A VIDA DOS LIVROS
De 10 a 16 de outubro de 2022
Agustina Bessa Luís (1922-2019), cujo centenário se assinala no dia 15 de outubro, completa em “Sebastião José” (1981) o que Camilo Castelo Branco refletiu sobre a personagem do Marquês de Pombal.
PERITO NA DUPLICIDADE
Agustina Bessa-Luís, no pórtico de “Sebastião José”, onde segue por caminho próprio uma ideia que vem de Camilo Castelo Branco, lembra: “Alguém, não recordo o nome, disse-me que para escrever uma biografia se tinha rodeado de retratos daquela pessoa que ia chamar. Chamar, é o termo. É usado nas sessões espíritas para evocar a presença dos mortos. Quando queremos conhecer esse que já não é deste mundo e que deixou uma lenda na sua passagem, ou uma obra de que podemos fazer uso, temos de o chamar. Não basta no caso de Sebastião José, o Marquês de Pombal, olhar para as telas que o retratam”. A representação mais comum é a do homem no auge da sua ação e fama, no centro de uma cena teatral, “donde dirige, pensa, discute e manda. Aproveita a calamidade com essa argúcia que faz dum ambicioso um homem de Estado e faz dum anónimo um criador do seu destino”. A romancista revela nestas palavras muito do que é a sua obra e do seu original método de trabalho. Neste caso, tratando de alguém que viveu, teve obra, mas também gerou ambição e ódio, Agustina lidou com a melhor matéria-prima, a humanidade, com que construiu a sua obra originalíssima. Como se tratasse de uma sessão com mesa de pé de galo, a romancista usou a propósito de Sebastião José dois métodos complementares – o da inspiração a partir de alguém que teve existência própria e o da criatividade de usar da imaginação para criar uma personagem romanesca, como uma marioneta que se liberta dos fios que a prendem e ganha vida. E ninguém melhor do que a personagem de Sebastião José para encarnar estas duas facetas – a determinação e o determinismo.
Pombal seria um “perito na duplicidade e no jogo picante que ela acarreta, sabe que o apelo à seriedade é indispensável quando se governa. Não é um homem carrancudo, apenas insincero”. Era, assim, um “comediante nato como todos os verdadeiros tiranos”. E que melhor carácter se poderia desejar para uma trama dramática? Como os melhores heróis das tragédias clássicas, o Marquês protegia-se de quem temia e procurava cair-lhe nas boas graças. “Evitava as tentações, não se deixava corromper, e não há maior prova de temor do que essa. O mando é virtuoso e a crueldade costuma ser sensata”. Muitos dos leitores de Agustina surpreendem-se com a sua capacidade de salientar a importância da ilusão e do engano. Mas a verdade é que a chave da sua criação romanesca está num permanente jogo da cabra-cega, em que todos os intervenientes têm os olhos vendados, como acontece na história dos povos. De facto, “a vida dos povos está mais assente nos seus equívocos do que nas suas crenças verdadeiras”. E o que faz Agustina Bessa-Luís? Parte sempre em busca dos equívocos e por isso tantas vezes parece analisar o género humano como se preferisse ver o avesso de um tapete, para melhor entender a trama que o tecelão entretece para mostrar o desenho da face direita em toda a sua beleza. E porque refiro uma obra biográfica e histórica? Exatamente porque assim vemos como funciona a escritora na sua oficina de escrita – procurando não se iludir com a aparência das coisas, preocupada em entender plenamente a sombra dos protagonistas projetada no tapete. “Para homens destes, a glória é precária e sempre ensombrada. Não têm amigos, têm aduladores”.
MISTÉRIOS DA EXISTÊNCIA
Se a propósito de “Sebastião José” encontramos o método e a procura, através da literatura, dos mistérios da existência humana, ao longo da obra de Agustina, designadamente nas suas sagas familiares percursoras, como “A Sibila” e “Os Incuráveis”, descobrimos a persistente busca do subsolo das existências humanas. “Nesse ano, no Douro, Maria absorveu-se a penetrar minuciosamente essa recordação entrecortada, perdida, reatada através de inúmeras memórias, afetivas ou indiferentes, dos que tinham passado ou viviam ainda e que, de algum modo, comunicavam consigo”. É a memória de quem está ou de quem partiu que preocupa a romancista. Por isso, começámos por falar da “chamada” que Agustina invoca quando procura reunir as imagens de um biografado como Sebastião José. Afinal, as imagens invocam sombras e fantasmas numa história em que o presente-passado se encontra com o presente-presente.
João Bénard da Costa, ao prefaciar “Os Incuráveis”, lembrava o que Alberto Vaz da Silva lhe disse ao falar-lhe do romance: demorou-se num minuto pungente, “num instante agudíssimo e terrível. Era aquela despedida no tombadilho de um barco, quando Petronila, ‘implacável mãe’, estava grávida e regressou sozinha para o continente. O véu dela era cinzento, o marido ergueu-o ‘com a mão que tremia’ e beijou-a ‘de levezinho como se beija um morto, como quem diz adeus atá ao fim do mundo’. (…) Mas em nada disso está afinal o amor, que é a graça de estar presente e simultaneamente extinto na afirmação de todas as coisas e de todos os outros”… Quer o Padre Manuel Antunes na crítica que fez da obra quando saiu, quer João Bénard neste prefácio convergem em considerar a importância romanesca superlativa e a extrema beleza da escrita em língua portuguesa.
UM FORMATO ESPECIAL…
Eduardo Prado Coelho disse ainda que Agustina “inventou o seu formato de romance, que é muitas vezes aparentemente histórico, mas que tem a sua intemporalidade própria. Na recriação do passado, revela um conhecimento histórico impressionante. Na recriação de outros lugares, a partir de alguns livros é capaz de parecer que os conhece desde sempre e lá passou toda a infância”. Do que se trata é de uma extraordinária capacidade de lidar com a memória, pessoal e alheia e de compreender que há um elo de eternidade nas relações humanas. Mas a escritora disse sempre não escrever romances de amor, o que intrigou Eduardo Prado Coelho. Como seria assim se o desejo de poder ou a sexualidade estão tão presentes na obra da romancista? Para ela, contudo, não haveria mistério algum, uma vez que o que estava omnipresente na sua escrita era a compaixão. Na relação com os outros havia essa partilha de compromisso, que permitia explicar as vicissitudes humanas. Como Frederico Lourenço disse, melhor que alguém mais fez: “A torrencial omnisciência da narradora e a facilidade inconsequente com que salta dos pensamentos e reações de uma personagem para outra faz com que em nenhuma seja insuflado o sopro de Pigmalião”. Importaria, sim, menos do que uma racionalidade, o curso dos acontecimentos de vidas comuns que ajudam a explicar quem somos. Essa a paixão de Agustina: surpreender pela exigência de compreender os outros pelo inesperado, pelo que permanece e pelo que procuramos ocultar…
Guilherme d’Oliveira Martins
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