CRÓNICA DA CULTURA
Neste poderoso livro Misericórdia
há uma vida quase desconhecida, mas veemente, que se passa num lar da terceira idade, no qual a mãe de Lídia
irá viver os seus últimos tempos de vida.
Num ambiente concentracionário a escritora consegue atingir a esperança pelo mistério que a todos envolve,
afinal,
que a todos amarra,
num tempo de muitos tempos de pessoas em fim de vida
e de outras
quando tudo é experiência da condição humana.
E de tudo nos despedimos antes de entrar para estes locais-casas-do-adeus-final.
Antes,
há despedidas das nuvens e da lua que permanecem; dos bules de chá e dos caminhos para casa; das glicínias, do guarda-fato das peças amadas, das fotografias, e demais realidades que o livro recorda como de imprescindível despedida.
E é preciso não esquecer que este adeus é de um nunca mais ver pelo mesmo ângulo
e é de algum modo,
a memória surpreendente com a qual Dona Alberti enfrenta a nova residência-lar, acautelando que
Morrer é isso mesmo, é a verdade e a mentira já serem coisas iguais,
e isso ela não permitirá, nem que tenha de abrir todas as gavetas de uma cómoda imaginária até encontrar dois ouvidos:
o dela e o dos outros.
Até que consiga dar luta à charrete, cadeira de rodas das tangentes e secantes, empurrada por quem se não vê, mas que pode visar a alma
se nada se souber dos dias belos.
Um livro duro, realista até nos conflitos entre os residentes
quando nem se aproximando a morte se esbatem as classes sociais.
Quando até as formigas são suspeitas,
e as crianças acendem balões de cheiros de maçã assada com memórias de canela.
E cheia de fulgor:
Deixa-me da mão, ó noite. Estou cheia de energia, quero voltar ao pátio da escola e saltar até me voar o chapéu.
A filha de Dona Alberti
é escritora,
e diz à mãe que escreve sobre o cão da História
e admite
com um saber fulgurante de quem engravida,
que voltou a não descobrir
aquilo que queria,
e que por essa razão precisará de escrever outro livro.
Pelos livros de papel, por quem oferece livros em vez de vazios e violências,
para que se não deixem os homens ao abandono, e se lhe escutem e interpretem as falas, e se lhes faça companhia,
e pelo fenómeno multiplicador da poesia
assim te aguardo e te espero ó Lídia Jorge!
Teresa Bracinha Vieira