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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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OS MORTOS TÊM SAUDADES NOSSAS

 

Estes dias outonais em que celebramos o centenário de Agustina Bessa-Luís são ocasião para lembrar o que um dia nos disse: “depois de mortos temos muito mais para ensinar”. E recordo uma visita que a romancista fez com José Régio à casa de Camilo Castelo Branco, em Seide, relatada em “O Tempo e o Modo” (nº 15, abril de 1964). O texto está repassado de paixão pelo mundo romanesco. A descrição baseia-se numa construção fascinante, suscitada pelo génio e pela imaginação criadora.  


«Diante do portão da casa de Seide tinha parado uma caleche verde; um padre obeso, duma palidez de recolhimento e de dietas, inclinava sobre o ombro a cabeça romana como a de um senador vencido. Não dormia. De vez em quando debruçava-se na sombra em que se percebia a fofa espessura duma manta de viagem que, apesar do calor, lhe cobria os joelhos; o olhar vivo riscava por um momento a faixa do portão semiaberto. A sua presença insólita e, no entanto, encarada como legítima, carregava-nos subitamente o coração de uma ansiedade furtiva: “São coisas como estas que a mim me causam calafrios” – disse o Régio». A este calafrio do companheiro de viagem, correspondia, contudo, uma sensação diferente de Agustina que, rindo intimamente, deixava-se entusiasmar pelo que a apavorava. E Camilo atraía-a, ele que se considerava desde novo predestinado para o infortúnio.  Mas, em bom rigor, esse infortúnio era menos condição própria e mais carácter dos outros. E, de facto, aquele ambiente era propício a pensar na comédia e no drama da vida.  “Da sala de trabalho de Camilo veem-se as hortas onde o calor desbota os verdes trigados de azul e do ouro dos primeiros anúncios de outono. Pensamos naquele escritor ali recluso não por desdém do mundo, mas por respeito pela forma de expressão que lhe foi conferida”. E alguém chama pelos visitantes, ou parece chamar. “Uma porta bateu talvez, outra chiou prolongadamente. ‘É alguém que tem saudades nossas’ – dizemos. Só os mortos têm saudades e chamam de longe, para que não os esqueçamos”. De facto, naquela tarde, Régio e Agustina sonhavam acordados em tal ambiente propício.  Camilo ligou sempre o “léxico do coração” a “muita ousadia”. E aquele lugar estava repleto de espíritos e de sentimentos contraditórios. José Régio inquietava-se e Agustina regozijava. O calor continuava. As palavras de Raul Brandão recordam: “A natureza chorava revolvida: a acácia do Jorge batia-lhe devagarinho nos vidros. Quem é que o chama? Atormentado de dores, ouve vozes, vê fantasmas”. Camilo está omnipresente. Os espíritos reais e imaginários abundam nas redondezas – Ana Plácido, Fanny Owen, José Augusto, Vieira de Castro, Simão Botelho, Calisto Elói, Eusébio Macário, tão diversos convívios.  


Num ápice, “já não está ao portão a caleche com o seu estranho viajante abrigado com a manta alpina”. Régio e Agustina perscrutam os arredores, a tentar perceber o que ocorreu. E ela, com intuição feminina, imagina que se trataria de um cónego velho que viria comprar alfaces; “há destes ladinos intuitos sob a forma de excentricidade e do mistério”. Mas comove-se com a estranheza do episódio, que reclama um desenvolvimento. “E, como para defender a gestação da memória, rodeio-a (diz-nos) de uma frialdade hibernal que intimida o doce mundo do convívio presente”. Eis a síntese que Agustina considera essencial. A memória é matéria-prima que se junta à imaginação. E este encontro com Camilo e a presença discreta de José Régio, permite compreender a coexistência e a distinção entre o mundo real e a ficção. Como poderemos entender esses mundos se não nos tornarmos simultaneamente protagonistas, narradores e figurantes capazes de criar ou de destruir? Essa dimensão de “deus ex machina” entusiasmava Agustina, deixava-a em êxtase, perante o mundo encarado como gigantesco palco de sentimentos e paixões.    


GOM