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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


É o ‘espirito do cinema’ que inunda e alimenta todos os outros ecrãs.


‘The obscenity of our culture resides in the confusion of desire and its equivalent materialized in the image (…) It is this promiscuity and the ubiquity of images, the viral contamination of things by images, which are the fatal characteristics of our culture.’ (Koolhaas 1995, 787)


No livro L’Écran global. Du cinéma au smartphone., Gilles Lipovetsky e Jean Serroy lê-se que são os filmes e os ecrãs que constituem e mudam o mundo de hoje. Vive-se dentro do ecrã - os espaços de encontro da cidade foram substituídos pelas redes sociais e pelas compras online personalizadas. Há uma angústia de não se estar ligado, há uma necessidade em preencher o vazio do isolamento. O individualismo hipermoderno é assim acompanhado por um paradoxo: quanto mais livre e independente é o individuo, mais freneticamente subordinado e sujeito está em relação às ligações imparáveis com os outros. O desassossego surge assim que se está desconectado: ‘Il y a eu une distanciation individualiste, il y a maintenant une interconnection hyperindividualiste. Le ‘je suis’ ne s’affirme plus dans la revendication d’une intériorité authentique et souveraine, mais dans la multiplication des liens virtuels de soi avec les autres au travers de réseaux de socialisation toujours plus larges dans lesquels le sujet est tout à la fois acteur et consommateur.’ (Lipovetsky et Serroy 2007)


A cultura da transparência expõe online o imediatismo de uma experiência sem segredos, sem recuos e em contínuo. É uma cultura que procura a existência (truncada, desenquadrada, descontextualizada, volátil e incoerente) sob o constante olhar e aprovação dos outros. O autoretrato do individuo hipermoderno constrói-se através da comunicação compulsiva da vida privada e da constante necessidade de publicidade do eu singular. Lipovetsky e Serroy explicam que foram os filmes e sobretudo o cinema que muito contribuíram para esta vivência que se partilha através do ecrã, sem parar. 


‘… le cinéma est celui qui a changé le premier l’imaginaire des hommes et leur rapport au monde, et qui a imposé ce changement en pénétrant tous les autres écrans tout au long du XXe siècle.’  (Lipovetsky et Serroy 2007)


O mundo contemporâneo ao ser um mundo urbano é naturalmente visual, porque queremos ver e ser vistos. Em vez de contemplar, o ser urbano anseia por sensações vertiginosas, excesso, imediatismo, simultaneidade e gratificação instantânea. É através das imagens que se satisfazem todos os desejos de conhecimento, de entretenimento, de socialização e de relacionamento. Para Lipovetsky e Serroy, vivemos no tempo do ecrã total - na tecnologia, no fluxo financeiro, na vigilância, na informação, na arte, na música, no entretenimento, no desporto, na publicidade, no diálogo, no saber… Toda a vida e todas as relações com aquilo e com aqueles que nos rodeiam, são totalmente mediatizadas, por uma multitude de interfaces.


Apesar de nos dias de hoje, o cinema ter perdido a sua posição dominante, ainda é através dos filmes que se aprende a ser - os filmes já fazem parte do imaginário de cada um. O indivíduo da sociedade hipermoderna olha para o mundo como se de cinema se tratasse. O cinema é o filtro inconsciente e perecível por onde se vê a realidade em que se vive. Lipovetsky e Serroy explicam que a esfera de ação dos filmes penetra todos os aspetos da existência e tenta sempre não excluir nenhum tipo de identidade e de experiências. O cinema é formador de um certo olhar que influencia fortemente diversos aspectos da vida contemporânea: ‘…on adore un film comme une mode, c’est-à-dire dans un intervalle court.’  (Lipovetsky et Serroy 2007)


O cinema sempre triunfou a explorar o imaginário através da espetacular produção de imagens icónicas e do star-system e esse é o ‘espirito do cinema’, que inunda e alimenta todos os outros ecrãs: ‘…nous sommes tous en passe de devenir des réalisateurs et des acteurs de cinéma (…) on veut non plus seulement voir des ‘grands’ films, mais le film des instants de sa vie et de ce qu’on est en train de vivre.’ (Lipovetsky et Serroy 2007)


O cinema nasceu sem antecedentes, sem passado, sem referências, sem modelos, sem ruturas, nem oposições. Foi a técnica que inventou o cinema. Mas o seu verdadeiro sucesso deu-se assim que se começou a referir a uma narrativa com força emotiva. O cinema, a tela e o ecrã luminoso projetam o movimento da vida através da lógica do efémero e da sedução. O cinema é a arte da ilusão, da idealização, da artificialidade e da mitificação. Explora ao máximo a magia das aparências para ser imediatamente consumida em massa: ‘Le cinéma vise le grand public, un public de masse envisagé sans distinction de classe, d’âge, de sexe, de religion et de nation. (…) Un art d’essence démocratique, cosmopolite, à vocation aussitôt planétaire…’ (Lipovetsky et Serroy 2007)


O cinema é a ‘caixa mágica’ e a ‘catedral do prazer’ que fabrica e contém todo e qualquer tipo de sonho e objeto de desejo mais íntimo. É o cinema que fornece o imaginário do público em massa. Através do cinema, a distância entre o indivíduo e o mundo imaginado/desejado desaparece por completo. Foi a invenção do cinema, que permitiu ao ser humano estar constantemente dentro do mundo que deseja. E a sua retórica simplificada implica o menor esforço possível para que possa ser compreendida, sem demora, pelo espectador (que não necessita de qualquer formação prévia).


