignidade cívica, modele o vulto de Herculano em bronze”. Desses dotes de palavra vem a alcunha de “Águia do Marão”, que Camilo Castelo Branco popularizou, com evidente aplauso geral. O seu exemplo ombreia com os deputados José Estevão e Almeida Garrett.


CULTOR PIONEIRO DA CIÊNCIA POLÍTICA
O seu empenhamento na vida política manifesta-se muito cedo, sendo de destacar a importância fundamental da sua obra-maior Princípios e Questões de Filosofia Política (em dois volumes), onde estão publicados dois notáveis ensaios – “Condições Científicas do Direito do Sufrágio” (dissertação de doutoramento) e “Lista Múltipla e Voto Uninominal” (trabalho apresentado no concurso para lente substituto). Neste texto, de uma importância crucial, o autor defende a universalização do voto, os círculos uninominais e a representação proporcional. Trata-se de um ensaio fundador da Ciência Política em Portugal, que Oliveira Martins considera como um texto referencial na obra Política e Economia Nacional, que constituiu o manifesto do movimento da “Vida Nova”. No campo jurídico, ganhou o respeito e a admiração dos seus pares, em especial nos domínios do Direito Penal e do Direito Administrativo. Contudo, não seguirá o magistério docente, como primeira prioridade da sua vida, preferindo orientar a sua ação essencialmente para o Ministério Público – tendo sido ajudante de Procurador-Geral da Coroa (a partir de 1886 e até 1898) e Procurador-Geral da Coroa e Fazenda (desde 1898), abandonando em 1904 a carreira académica. Foi membro do Instituto de Coimbra, sócio efetivo e Vice-Presidente da Academia das Ciências de Lisboa (1898), tendo sido agraciado com a Grã-Cruz de Santiago de Espada (1900) e com as insígnias da Ordem de Carlos III, de Espanha.


A entrada na política partidária de António Cândido faz-se no Partido Histórico, ainda que só depois do Pacto da Granja e da criação do Partido Progressista (1876) a sua ação passe a ser muito notada. Logo na primeira reunião geral do partido de Braamcamp faz um esplêndido discurso, calorosamente aplaudido. Em 1881 já é membro da Comissão Executiva do Partido e em 1885 torna-se um dos defensores da renovação progressista, aproximando-se do grupo da “Vida Nova”, criado em torno de Oliveira Martins. Foi deputado – em 1879, por Amarante; em 1884, por Coimbra; e em 1887, por Aveiro e ainda Par do Reino (1891), Presidente da Câmara dos Pares (1905), Ministro e Conselheiro de Estado. Foi titular da Pasta do Reino no governo independente de João Crisóstomo de Abreu e Sousa (1890-91), cabendo-lhe a intervenção aquando da revolta do Porto de 31 de janeiro de 1891. Os republicanos acusá-lo-iam da ação repressiva, apesar de alguns dos seus correligionários considerarem brandas as decisões.


CIDADÃO EXEMPLAR
Como parlamentar, António Cândido singularizou-se pela solidez da argumentação, pela grande cultura e segurança jurídica, pela elegância do estilo e pela voz pausada e cristalina. São célebres alguns dos seus discursos, como o de 11 de março de 1880 em matéria orçamental e financeira, onde afirma ser “a questão da Fazenda a questão máxima da política portuguesa”. Defendeu o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, em nome da personalização e da justiça distributiva, bem como do combate à evasão tributária. Em janeiro de 1881, salientou a importância da alternância do poder e reclamou um espírito reformista – pois “o melhor meio de conservar as instituições é afeiçoá-las ao tempo, que na sua corrente impetuosa, irresistível, mata sempre o que não pode transformar”. Em 1885, foi muito elogiada a forma determinada como afrontou o Presidente do Conselho, António Maria Fontes Pereira de Melo – o que não o impediu, dois anos depois, de fazer um sentido elogio às qualidades do estadista que acabava de morrer. Em discordância com José Luciano de Castro, afastou-se do Partido Progressista em 1888 – num trajeto semelhante ao dos seus colegas do grupo designado como dos “Vencidos da Vida”, com Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro, Carlos Mayer, Carlos Lobo d’Ávila, Conde de Ficalho, Conde de Arnoso, Conde de Sabugosa e Marquês de Soveral, de que foi um dos elementos proeminentes. Viria, no entanto, a reconciliar-se com os Progressistas em 1894. Depois de 1910, com a implantação da República, retirou-se da vida política. Em 1918, ainda chegou a ser sondado durante o consulado de Sidónio Pais para se candidatar a deputado numa lista monárquica, mas declinou o convite. Até ao fim da vida gozou de generalizado apreço e admiração.

