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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ANTOLOGIA

  


LEMBRANDO TRISTÃO E ISOLDA
por Camilo Martins de Oliveira


Escrevo em noite tranquila de sábado de Carnaval. Vi TV e jornais, surpreendeu-me a insistência publicitária na promoção do "Dia dos Namorados" que, por coincidência com o calendário do tempo litúrgico - o qual, curiosamente, assemelha a perspetiva escatológica do ocidente cristão à noção cíclica do tempo circular dos orientais -  com a celebração adventícia e, para nós, pós-modernista, da "festa" de S. Valentim, apaga da "comunicação social" a nossa "Quarta-Feira de Cinzas"... A fé é - ou melhor deve ser, para os crentes de qualquer religião que acreditem que Deus não é a minha verdade nem o meu código, mas o Senhor da minha libertação - motivo de esperança e vocação de amor. O propósito do ciclo quaresmal, que esta 4ª feira anualmente inicia, é lembrar-nos o paradoxo da condição humana: a morte que não é fim, mas regresso ao estado inicial, onde somos recriados. Memento homo quia pulvis es et in pulverem reverteris. Aqui, mutatis mutandis, também não estamos longe de filosofias orientais.... Com a diferença de que acreditamos que a nova criação resulta do envolvimento histórico de Deus na condição do mundo e das pessoas que criou. Esta fé, ou simples crença, ou mesmo só um mito fundador da nossa cultura, torna a memória das nossas cinzas uma celebração bem mais vital para a sociedade hodierna do que o festejo comercial de entusiasmos efémeros. O amor - e penso no amor humano, de corpo e alma - mesmo esse pode, e deve ser celebrado na consciência da nossa precaridade, mas também no conforto "terreal" que nos oferece a promessa da plenitude por vir. A moral cristã não é maniqueísta. E, por isso mesmo, não pode ser leviana. O funcionamento da consciência cristã é como o aparelho digestivo. Já Jesus dizia, que não é o que entra em nós que nos torna impuros, mas o que de nós sai. Será, quiçá, "nosso dever e nossa salvação" rever uma qualquer insistência mórbida num cristianismo contrito, que nos leva a esquecer a alegria natural da promessa que é a vivência do amor em cada dia, em cada um de nós segundo a sua vocação e a circunstância da sua vida. Até na celebração eucarística, a postura sofredora dos comungantes lembra, a quem de fora assista, mais uma condenação do que a libertação dos filhos de Deus. Por outro lado, sou negativamente sensível a essoutra manifestação de precaridade, a tal a que Zigmunt Bauman chamou "amor líquido", como a vemos no "Dia dos Namorados". Revela, afinal, o apego contemporâneo à aparência agradável das coisas, que determina, precisamente ao invés das "Cinzas", o esquecimento ou o disfarce da morte. Assim regresso a uma carta que Camilo Maria me escreveu: "Os quatro primeiros "Essais sur l´histoire de la mort en Occident" são os textos das quatro conferências que Phillipe Ariès proferiu, no início desta década (1970) na John Hopkins University, nos EUA. O primeiro tem por título "La mort apprivoisée" e cobre mil anos de uma mesma atitude perante a morte, tal como a encontramos desde a "Chanson de Roland" (em Roncesvales, Rolando, Olivier e o arcebispo Turpin, todos sentem que a morte se aproxima e os vai tomando), ou nos romances da "Távola Redonda" (a morte de Lancelote, p. ex.) e de "Tristão e Isolda" (esta, vendo Tristão morto, sabe que morrerá também e a seu lado se deita, virada para o Oriente), até, séculos mais tarde no "Dom Quixote": "minha sobrinha, diz ele, muito serenamente, sinto-me perto da morte". Esta anuncia-se sem sinais sobrenaturais ou mágicos, mas simplesmente por circunstâncias naturais e uma convicção íntima. Como nos "Três mortos" de Tolstoi - que Ariès refere - quando um velho cocheiro agoniza e uma mulherzinha lhe pergunta “como vai isso?” e ele responde “a morte está aí, eis o que é”. Da sua convivência com os mujiks, gente do campo, aprendeu o grande escritor russo a resposta natural à pergunta que ele mesmo formularia, na hora da sua morte, numa estação de província: E os mujiks? Como morrem os mujiks? Cada um aceita a sua morte e todos convivem com a morte dos outros. Saltarei agora as conferências sobre a "Mort de soi" e a "Mort de toi", muito embora, meu caro Camilo Lusitano, ainda tenhamos de debater - pese a nossa diferença de idades - essa questão da aproximação de Eros e Thanatos que atraiu tantas atenções místicas, literárias e artísticas, sobretudo no século XVI... Pois quero hoje chegar à contraposição da morte domesticada (apprivoisée) com a morte interdita, ou tabu. Mas não me esqueço daquele jantar que tivémos (foi no "Le Muniche" ou no "Le Diplomate"?) em que, dessa tua sageza juvenil que sempre me "iscou", me atiraste a afirmação lapidar de Georges Bataille: "L’érotisme c’est l'affirmation de la vie jusque dans la mort"... Sabes bem - e o que agora pronuncio será, talvez, mais do que um laço de sangue, ou uma pertença de classe, contigo, uma atitude cultural comum - que, sobretudo para um aristocrata, já não é afirmar ou impor. Importante, sim, é partilhar o gosto e o conhecimento que, por privilégio de nascimento ou condição, nos foi dado, de modo a que a partilha possa despertar noutros espíritos a ousadia de novas descobertas. Um aristocrata que só olha para trás é um idiota... Não vou, portanto, formatar ideias. Vou simplesmente deixar-te para reflexão, dois passos dos tais "Essais" do Ariès: "Hoje, a iniciativa passou da família, tão alienada como o moribundo, para o médico e para o hospital. São eles os patrões da morte, e, também, do momento e das circunstâncias da morte, e verificámos que se esforçam por obter do seu paciente um "acceptable style of living while dying", um "acceptable style of facing death". A tónica cai no "acceptable". Lendo isto, receio perceber que o aceitável é hoje o que nos convém, e não o como e o para que fomos feitos... Mas volto a Philippe Ariés, quando cita o sociólogo inglês Geoffrey Gorer que, num artigo publicado em 1955, sob o título "The Pornography of Death", afirmava que, no séc. XX, a morte substituiu o sexo como principal tabu ou interdito. Traduzo do Ariès: "Dantes, dizia-se às crianças que tinham vindo ao mundo numa couve. Mas elas assistiam à grande cena do adeus, à cabeceira do moribundo. Hoje, são iniciadas, desde tenra idade, na fisiologia do amor, mas quando já não veem o avô e perguntam por ele, dizem-lhes que está a descansar num jardim, entre flores."

 

Camilo Martins de Oliveira

Obs: Reposição de texto publicado em 22.02.2013 neste blogue.