Para Lipovetsky e Serroy, o cinema não trata de se referir a qualquer tipo de elevação espiritual e nem tenta revolucionar o olhar que se tem sobre o mundo. O cinema deseja simplesmente ser imediatamente consumido permitindo satisfação instantânea. É a evasão mais fácil e acessível do indivíduo contemporâneo. Tal como a moda, o cinema é capaz de modificar atitudes, códigos de beleza, modos de ser e de fazer. Não é por isso um simples reflexo do seu tempo, porque altera, ainda que breve e transitoriamente, gostos e sensibilidades. Na opinião de Lipovetsky e Serroy, o cinema é tal como um produto de consumo não durável, o seu efeito é efémero e pontual.


A partir do cinema constrói-se assim a ideia de que é possível viver dentro de outras realidades, do efeito poderoso da imagem, da permanente presença do ecrã e da construção de um mundo genérico e global. O ‘espírito do cinema’ muito contribui, por isso, para o presenteísmo extremo da contemporaneidade - através do desejo de vibrar na velocidade e na intensidade do momento descontínuo e na repetida experimentação de sensações diretas e imediatas. Lipovetsky e Serroy reforçam, deste modo, a ideia de que hoje se vive dentro de um constante filme instantâneo, feito de imagens excessivas e extremamente sensoriais e que intensificam o individualismo hedonista e compartimentado.

 

Ana Ruepp

HOMEM: O ANIMAL FALANTE E POLÍTICO

  


Lá está Ludwig Wittgenstein: a linguagem não serve apenas para descrever a realidade, usamo-la também para pedir um favor, para agradecer, para amaldiçoar, para saudar, para rezar...


E é preciso atender ao contexto, à situação, ao uso. «Chove» pode dizer a constatação de um facto: está realmente a chover. Mas suponhamos que a mãe, pela manhã, quando o filho se prepara para ir para escola, lhe diz: «Chove», ele sabe ao mesmo tempo que deve levar o guarda-chuva. Se, numa família de agricultores, após uma seca prolongada, como agora, a mulher abre a janela e diz ao marido: «Chove», é o contentamento que é dito. Mas, se estavam na expectativa de um passeio agradável e diz: «Chove», é a desilusão.


A linguagem tem três funções principais: a expressiva, a apelativa e a representativa. Essas funções têm que ver com as relações estabelecidas entre o emissor, o receptor e os objectos: há alguém (emissor) que se dirige a alguém (receptor) para lhe comunicar algo, tornando presente a realidade.


Há também a função fática, que tem apenas a missão de manter o contacto: «sim, sim...», «pois...», «claro...». Quando alguém fala de mais, vai-se tentando dizer que ainda se está lá a ouvir. Sabe Deus!...


Noutro sentido, é essencial a dimensão pragmática da linguagem. Segundo alguns filósofos, deveria tender-se para uma linguagem artificial, lógico-unívoca, interessando apenas as dimensões sintáctica (a relação dos signos entre si) e semântica (relação dos signos com a realidade) da linguagem e o princípio verificacionista das asserções. Mas, deste modo, esquecia-se a dimensão pragmática: falando, produz-se um efeito. Pense-se, por exemplo, na promessa de casamento: «Prometo e juro amar-te e ser-te fiel por toda a nossa vida» produz o efeito que é o próprio casamento. Esta dimensão foi sublinhada na Bíblia: Deus criou pela palavra, palavra eficaz. “Faça-se a luz”, e a luz apareceu.


Com a linguagem, pode-se arrastar multidões, levá-las à revolução, acalmá-las, exaltá-las, virá-las num sentido ou noutro.


A palavra cura. Uma vez, apareceu-me um homem com imensos problemas e apenas me pediu que o ouvisse, sem interrupção. Falou mais de hora e meia e, no fim, agradeceu-me muito, pois não imaginava quanto o tinha ajudado, que nunca me esqueceria. Com algumas palavras, podemos abrir futuro a uma pessoa. Com algumas palavras, podemos destruí-la para sempre: «És um burro, nunca farás nada na vida!»


Pela palavra, abrimo-nos ao mundo e o mundo abre-se a nós. Falando, damos razão disto ou daquilo, argumentamos, comprometemo-nos, formamos comunidade. Sendo a razão humana linguisticizada, só nos podemos compreender a nós próprios em corpo, com outros e na história. O Homem, pelo facto de ser zôon lógon échon, animal que tem linguagem, é também zôon politikón, animal social, político, diferentemente do animal, que é gregário, e a razão disso é a palavra, como bem viu Aristóteles na Política: «A razão de o Homem ser um ser social, mais do que qualquer abelha e qualquer outro animal gregário, é clara. Só o Homem, entre os animais, possui a palavra.» E continua: «A voz é uma indicação da dor e do prazer; por isso, têm-na também os outros animais. Pelo contrário, a palavra existe para manifestar o conveniente e o inconveniente, bem como o justo e o injusto. E isto é o próprio dos humanos face aos outros animais: possuir, de modo exclusivo, o sentido do bem e do mal, do justo e do injusto e das demais apreciações. A participação comunitária nestas funda a casa familiar e a cidade.» E é pelo diálogo (diá-lógon) que os conflitos se devem resolver.


A linguagem humana não se reduz à linguagem emotiva do prazer e do desprazer. É capaz de fazer juízos morais, de distinguir o bem e o mal, o justo e o injusto, partilhar e debater publicamente estas apreciações. Deste modo, como sintetizou Gabriel Amengual, «por esta dupla função, a linguagem funda a ética e funda eticamente a pólis».


Como faz falta voltar aos clássicos! Para acabar com a mentira e ir além da sofística...


Todos somos animais políticos e, consequentemente, responsáveis pela condução da pólis. Estou de acordo com o Papa Francisco, com a observação de que, embora ele se refira só aos cristãos, o aviso é para todos: "Envolver-se na política é uma obrigação para o cristão. Enquanto cristãos não podemos lavar as mãos como Pilatos. Temos de nos meter na política, porque a política é uma das formas mais altas da caridade, pois procura o bem comum. Os leigos cristãos devem trabalhar na política. A política está muito suja, mas eu pergunto: ‘Está suja porquê?’ Porque os cristãos não se meteram nela com espírito evangélico? É uma pergunta que eu faço. É fácil dizer que a culpa é dos outros... Mas eu o que é que faço? Isto é um dever! Trabalhar para o bem comum é um dever para um cristão."