 

Guilherme d’Oliveira Martins
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ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
SARABAND


1. Apetecia-me começar este texto sobre o último filme de Bergman comentando uma frase de Liv Ullmann que li algures: "Filmes e pessoas não envelhecem da mesma maneira." É tão certo. Mas, como os críticos portugueses acentuam, quase invariavelmente, o retorno do mesmo Bergman como um regresso da casa dos mortos (alguém que já tinha uma lápide em cima e vibrante elogio fúnebre e que, de repente, reapareceu algo obscenamente, quebrando a lousa por sua própria mão), reprimo o apetecimento. Se há coisa que me apetece ainda menos é entrar em polémicas, ao falar de um dos filmes mais desmedidamente belos alguma fez feitos. O filme mais intenso, o filme mais suave, dessa intensidade e dessa suavidade a que Julia Dufvenius (uma das muitas imensas surpresas de "Saraband") se refere, quando, no princípio do seu primeiro diálogo (ou monólogo) com Liv Ullmann, lhe fala do que o pai lhe exige para interpretar a sonata op. 25 de Hindemith (Cena 2). Deixo, pois, essa conversa de tempos e de velhos, para apenas reter dela o que na cena 9 Liv Ullmann diz a Erland Josephson, quando o compara a um personagem de um filme antigo. Erland Josephson reage à notícia da tentativa de suicídio do filho (Börje Ahlstedt, que em tempos foi o tio Carl de "Fanny e Alexandre") com comentários de uma maldade desmedida. Desse filho que agoniza no hospital, após tomar todos os comprimidos que tinha e não tinha (onde é que eu já ouvi isto?), cortar os pulsos e a garganta, não crê na morte. "Quem falhou tudo na vida, até no suicídio vai certamente falhar." Ela não o reconhece em tamanha crueldade. E usa então a comparação citada. Em que filme estaria ela a pensar? É bem possível que num filme de Bergman, onde o Deus Aranha teceu fios equivalentemente perversos. Mas se tudo neste filme de Bergman reenvia a outros filmes de Bergman (quase se poderia citar a filmografia completa), nenhum filme me pareceu menos um filme antigo, e obviamente não estou a pensar no digital HD que não menosprezo mas também não sobrevalorizo. Há muitos anos que não via um filme tão novo, um desses filmes que parece reinventar tudo e onde tudo parece acontecer pela primeira vez. Deixem-me apenas que vos diga que não percebo que se fale de um silêncio quebrado, 21 anos depois da estreia de "Fanny e Alexandre". É verdade que Bergman disse, à época (1982), que não voltaria a filmar. Já o tinha dito antes, muitas vezes, e quebrou a promessa. Como a quebrou, em 1983, com "Depois do Ensaio" e com "O Rosto de Karin"; em 1986, com "Os Dois Bem-Aventurados", e com o documentário sobre "Fanny e Alexandre"; em 1997, com "Na Presença de um Palhaço"; em 2000, com "Os Construtores de Imagens". Foram filmes para a televisão e não para o cinema? Mas não foi esse também o caso de quase todas as suas obras desde "Lágrimas e Suspiros", em 1972? Não foi esse o caso, nomeadamente, de "Cenas da Vida Conjugal", de que alegadamente "Saraband" seria a continuação? Bergman que o disse também o desdisse e não bastam nomes idênticos para idênticos atores (Liv Ullmann/Marianne, Erland Josephson/Johan) para concluir por essa solução (as filhas de então não se chamavam Sara e Martha, como agora se chamam). Essa questão é irrelevante, como é irrelevante o tempo do pousio, se acaso o foi. Prefiro passar à nova música.


