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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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DE JOÃO PAULO I A JOÃO XXIV


1. Não gosto de canonizações, sobretudo de canonizações de Papas, pois, para lá do mais, até fazem lembrar endogamia. Mas gostei que João Paulo I tenha sido lembrado no passado dia 4 de Setembro, 44 anos após a sua morte (Setembro de 1978), e beatificado.


Ser Papa era a última coisa que ele desejaria. Aos cardeais que o elegeram apresentou-se como “um pobre de Cristo”: “Que Deus vos perdoe!”. Claudio A. Andreoli na biografia: Albino Luciani. João Paulo I, que estou a seguir, continua: “Não haverá tiara nem entronização.” Trata-se apenas de “dar início oficial ao seu serviço pastoral”. Sorrindo, perguntou “como é que se faz de Papa: ‘Em toda a minha vida dei catecismo aos garotos. Mas que mudança!’” Mais: tem de dar a bênção aos cardeais, mas interrrompe-se: “Parece-me um pouco estranho dar-vos eu a bênção apostólica… Sois todos sucessores dos Apóstolos. Mas, enfim, está aqui escrito: ‘Em nome de Cristo, dou, com efusão de sentimento a vós, aos vossos colaboradores e a todas as almas confiadas aos vossos cuidados pastorais, as primícias da minha propiciadora bênção apostólica’… um tanto ou quanto áulica a linguagem… Paciência!” Não quis que se falasse de trono. Aceitou com resignação ser transportado na cadeira gestatória, para poder ser visto pelas pessoas, mas dirá pouco depois às religiosas do apartamento pontifício: “Não posso aceitar ser transportado assim. Se aqui estivesse a minha mãe, diria: ‘Albino, não tens vergonha de seres levado aos ombros no meio de toda a gente?”…


Na homilia da tomada de posse, o plural majestático desapareceu. “Há poucos minutos, o professor Argan, Presidente da Câmara de Roma, dirigiu-me amavelmente palavras corteses de saudação, exprimindo-me os seus votos. Algumas das suas palavras fizeram-me lembrar uma oração que eu recitava, com a minha mãe, quando era pequeno. E era assim: ‘Os pecados que bradam ao Céu são… oprimir os pobres, negar o justo pagamento aos operários’.” E acrescentou: “Em Roma, reportar-me-ei sempre à escola de São Gregório Magno: ‘O Pastor esteja próximo de cada um dos súbditos com compaixão, esquecendo a sua categoria; considere-se igual aos bons vassalos, mas sem medo de exercer contra os maus os direitos da sua autoridade. Lembre-se de que, enquanto todos os súbditos elevam ao Céu o que fez de bem, ninguém ousará censurar o que fez de mal; quando reprimir os vícios, não cesse de se reconhecer com humildade igual aos irmãos que corrige; e diante de Deus sinta-se tanto mais devedor quanto mais impunes ficam as suas acções perante os homens’…  Seja-me permitido juntar só mais uma coisa: é Lei de Deus que não se possa fazer o bem a quem quer que seja, se antes não se lhe quer bem.”


Evidentemente, os senhores da Cúria sentiam desconforto e desconcerto com esta simplicidade e humildade. Por isso, não poupavam nos comentários críticos e ácidos. Quando pediu aos fiéis para rezarem “por este pobre de Cristo”, pareceu a alguns que tinha dito uma blasfémia. Os fiéis, esses entendiam e saíam felizes das audiências da Quarta-Feira, juntavam-se aos milhares, muitos milhares, para vê-lo e escutá-lo.


Sobre a cruz peitoral. Os fiéis da sua terra natal tinham-lhe oferecido uma em ouro por ocassião da ordenação episcopal, que mandou substituir por outra de prata esmaltada. Agora, um prelado da Cúria sugeriu que ela fosse substituída, para as fotografias oficiais: “Santidade, tendes essa cruz peitoral pequena, de prata…, não seria melhor usar outra mais apropriada e compatível com a vossa dignidade?” Ele olhou curioso e perguntou: “Que tipo de cruz é que devo trazer ao peito?” O prelado abriu uma caixa: “Por exemplo, esta, Santidade. É uma cruz artística, de ouro.  É muito simples, mas muito digna…”  Ele tirou o cordão, separou a cruz peitoral de prata e enfiou a nova, dando um suspiro: “Que pena!...”


O seu pontificado durou 33 dias. Por causa da sua afabilidade, ficou conhecido como “o Papa do sorriso”. Foi encontrado morto na sua cama na manhã do dia 29 de Setembro pela irmã Vincenza Taffarel. Significativamente, o comunicado da Sala de Imprensa da Santa Sé anunciou que tinha sido encontrado pelo secretário particular.


Ficaram sempre as suspeitas de assassinato. Lá está a eterna pergunta: Porque não se fez a autópsia? O que se sabe é que era sua intenção profunda avançar com a renovação da Cúria e pôr ordem no Banco do Vaticano que transportava escândalos trágicos.


2. Com os sucessores, João Paulo II e Bento XVI, houve retrocesso em relação ao Concílio. Francisco voltou ao espírito revolucionário conciliar, e estou convencido de que, apesar das suas limitações de saúde, tem o desejo firme de estar presente no Sínodo dos Bispos, em Outubro de 2023, sobre a sinodalidade da Igreja, aprofundando a consciência de que a Igreja são todos os baptizados, devendo todos ter voz para a sua renovação segundo o Evangelho. Quer que o seu successor não retroceda — na entrevista a Maria João Avillez, não lhe saiu aquela de que o Papa vem mesmo à Jornada Mundial da Juventude em Lisboa, só não sabendo se é ele, Francisco, ou João XXIV? —, pelo contrário, avance, no contexto do processo sinodal, para o futuro concretizando exigências das Igrejas locais: uma Igreja humilde, inclusiva, reforma da Cúria, igualdade das mulheres na Igreja, incluindo a ordenação, fim do celibato obrigatório, um novo empenho no diálogo com o mundo globalizado, com outro modelo de economia…


João XXIV, um Papa João XXIII para o século XXI.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 1 de outubro de 2022