Escrevi aqui muitas vezes que considero a política uma actividade nobre, das mais nobres. Quando isso acontece no quadro do trabalho para o bem comum, antepondo o interesse comum aos interesses próprios e dos partidos. Mas, sendo a política uma missão tão dura e exigente, quando observo a corrida tão interessada de tantos a cargos políticos, tenho de confessar, sinceramente, que não acredito que a maior parte o faça por amor à causa pública, ao serviço do bem comum. Que interesses, que vantagens, que cumplicidades, que incompetências, que privilégios, que compadrios, que subvenções, que benesses, que vaidades os movem?

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 26 de novembro de 2022

A VIDA DOS LIVROS

  

De 28 de novembro a 4 de dezembro de 2022


A “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto, adaptada em Banda Desenhada por José Ruy (Âncora Editores) é uma das obras-primas da 9ª Arte em Portugal. Recordamo-la. no momento em que o grande ilustrador nos deixa com 92 anos de idade.


UMA REFERÊNCIA DA CULTURA PORTUGUESA
Se a obra de Fernão Mendes Pinto é uma das maiores referências da cultura da língua portuguesa, esta adaptação feita por José Ruy (1930-2022) e publicada pela primeira vez em continuados no “Cavaleiro Andante”, entre 14 de dezembro de 1957 e 6 de junho de 1959, constitui uma magnífica adaptação gráfica, na qual o público leitor pode ter acesso a uma síntese servida pela mestria de um dos mais importantes mestres das histórias de quadradinhos (HQ), ao lado de Eduardo Teixeira Coelho (ETC), José Garcês ou Fernando Bento. Quando lemos a adaptação de “Peregrinação” percebemos o porquê de Fernão Mendes ter respondido aos que duvidaram da veracidade dos seus relatos do seguinte modo: “a gente que viu pouco mundo, como viu pouco também costuma dar pouco crédito ao muito que os outros viram”. É memorável, por exemplo, o encontro de Fernão Mendes Pinto com António de Faria, o célebre corsário (não se sabe se alter ego do autor), numa situação, em que quiseram saber novidades de Liampó, “porque se soava então pela terra que era lá ida uma armada de quatrocentos juncos em que iam cem mil homens por mandado de El-Rei da China a prender os nossos que lá iam de assento, a queimar-lhes as naus e as povoações, porque os não queria em sua terra, por ser informado novamente que não eram eles gente tão fiel e pacífica como antes lhes tinham dito”. Afinal era engano, pois essa armada tinha ido, afinal, socorrer um Sultão nas ilhas de Goto.


O DOMÍNIO DO MOVIMENTO
E é inesquecível a perseguição ao corsário mouro Coja Acém, que se dizia “derramador e bebedor do sangue português”, a quem Faria jurara vingança, por lhe ter roubado as fazendas e morto os companheiros na batalha mais violenta da “Peregrinação”. “E arremetendo com este fervor e zelo da fé ao Coja Acém como quem lhe tinha boa vontade, lhe deu, com uma espada que trazia, de ambas as mãos, uma tão grande cutilada pela cabeça que, cortando-lhe um barrete de malha que trazia, o derrubou logo no chão…” As ilustrações de José Ruy são exemplares e constituem referências para os melhores especialistas internacionais da Banda Desenhada. Hoje sabemos da verosimilhança de tudo quanto está relatado na “Peregrinação”, que constitui um texto pioneiro na literatura europeia, ao lado da obra imortal de Cervantes sobre o Cavaleiro da Triste Figura. Pode até ter acontecido que não fosse Mendes Pinto o real protagonista de tudo o que é relatado, mas percebemos que cada episódio pôde ocorrer de facto, até porque os estudiosos desse tempo são os primeiros a considerar que não é possível compreender o que João de Barros ou Diogo do Couto nos relatam sem ler Fernão Mendes Pinto. E José Ruy com o seu traço inconfundível e o perfeito domínio do movimento interpretou a mole imensa de acontecimentos de modo exemplar. Dir-se-á que, como acontece na literatura moderna, o autor, como o romancista, compõe a visão dos acontecimentos artisticamente, a partir da matéria-prima dos acontecimentos que de facto viveu.


José Ruy, que aqui homenageamos, nasceu na Amadora em maio de 1930, tendo sido aluno e cursado na Escola António Arroio, que sempre tanto elogiou, onde foi discípulo de Rodrigues Alves, Falcão Trigoso e Júlio Santos. Iniciou-se como desenhador e argumentista com apenas 14 anos em “O Papagaio” de Adolfo Simões Müller, tendo tido uma especial preocupação no aperfeiçoamento das técnicas de desenho, ilustração e gravura. É o autor português com maior número de obras publicadas na sua especialidade, mais de 80 álbuns, sendo cinco dezenas de Banda Desenhada (ou de histórias de quadradinhos, como preferia dizer) com destaque para as viagens de Porto Bomvento, bem como para as biografias de Almeida Garrett, João de Deus, Bernardo Santareno, Pero da Covilhã, Pedro Álvares Cabral, Aristides de Sousa Mendes, Leonardo Coimbra, Humberto Delgado, Charlie Chaplin ou Carolina Beatriz Ângelo. Graças ao encontro com um saudoso amigo comum, Amadeu Ferreira, ilustrou a história da língua e do povo mirandês. Com a publicação de “Os Lusíadas” foi o primeiro autor a publicar um álbum sobre um poema épico. O rigor e a qualidade do seu trabalho têm sido reconhecidos tanto em Portugal como no estrangeiro, estando a sua obra publicada em 11 línguas. Foi o primeiro autor a ser galardoado com a Medalha de Honra do Festival de Banda Desenhada da Amadora, tendo ainda recebido a Medalha Municipal de Ouro de Mérito e Dedicação da Cidade da Amadora. O CNC não esquece a extraordinária lição que nos deu sobre os segredos do artista no tempo em que a gravura era trabalhada diretamente na base metálica, até ao mais ínfimo pormenor. Não podemos deixar que o silêncio possa cair sobre a memória de um artista como José Ruy. A sua obra corresponde a um caso único de qualidade e exigência. Enviamos, por isso, a sua família e amigos a expressão dos nossos sentimentos e uma homenagem profunda ao seu humanismo de sempre.