2. É verdade que nem sequer o é. O lugar central ocupado pelo quarto andamento da quinta "Suite para Violoncelo Solo", de Bach, já existira em "Lágrimas e Suspiros", para não falar da omnipresença da segunda suite na chamada "trilogia de Deus". Mas, desta vez, em que Bach não está sozinho e traz consigo Bruckner e Brahms, Alban Berg e Hindemith, "Saraband" é título e título de uma obra a que Bergman chamou "um concerto grosso para quatro instrumentos". Sarabanda - Concerto grosso. Andamos pelo barroco, quando a dança perdeu as conotações lascivas que levaram à sua proibição na Espanha do século XVI, para se tornar uma vagarosa e solene dança processional. No filme, conserva-se a lascívia (discretíssima, mas perturbantíssima, na relação incestuosa entre Börje Ahlstedt - Henrik, o filho de Erland Josephson - e Julia Dufvenius - Karin, a filha dele - com quem o pai partilha a cama e a quem beija sofregamente na boca. E sem querer insistir (até porque Bergman só é elíptico quando quer), para mim um exemplo fulgurante de imagem lasciva é aquele plano sublime (só possível graças à imagem digital) em que, no fim da Cena 6, Karin se vê sozinha no ecrã todo branco, com o violoncelo entre as pernas, ponto luminoso perdido na distância, parecendo surgida de um filme de Michael Powell.
Sexta cena. Sex. Posso bem estar a delirar, mas essa cena batizada "A Proposta", passada entre um avô de 86 anos (a propósito, Erland Josephson tinha 80 à data da rodagem, 86 era a idade de Bergman) e uma neta de 19, é, sem dúvida, a mais erótica do filme. Toda vestida de encarnado (da única vez que se veste assim, roubando a cor a Liv Ullmann) cercada pelos sons altíssimos da 9ª de Bruckner, Karin, antes de entrar no escritório do avô, controla cuidadosamente a aparência e vestes, e avança depois, sem que ele a ouça, até o despertar com um beijo e uma vénia. O avô lê-lhe então a carta da proposta (o convite do maestro russo para uma carreira de solista) e oferece-se para lhe pagar os estudos e o violoncelo digno de um Guarnerius. Como sempre, é mais um monólogo do que um diálogo e pouco ou nada Karin responde à tentação altíssima. O avô despede-a, após a conversa sobre Freud e os cigarros, a pretexto de muito cansaço e é então que Karin tem essa autovisão, essa espécie de dissonância na composição da sequência, de que outros exemplos sumamente heterodoxos abundam durante o filme. Mas não me consigo despedir desta música sem citar outra dessas dissonâncias, a mais brutal porque é a primeira. É a meio da Cena 2, entre Liv Ullmann e Julia Dufvenius, quando esta conta àquela a sua violenta cena com o pai. Subitamente, saímos do quadro e vemos (no que não é um "flash-back") a dita cena intensamente física. Depois, a rapariga foge de casa, em camisa de noite, percorrendo a floresta como a virgem da fonte, até entrar na água escura de um pântano e desaparecer da imagem, sem que a câmara se mexa. Ouvimo-la, então, em "off", num uivo desmedido, até reaparecer no plano. Jean Michel Frodon, comentando essa cena, fala de morte e ressurreição. E diz: "Nunca, talvez, se tenha mostrado esse duplo acontecimento extremo - morte e ressurreição - de maneira tão poderosa. Nem no cinema, nem no teatro, nem na pintura." Tem razão.


