A FORÇA DO ATO CRIADOR
‘Conto de Primavera’ e os espaços de transição.
O filme “Conto de Primavera” (Eric Rohmer, 1990) explora o controlo espacial. Jeanne vive dividida entre vários espaços e não suporta viver no apartamento desordenado e escuro do seu namorado ausente.
A palavra é, neste filme, usada de maneira a dar realidade aos pensamentos e o espaço é usado de maneira a dar realidade ao controlo que se tem sobre a vida.
Ao longo do filme seguimos Jeanne durante o seu tempo vazio e em deslocação permanente. Ao não ter qualquer controlo sobre o espaço que habita - durante todo o filme Jeanne fica a dormir em casa de Natacha - abrem-se fendas na sua vida. Jeanne durante estes momentos de plena disponibilidade coloca-se no meio, em espaços de transição, em lugares que estão entre a realidade e a imaginação, entre a palavra e o pensamento, entre o contido e o aberto.
No texto ‘Rohmer’s Poetics of Placelessness’, Leah Anderst afirma que portas, escadas, ruas e corredores são os elementos espaciais que mais aparecem no filme. A insistência contínua em espaços de transição têm o efeito de destacar a ausência de lugar mas também revelam uma ambivalência e uma incerteza profunda, não reconhecida por Jeanne.
No livro ‘Éric Rohmer’ de Carlos F. Herdeiro e Antonio Santamarina lê-se que o filme gira à volta de um conceito pedagógico que tenta encontrar um sentido e uma ordem para as ações e para as coisas.
Jeanne é a fonte de equilíbrio para a Natacha. Mas, Natacha para Jeanne representa a liberdade de uma realidade fabulada.
Jeanne envolve-se na história irreal de Natacha de modo a tentar escapar ao seu ordenado universo quotidiano (que nunca chegamos a ver). A trajetória de Natacha começa numa bruma espessa e confusa e termina com a conquista de um equilíbrio e uma ordem. Jeanne caminha no sentido inverso, da ordem para a desordem.
Durante todo o filme Jeanne não tem espaço próprio. Apesar de ter a chave de duas casas, Jeanne não tem para onde ir. Na opinião de Herdeiro e Santamarina a história desenvolve-se dentro de um parêntesis (imaginado, não controlado), entre o prólogo e o epílogo (que são iguais, até com a mesma música). A realidade inventada de Natacha é uma viagem ao incontrolável. Os falsos factos de Natacha são produto de uma interpretação que põe em causa qualquer tipo de categorização (até espacial) e fazem Jeanne duvidar de tudo e de si própria. O ‘Conto de Primavera’ é assim um filme que explora a fragilidade de qualquer tentativa de ordenação e de controlo de um espaço. E ao recorrer a espaços de transição, Rohmer faz aparecer o lado oposto, incerto e ambíguo de Jeanne que parece tão decidida nas suas procuras e decisões.
Ana Ruepp