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE LUÍS FILIPE PARRADO

  


NATUREZA MORTA COM MAÇÃS


É triste
o espectáculo do amor
apodrecendo aos poucos,
na fruteira
as maçãs que te trouxe
têm agora a pele seca e enrugada.


in Entre a Carne e o Osso, 2012


STILL LIFE WITH APPLES


It’s sad
the display of love
rotting here and there,
in the fruit bowl
the apples I brought you
have now a dry and shriveled skin.


© Translated by Ana Hudson, 2010
in Poems from the Portuguese

 

ANTOLOGIA

  


DE NAGASAKI…
por Camilo Martins de Oliveira


"E cá estou, uma vez mais, em Nagasaki. Se tivesses vindo comigo, deambularíamos ambos por aí, visitando a cidade que desconheces. Mas estou só, minha Princesa de mim, e assim me vou ficando por pontos de vista que já conheço, a imaginar a Nagasaki que não conheci.
Foi com a chegada dos portugueses ao sul de Kyushu, em meados do séc. XVI, que o Japão iniciou contactos com produtos, gentes e culturas de outras áreas do globo, e é nesta circunstância que Nagasaki passou de simples aldeia de pescadores a porto, cidade e ponto de encontro do Oriente nipónico com o Ocidente europeu. Foi o "daimyo" Omura Sumitada que abriu o seu feudo aos missionários jesuítas do Padroado Português do Oriente, depois de um encontro com o padre Cosme de Torres que, então, nomeou o padre Gaspar Vilela para a aldeia de Nagasaki, onde vivia uma pequena comunidade de cristãos, governada por Nagasaki Jinzaemon, genro do "daimyo", e que se batizara com o nome de Bernardo. A proteção oferecida por Sumitada e a cristianização da população encorajam o estabelecimento dos jesuítas, que para lá vão chamando cristãos perseguidos noutras regiões. É assim que, em 1570, o padre Melchior de Figueiredo começa a estudar a baía, com vista na instalação de um porto comercial. No ano seguinte, já se urbanizava Nagasaki, feita cidade onde afluíam navios e mercadores de outras paragens. Entre eles, a nau de Tristão Vaz da Veiga, que inaugura o período das visitas anuais da Nau do Trato. Começa assim uma era de prosperidade, com algumas vicissitudes devidas à cobiça que a cidade, seu porto e comércio despertam em senhorios vizinhos. Mas durante 69 anos Nagasaki será o porto por excelência dos portugueses e a cidade dos jesuítas, por 35 anos, aliás, sede de bispado e da missão católica no Japão. Ali nascem e dali se propagam a moda e o gosto "nanban" - e não resisto a transcrever dois saborosos textos coevos, um do Padre Visitador, Alessandro Valignano, outro do padre João Rodrigues, o "Tçuzu" (intérprete). O primeiro refere-se a uma missão dos padres e dignitários cristãos à cidade imperial (Miyako, hoje Kyoto): "Na manhã seguinte, os Portugueses, revestidos do seu mais fino vestuário, formaram filas e saíram. Era um espetáculo maravilhoso ver cachos de gente que se juntava, vindos de longe e de perto, para mirar a procissão antes dela chegar a Miyako. À medida que nos aproximávamos da cidade, todas as ruas por onde assava a nossa procissão estavam cheias de gente sem conta, e todos os que observavam aquele ordeiro cortejo de inabituais e exóticas pessoas que passavam em vestidos resplandecentes estavam muito admirados e falavam uns com os outros, dizendo que cada uma delas devia ser um "bodisatva" descido dos céus...". O segundo é respigado de uma carta de João Rodrigues: "Quando Hideyoshi deixou Nagoya para atender sua mãe doente em Kyoto, todos os "daimyo" que estavam em Ngoya o acompanharam a Miyako, vestidos à moda do nosso país. Os alfaiates de Nagasaki estão todos tão ocupados que não têm um momento livre, mas mesmo assim o acompanharam a Miyako. Recentemente joias de âmbar, cordões de ouro e botões tornaram-se populares entre eles. Agrada-lhes a nossa comida, especialmente ovos de galinha e carne de vaca, que os japoneses dantes detestavam. O próprio Hideyoshi começou a gostar grandemente desses alimentos. É bastante admirável como tantas coisas dos Portugueses acabaram por ter tão boa fama entre eles". Outro missionário, Francesco Pasio, escreve em 1594: "Hideyoshi gosta muito de vestuário português, e os membros da sua corte, por emulação, vestem-se muitas vezes ao estilo português. Isto é verdade mesmo para "daimyo" não cristãos. Usam rosários de madeira exótica ao peito, penduram crucifixos no ombro ou à cintura, e às vezes até traze um lenço na mão. Alguns, especialmente dispostos à gentileza, decoraram o Pai-Nosso e a Avé-Maria, e recitam-nos enquanto andam pela rua. Não o fazem por troça dos cristãos, mas simplesmente para mostrarem a sua familiaridade com a última moda, ou porque pensam que é coisa boa e eficaz para o sucesso da sua vida quotidiana. Isso leva-os a gastar grandes somas na compra de brincos ovais com representações de Nosso Senhor e de Sua Santa Mãe". Essa Nagasaki e o cristianismo foram abafados e os portugueses definitivamente expulsos, mesmo da ilha artificial de Deshima (de fora), à qual haviam sido confinados. Só a partir desta - e durante dois séculos e meio - holandeses (e chineses) foram autorizados a assegurar um mínimo de comércio internacional. Quando, em finais do séc. XIX, após a reabertura do Japão ao estrangeiro, um padre francês celebrou, em latim, missa em Nagasaki, um grupo de japoneses que estivera recolhido ao fundo da igreja, veio perguntar-lhe se acreditava na presença de Cristo na hóstia e na Virgem Maria sua Mãe, e se obedecia ao Papa em Roma... Perante a resposta afirmativa terão exclamado: - Então és dos nossos! Mas a cidade em que reconheciam o regresso da religião banida há séculos já era outra e acolhia projetos industriais e de construção naval, em parceria com estrangeiros, que serviriam de pretexto ao bombardeamento atómico de 1945 naquele local". Camilo Maria continua esta carta, sem mais ironia do que a do destino cruel: "esta - diz ele - é muitas vezes mais amarga e cáustica do que risonha. E chega a ser feia, quando castiga inocentes, com tanta injustiça que quase perdemos a fé em Deus. Pois, todavia, Jesus disse aos seus discípulos: "Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso. Não julgueis e não sereis julgados. Não condeneis e não sereis condenados"...  E o Marquês de Sarolea contará, como leremos, a história de Takashi Nagai, o médico radiologista, e cientista japonês, católico de Nagasaki, que sofreu e morreu dos efeitos da radiação nuclear da bomba atómica. O tempo dos homens, por vezes, não parece ser o tempo de Deus.