3. "Concerto grosso para quatro instrumentos". Atores há cinco, mas quatro preenchem quase todo o filme. Um prólogo, em epílogo e dez cenas. Mas nas cenas nunca estão mais do que duas personagens, exceto nas dissonâncias aludidas. Mas há muitas outras personagens ausentes. E uma há que, retomando uma designação antiga, eu poderia dizer, sem dizer nada que não tenha sido já dito e redito, que é a "protagonista ausente" desta obra. Falo de Anna, a mãe de Karin, a mulher de Henrik, que morreu de cancro dois anos antes de o filme começar. Dela, temos recorrentemente, em casa do marido, em casa do sogro, o retrato a preto e branco. Amou-a o marido, amou-a a filha, amou-a o sogro e não parece que nenhum deles tenha amado alguma vez mais alguém. Foi o "anjo" naquele "ninho de víboras"? Tudo e todos parecem dizer que sim, única presença de amor feita, única presença feita para o amor. Ela só parece ter estado de lado daquela origem que Erland Josephson misteriosamente nomeia, quando comenta, na Cena I, a beleza da paisagem que o rodeia: "O mundo é pleno de belezas. Como deve ser bela a origem delas!" Ela só parece assemelhar-se ao São João que repousa no colo de Cristo, na ceia medieval da igreja da cena V e que Liv Ullmann vem ver de perto, no fim dela, única cena de onde o grande plano esteve ausente. Mas será verdade? Quando Henrik termina o seu longo monólogo na cama com a filha (cena 3) vemos-lhe o retrato em grande plano. E há um breve efeito (outra vez o vídeo), em que os olhos do retrato parecem disparar uma luz luciferina (um encarnado tão rápido, mas não mo tirem) sobre a filha e o marido no leito conjugal. Muito depois (cena 7), vem a leitura da carta que Anna deixou ao marido, sobre a relação dele com a filha. Essa carta é carta salvadora ou carta de perdição? Pelo menos, a partir dela tudo se consome. Karin, que resistira à proposta do avô, não resiste ao convite de Abbado, a sarabanda da Suite não chega a ser tocada, e Henrik suicida-se sem que a filha o saiba. E é depois (cena IX) que surge a sequência genial da hora do lobo, em que Erland Josephson, numa "diarreia de angústia", irrompe pelo quarto de Liv Ullmann, para, nu, se deitar junto ao corpo também nu da ex-mulher de 63 anos (a propósito, a idade real de Liv Ullmann à data da rodagem). Parecia que o filme não podia crescer mais? Mas há ainda o epílogo. Como no prólogo, Liv Ullmann dirige-se à câmara (dirige-se a nós) e, numa última dissonância, assistimos ao seu encontro com a filha catatónica, que, por breves momentos, abre os olhos como que respondendo ao afago da mãe. "E, pela primeira vez, nas nossas duas vidas, percebi, senti, que tinha tocado na minha filha. Na minha criança."
O ecrã fundo em negro. O filme acabou.


4. Eu não consigo acabar sem vos fazer uma pergunta. Alguma vez pensaram que o grande plano é a única figura da gramática do cinema que só no cinema existe e que não é concebível em qualquer outra arte? Pintores pintaram grandes planos, mas o quadro impede-nos de os ver como tal, a não ser que encostemos a cara à tela, em movimento nosso e não da pintura. Não é maneira de a ver, não é movimento suposto ao espectador.
Mas a câmara pode o que o nosso olhar não pode. E a câmara de Bergman pode mais que qualquer outra câmara, mesmo a de Griffith. Neste filme, vai ainda mais longe. Ao acercar-se mais e mais dos quatro rostos e das quatro vozes, para além dos corpos, dá-nos a ver almas. Impossível? Não para esse génio de todos os possíveis, chamado Ingmar Bergman.

 

por João Bénard da Costa
21 de janeiro 2005 in Público

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