Camilo Martins de Oliveira

Obs: Reposição de texto publicado em 27.03.13 neste blogue.

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


127. A CONSCIÊNCIA DO BEM E DO MAL EM TEMPOS DE ESCURIDÃO


Para além da disciplina, há a consciência em cada ser humano.

Quando entram em conflito, cada um de nós tem liberdade de escolha.   

O que é determinante em tempos de trevas, ao ignorar ou ser indiferente à anulação da capacidade de autoquestionamento, alienando a liberdade.

Em favor da tese da disciplina, há o argumento da obediência burocrática, segundo o qual aos funcionários integrados numa estrutura administrativa baseada nos princípios da autoridade absoluta, hierarquização rígida e da dependência acrítica, apenas lhes resta obedecer, retirando-lhes a sua capacidade de livre arbítrio, sendo o burocrata exemplar a primeira vítima, reduzido a uma peça burocrática que facilmente se transforma num instrumento do mal. Para Hannah Arendt: “Um funcionário, quando não é nada mais que um funcionário, é alguém muito perigoso”.   

Recorre ao argumento de defesa de Eichmann, no seu julgamento, em Jerusalém, em 1961, quando acusado pelo encaminhamento para a morte de centenas de milhares de judeus, onde foi culpado e condenado. 

A ideia de que há pessoas que em circunstâncias excecionais foram obrigadas a ter um estatuto sub-humano, transformando-as em monstros e negando-lhes a sua condição moral, legitimando a sua participação em atos criminosos, não é aceitável se estivermos cientes que são seres conscientes, que distinguem entre o bem e o mal, não podendo invocar a sua fuga e morte moral como justificação, por maioria de razão em crimes contra a humanidade.       

Pondo de lado questões pendentes e não resolvidas sobre a ação moral, o juízo e o pensar, qual o pensamento que pode e não pode impedir catástrofes e malefícios quando pensamos, se há algo no pensamento que pode impedir as pessoas de fazer o mal (e incitá-las para o bem), a relação intrínseca que há entre capacidade de pensar e mal (e bem), chegamos a uma encruzilhada em que nos interpelamos: como se comportaria cada um de nós se tivesse vivido naquela época e naquelas circunstâncias?   

Mesmo tendo presente, em permanência, que as sociedades se regem pela lei e não pela moral (da época), sendo a norma legal mais redutora, mesmo que se defenda que quem mata outras pessoas tende a estar consciente de que é errado.

É uma temática que ultrapassa o totalitarismo nazi (e soviético, entre outros), interpelando toda a Humanidade, incluindo saber se o Holocausto (e outros crimes ao longo da História) é fruto de uma elite e bando de psicopatas arianos ou também da cumplicidade e indiferença de milhões de seres humanos normais e indispensáveis.

Excluindo a teoria da culpa coletiva, que não aceitamos e é excessiva, sempre houve honrosas e louváveis pessoas que, naquela época e circunstâncias de tempos sombrios e de escuridão, souberam distinguir o bem do mal, sem se agarrarem a ideologias, recusando-se a obedecer a comandos que implicavam a negação da dignidade humana e o direcionamento para a morte dos mais expostos e muitos inocentes.


25.11.22 
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

CÁRCERE

  


Quando os sistemas assentam em mentiras, a mentira unida e central leva a que o resto da história se desintegre, como quando se pede emprestada uma realidade e se a usa na totalidade.

Resta o resgate metido à força na cabeça das pessoas como solução ainda que provoque brutais danos e não atenue a dor da aparente alforria.

As narrativas desfizeram-se face às ações que as contradisseram, e poucos notam, penosamente submergidos na não-vida.

O habitat das gentes foi-lhes negado, afinal, e o silêncio é força escoada.

A queda, teve diretamente a ver com o facto de as elites manipularem violentamente, contra quem queria mudar o sistema, expondo o conteúdo das máscaras: expondo as estórias esborratadas dos supostos impolutos.

Contudo, a crise aguda da mentira nunca chega a ter lugar: os expedientes dissipam-na sempre, atempadamente.

A religião da não solidariedade não é desmascarada e tudo é apenas parte do problema.

Na verdade, os comportamentos e atitudes dos que definem liberdade como opção do consumidor, e favorecimento como uma ideia de direito e mérito próprio, criam sociedades de desempenho transgressoras, e de um tal poder que, a vida, essa indefesa, termina aos poucos, mirrada, na esperança de um saco-cama.

Teresa Bracinha Vieira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


A precariedade espacial do centro comercial domina a condição urbana contemporânea.


Em 1999, na conferência ‘The Impact of shopping on the Urban Condition’ Rem Koolhaas, na Architectural Association, dá a entender que a precariedade espacial do centro comercial domina a condição urbana contemporânea.


Na opinião de Koolhaas, comprar é a derradeira atividade do ser humano e corresponde a uma fase final do processo de modernidade. O ato de comprar e consumir muda parâmetros espaciais, cria uma supersaturação irreversível e corrói tudo o que se relaciona com ideias de civilização e de progresso. Para Koolhas, foi Jane Jacobs - que ao identificar aspetos da vida urbana que considerava significativos - redescobriu a rua como sendo o único lugar onde se pode encontrar verdadeira diversidade e implementou uma urbanidade que incorporava inerentemente as capacidades de consumir em permanência. 


É através do marketing e da psicologia que se define o espaço urbano atual. O ato de comprar faz com que a cidade se defina como um grande parque temático de gratificação individual imediata, permanente continuidade e constante interação entre as outras diversas atividades.


A cidade que vive só do consumo está em constante processo de erosão. Vive dos desejos de controlo e previsibilidade dos seus consumidores e transforma-se numa marca que é explorada ininterruptamente. Koolhaas explica, por exemplo, que Singapura abandonou o modelo de cidade e substituiu-o pelo modelo de um centro comercial. Este modelo é propositadamente não é estável, não fixo e não constante e por isso mesmo baseia-se numa imprecisão e numa neblina sem forma. Singapura transformou assim o seu plano urbano numa coleção de palavras e conceitos, em vez de uma coleção de formas. 


Também Koolhaas esclarece que, Las Vegas, segundo Venturi, é o sistema do centro comercial que prevalece sobre uma circunstância urbana sem forma e sem configuração. Não é arquitetura de que se trata mas de uma ecologia - uma nova condição de completa artificialidade, inteiramente interna e iconograficamente ininteligível.


Para Koolhaas, o sistema comercial é uma ecologia, isto é, um sistema que estuda as relações intrínsecas dos seres com o seu meio. E o comportamento das formas dedicadas somente ao consumo tem sempre um núcleo com tentáculos que enriquecem o seu perímetro e que o tornam mais recetivo à interação. Este sistema tem um efeito denominado replascape, que consiste na interseção entre o design e a paisagem e cria automaticamente uma natureza interior falsa. São talvez estas leis da ecologia que, segundo Koolhaas, expliquem as formas excêntricas e hiperformalistas da nova condição urbana.


Desta nova condição urbana, baseada nas formas do consumo, resulta um novo tipo de espaço que Koolhaas chama de junk space. Para Koolhaas, junk space é aquilo que resta após a modernidade ter feito seu curso. Junk space é o lixo tóxico da modernidade. Junk space parece um rearranjo de uma condição espacial pré-ordenada. Pensa-se que seja uma aberração, mas, na verdade é a essência da condição contemporânea e da cultura do descartável. Junk space é intrincado e ambicioso, é incompreensível e imemorável, é overdose e ao mesmo tempo fragilidade que o torna impossível de ser descrito como espaço.


Para Koolhaas, Junk space é assim um novo modelo que existe não só além da geometria, mas além do padrão. Não pode ser compreendido, nem pode ser relembrado. Recusa-se a congelar, é amnésia contínua e é conversão permanente. Junk space é tão débil e inconstante que obriga a abandonar qualquer expectativa de estabilidade. A condição do junk space é sempre provisória, em permanente estado de se tornar e em constante movimento. Na regra clássica a materialidade era baseada numa condição definitiva, que só poderia ser modificada através da destruição parcial ou total. Junk space é sempre provisório e sempre pronto a ser consumido - esta condição é a norma e dita a sua materialização. Matéria e componentes agora são escolhidas pela sua maior capacidade de mutabilidade, flexibilidade, rompimento e maleabilidade.


Sendo assim, a essência do espaço atual é profundamente alterada por causa do excesso de consumo, e por consequência todo o modo de pensar arquitetura é moldado por esta condição.

 

Ana Ruepp

FRANCISCO SOBRE O DIÁLOGO, AS MULHERES, OS CATÓLICOS ALEMÃES...

  


Entre 3 e 6 deste mês de Novembro, o Papa Francisco esteve no Bahrain, no Fórum a favor do Diálogo: Oriente e Ocidente pela coexistência humana. No regresso, no avião, deu, como é hábito, uma conferência de imprensa. É sempre enriquecedor dar atenção a essas conferências, até porque há temáticas múltiplas da actualidade e uma espontaneidade acrescentada. Seguem-se alguns temas.


1. Referindo o diálogo, acentuou que é uma palavra-chave: "diálogo, diálogo". Já tinha sublinhado, aliás, que os animais é que não dialogam, os humanos têm de resolver os seus problemas através do diálogo. Condição para dialogar é que se tem de partir da identidade própria, ter identidade afirmada, não difusa. Quando alguém não tem a sua própria identidade ou ela não é firme, o diálogo torna-se difícil, até impossível. A sua viagem foi uma viagem de encontro, porque o objectivo era estar em diálogo inter-religioso com o islão e ecuménico com os ortodoxos. Ora, tanto o Grande Imã de Al-Azhar, no Cairo, Ahmed al-Tayeb, como o Patriarca de Constantinopla, Bartolomeu, "têm uma grande identidade" e as suas ideias vão no sentido de procurar a unidade, respeitando as diferenças, evidentemente, em ordem ao entendimento e ao trabalho conjunto para o bem e a paz da Humanidade. Também se chamou a atenção para a Criação e a sua protecção: "isto é uma preocupação de todos, muçulmanos, cristãos, todos". Os crentes das várias religiões "devemos caminhar juntos como crentes, como amigos, como irmãos."


2. Na sua viagem, lembrou outro jornalista, "falou sobre os direitos fundamentais, incluindo os direitos das mulheres, a sua dignidade, o direito a ter o seu lugar na esfera social pública"...


Resposta de Francisco. "Temos de dizer a verdade. A luta pelos direitos da mulher é uma luta contínua. Há lugares onde a mulher tem igualdade com o homem, mas noutros não. Pergunto: porque é que uma mulher tem de lutar tanto para manter os seus direitos?" E falou na ferida da mutilação genital feminina: "isto é terrível". Como é que a humanidade não acaba com isto, que é "um crime, um acto criminoso! As mulheres, segundo dois comentários que ouvi, são material "descartável" - isso é mau, claro - ou são "espécies protegidas". A igualdade entre homens e mulheres ainda não é universal, e existem estes incidentes: as mulheres são de segunda classe ou menos. Temos de continuar a lutar. Deus criou-os iguais, homens e mulheres. Todos os direitos das mulheres provêm desta igualdade. E uma sociedade que não é capaz de colocar a mulher no seu lugar não avança." As mulheres têm uma capacidade de gerir as coisas de outra maneira, que "não é inferior, mas complementar". E uma constatação: "Vi que no Vaticano sempre que entra uma mulher para fazer um trabalho as coisas melhoram: por exemplo, o vice-governador do Vaticano é uma mulher e as coisas mudaram para bem." Só um exemplo.


Igualdade de direitos, mas também igualdade de oportunidades; caso contrário, empobrecemo-nos. Há ainda muito caminho para percorrer. Porque "existe o machismo. Venho de um povo machista. Lutamos não só pelos direitos, mas porque precisamos que as mulheres nos ajudem a mudar."


3. Quanto à Ucrânia. "O Vaticano está permanentemente atento". Ele foi à embaixada russsa falar com o embaixador, "um humanista", está disposto a ir a Moscovo para falar com Putin, falou duas vezes ao telefone com o Presidente Zelensky... O que lhe chama a atenção é "a crueldade, que não é do povo russo... Tenho uma grande estima pelo povo russo, pelo humanismo russo. Basta pensar em Dostoievsky, que até hoje nos inspira... Sinto um grande afecto pelo povo russo e igualmente pelo povo ucraniano".


E atirou, desolado: "Num século, três guerras mundiais! A de 1914-1918, a de 1939-1945, e esta! Esta é uma guerra mundial, porque é certo que, quando os impérios de um lado e do outro se debilitam, precisam de fazer uma guerra para sentir-se fortes e também para vender armas. Hoje creio que a maior calamidade do mundo é a indústria armamentista. Por favor! Disseram-me, não sei se está certo ou não, que, se não se fabricassem armas durante um ano, acabar-se-ia com a fome no mundo." E contou que sempre que vai a cemitérios e encontra o túmulo de um jovem morto numa guerra, chora.


4. Sobre os abusos de menores, reconheceu que houve secretismo e encobrimento. Agora, é a "tolerância zero". "Nisto hoje a Igreja está firme, pois, mesmo que só tivesse havido um caso, seria trágico."


5. Mesmo a terminar, Francisco mostrou alguma preocupação com o "caminho sinodal" da Igreja na Alemanha: "Aos católicos alemães digo: a Alemanha tem uma grande e bela Igreja evangélica; não quero outra, que não será (nunca) tão boa como aquela; quero-a católica, em fraternidade com a evangélica."


A Conferência Episcopal Alemã esteve no Vaticano e o caminho sinodal foi um dos temas centrais nos encontros com o Papa e a Cúria. Os bispos alemães apelam à "unidade" da Igreja. Mas o Presidente da Conferência, G. Bätzing, também foi lembrando que Roma foi e é "ponto de referência para a fé católica e para toda a Igreja", mas "não é a origem e a meta do caminho que tomamos na fé"; "a origem e a meta desse caminho é Jesus Cristo".


Assim, pessoalmente, pergunto, por exemplo: o que impede acabar com o celibato obrigatório ou a ordenação de mulheres para presidirem à celebração da Eucaristia? Onde esteve afinal a igualdade de direitos?

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 19 de novembro de 2022

A VIDA DOS LIVROS

  

De 21 a 27 de novembro de 2022


Ao lermos os Cadernos de Lanzarote IV de José Saramago encontramos a lista dos autores que, segundo o próprio, mais o influenciaram.


A LISTA DE INFLUÊNCIAS
“A minha lista, com a respetiva fundamentação, foi esta: Luís de Camões, porque como escrevi em O Ano da Morte de Ricardo Reis, todos os caminhos portugueses a ele vão dar; Padre António Vieira, porque a língua portuguesa nunca foi mais bela que quando ele a escreveu; Cervantes, porque sem ele a Península Ibérica seria uma casa sem telhado; Montaigne, porque não precisou de Freud para saber quem era; Voltaire porque perdeu as ilusões sobre a humanidade e sobreviveu a isso; Raul Brandão porque demonstrou que não era preciso ser-se génio para escrever um livro genial, Húmus; Fernando Pessoa, porque a porta por onde se chega a ele é a porta por onde se chega a Portugal; Kafka, porque provou que o homem é coleóptero; Eça de Queirós, porque ensinou a ironia aos portugueses; Jorge Luís Borges, porque inventou a literatura virtual; Gogol, porque contemplou a vida humana e a achou triste”. Ao lermos esta genealogia cultural, compreendemos a obra e o percurso de José Saramago, mas também o sentido do caminho que seguiu. Camões permite entender a gesta portuguesa, nos seus claros e escuros. O épico e o lírico retratam não apenas o desafio da demanda da Índia, mas igualmente a procura do eu e do nós e a distância entre o sonho e a realidade como no Memorial do Convento, onde a sociedade é retratada, a propósito de uma descomunal construção, só possível graças ao ouro do Brasil e à coexistência entre a riqueza e a miséria. E ao lermos Que Farei com Este Livro? podemos compreender, co Camões, a nossa panóplia de paradoxos. Portugal e os portugueses mostram-se contraditórios entre si, capazes de cultivar a ilusão, mas também de se empenharem na obra que não se fica pelas intenções. Já Vieira cria na sua oratória uma realidade em que a construção do futuro corresponde à razão temperada pela fé, num extraordinário encantamento da palavra. “É o verbo vieirino que vai ressoando no meu cérebro enquanto escrevo” – di-lo-á Saramago em entrevista ao “Correio do Minho” em 1983. E completa o raciocínio: “Pegamos nos sermões do Padre António Vieira e, para além do preciosismo e do concetismo do gozo por vezes um pouco obscurecedor do sentido, verificamos que há, em tudo o que escreveu, uma língua cheia de sabor e ritmo, como se isto não fosse exterior à língua, mas lhe fosse intrínseco”. E ouvimos Vieira no Sermão de Santo António aos peixes de 1654 no seu ritmo oral, que afeiçoa o uso da palavra escrita: “Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que, sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria, e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer!". É essa ligação entre os movimentos da sociedade que se torna presente na escrita amadurecida de Saramago. E não seria o Quinto Império o horizonte da sociedade humana reconciliada, com cidadãos da mesma pátria conscientes do respeito mútuo, para não se comerem uns aos outros, facto que tanto preocupa o romancista? Por outro lado, em Cervantes podemos encontrar a raiz de um teatro fantástico, pleno de prodígios, como nos momentos em que Blimunda vê dentro de cada corpo ou quando uma “jangada de pedra” se desprende, como para um mundo de moinhos de vento. Mas não é apenas D. Quixote que se manifesta, mas também Alonso Quijano, ao cair em si, procurando libertar-se, no fim da vida de uma loucura de mil sonhos. Sem Cervantes, a Península seria uma casa sem telhado? Sim, porque com o cavaleiro da triste figura passamos da fantasmagoria dos romances de cavalaria para a tomada de consciência de uma vontade que decorre da coragem de encarar a realidade tal com ela é. E a cultura ibérica manifesta-se como complementaridade entre a loucura e o bom senso, entre o continente e o mar, como condomínio entre a dureza e a abertura, entre a expressão trágica, o lirismo e o picaresco. Já em Montaigne é a singularidade que se manifesta, pondo-se a tónica na capacidade de ser cético e de se perguntar sistematicamente sobre quem somos, o que sabemos e o que fazemos. E em termos literários, no caminho do escritor, o romance torna-se meio privilegiado de expressão, como diálogo com a vida e como exigência de reflexão adequada ao movimento e à compreensão da existência humana.


REGRESSO AO “CÂNDIDO”
Já a memória de Voltaire, que tão ligado esteve, pela reflexão, aos acontecimentos portugueses do grande terramoto, corresponderia a uma exigência que deveria funcionar como fator de renascimento e de regeneração, como apelo de Cândido ao espírito de denúncia social, sem esquecer a ironia e a corajosa defesa da tolerância. Raúl Brandão representa a força da representação dos dramas humanos e a influência da grande literatura russa, favorecendo a definição dos conflitos tal como se manifestam e a tensão que resulta da complexidade de fatores que determinam a evolução humana. Como fica patente em O Ano da Morte, mas também no gradual conhecimento que se vai tendo da riqueza da obra de Pessoa, designadamente através da revelação do conteúdo da célebre “Arca”, em especial do “Livro do Desassossego”, a riqueza de conjunto da genialidade pessoana torna-se um fator de enriquecimento da criação de Saramago. Franz Kafka permite a compreensão do absurdo e do horror que se manifestam no mundo – enquanto Eça de Queirós se torna, desde muito cedo, mestre da ironia e da crítica, com as suas personagens marcantes, o que constitui uma presença constante nas referências do romancista, apesar da diversidade nos temas e no seu tratamento. Quanto a José Luís Borges é o culto do paradoxo e da complexa convergência plural de fatores no mundo da vida que se torna marcante. A realidade social tende a ser explicada por algo mais do que a análise da realidade social. Por fim, Gogol procura entender uma humanidade dominada pela indiferença e pela incompreensão. Dir-se-ia que assim seria possível superar uma sociedade sonâmbula, difícil de perceber, que obriga a recorrer a diversos pontos de vista, de modo a perceber-se o efeito da evolução do tempo e das mentalidades. E assim chegamos ao ponto em que Saramago se prepara para escrever o Ensaio sobre a Cegueira, que corresponde a uma reflexão que se encontra delineada em Cadernos de Lanzarote II: “Pensei na História e via-a cheia de homenzinhos minúsculos como formigas, uns que não cabem nas portas que fizeram, outros que arrancaram às pedreiras o mármore com que Miguel Ângelo fez o seu David, outros que a esta hora estão contemplando a estátua e dizem ‘Talvez ainda não tenhamos começado a crescer’”… E assim, à medida que a obra de foi afirmando, todos estes elementos convergiram e se complementaram…      


Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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