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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ANTOLOGIA

  


DE NAGASAKI…
por Camilo Martins de Oliveira


"E cá estou, uma vez mais, em Nagasaki. Se tivesses vindo comigo, deambularíamos ambos por aí, visitando a cidade que desconheces. Mas estou só, minha Princesa de mim, e assim me vou ficando por pontos de vista que já conheço, a imaginar a Nagasaki que não conheci.
Foi com a chegada dos portugueses ao sul de Kyushu, em meados do séc. XVI, que o Japão iniciou contactos com produtos, gentes e culturas de outras áreas do globo, e é nesta circunstância que Nagasaki passou de simples aldeia de pescadores a porto, cidade e ponto de encontro do Oriente nipónico com o Ocidente europeu. Foi o "daimyo" Omura Sumitada que abriu o seu feudo aos missionários jesuítas do Padroado Português do Oriente, depois de um encontro com o padre Cosme de Torres que, então, nomeou o padre Gaspar Vilela para a aldeia de Nagasaki, onde vivia uma pequena comunidade de cristãos, governada por Nagasaki Jinzaemon, genro do "daimyo", e que se batizara com o nome de Bernardo. A proteção oferecida por Sumitada e a cristianização da população encorajam o estabelecimento dos jesuítas, que para lá vão chamando cristãos perseguidos noutras regiões. É assim que, em 1570, o padre Melchior de Figueiredo começa a estudar a baía, com vista na instalação de um porto comercial. No ano seguinte, já se urbanizava Nagasaki, feita cidade onde afluíam navios e mercadores de outras paragens. Entre eles, a nau de Tristão Vaz da Veiga, que inaugura o período das visitas anuais da Nau do Trato. Começa assim uma era de prosperidade, com algumas vicissitudes devidas à cobiça que a cidade, seu porto e comércio despertam em senhorios vizinhos. Mas durante 69 anos Nagasaki será o porto por excelência dos portugueses e a cidade dos jesuítas, por 35 anos, aliás, sede de bispado e da missão católica no Japão. Ali nascem e dali se propagam a moda e o gosto "nanban" - e não resisto a transcrever dois saborosos textos coevos, um do Padre Visitador, Alessandro Valignano, outro do padre João Rodrigues, o "Tçuzu" (intérprete). O primeiro refere-se a uma missão dos padres e dignitários cristãos à cidade imperial (Miyako, hoje Kyoto): "Na manhã seguinte, os Portugueses, revestidos do seu mais fino vestuário, formaram filas e saíram. Era um espetáculo maravilhoso ver cachos de gente que se juntava, vindos de longe e de perto, para mirar a procissão antes dela chegar a Miyako. À medida que nos aproximávamos da cidade, todas as ruas por onde assava a nossa procissão estavam cheias de gente sem conta, e todos os que observavam aquele ordeiro cortejo de inabituais e exóticas pessoas que passavam em vestidos resplandecentes estavam muito admirados e falavam uns com os outros, dizendo que cada uma delas devia ser um "bodisatva" descido dos céus...". O segundo é respigado de uma carta de João Rodrigues: "Quando Hideyoshi deixou Nagoya para atender sua mãe doente em Kyoto, todos os "daimyo" que estavam em Ngoya o acompanharam a Miyako, vestidos à moda do nosso país. Os alfaiates de Nagasaki estão todos tão ocupados que não têm um momento livre, mas mesmo assim o acompanharam a Miyako. Recentemente joias de âmbar, cordões de ouro e botões tornaram-se populares entre eles. Agrada-lhes a nossa comida, especialmente ovos de galinha e carne de vaca, que os japoneses dantes detestavam. O próprio Hideyoshi começou a gostar grandemente desses alimentos. É bastante admirável como tantas coisas dos Portugueses acabaram por ter tão boa fama entre eles". Outro missionário, Francesco Pasio, escreve em 1594: "Hideyoshi gosta muito de vestuário português, e os membros da sua corte, por emulação, vestem-se muitas vezes ao estilo português. Isto é verdade mesmo para "daimyo" não cristãos. Usam rosários de madeira exótica ao peito, penduram crucifixos no ombro ou à cintura, e às vezes até traze um lenço na mão. Alguns, especialmente dispostos à gentileza, decoraram o Pai-Nosso e a Avé-Maria, e recitam-nos enquanto andam pela rua. Não o fazem por troça dos cristãos, mas simplesmente para mostrarem a sua familiaridade com a última moda, ou porque pensam que é coisa boa e eficaz para o sucesso da sua vida quotidiana. Isso leva-os a gastar grandes somas na compra de brincos ovais com representações de Nosso Senhor e de Sua Santa Mãe". Essa Nagasaki e o cristianismo foram abafados e os portugueses definitivamente expulsos, mesmo da ilha artificial de Deshima (de fora), à qual haviam sido confinados. Só a partir desta - e durante dois séculos e meio - holandeses (e chineses) foram autorizados a assegurar um mínimo de comércio internacional. Quando, em finais do séc. XIX, após a reabertura do Japão ao estrangeiro, um padre francês celebrou, em latim, missa em Nagasaki, um grupo de japoneses que estivera recolhido ao fundo da igreja, veio perguntar-lhe se acreditava na presença de Cristo na hóstia e na Virgem Maria sua Mãe, e se obedecia ao Papa em Roma... Perante a resposta afirmativa terão exclamado: - Então és dos nossos! Mas a cidade em que reconheciam o regresso da religião banida há séculos já era outra e acolhia projetos industriais e de construção naval, em parceria com estrangeiros, que serviriam de pretexto ao bombardeamento atómico de 1945 naquele local". Camilo Maria continua esta carta, sem mais ironia do que a do destino cruel: "esta - diz ele - é muitas vezes mais amarga e cáustica do que risonha. E chega a ser feia, quando castiga inocentes, com tanta injustiça que quase perdemos a fé em Deus. Pois, todavia, Jesus disse aos seus discípulos: "Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso. Não julgueis e não sereis julgados. Não condeneis e não sereis condenados"...  E o Marquês de Sarolea contará, como leremos, a história de Takashi Nagai, o médico radiologista, e cientista japonês, católico de Nagasaki, que sofreu e morreu dos efeitos da radiação nuclear da bomba atómica. O tempo dos homens, por vezes, não parece ser o tempo de Deus.


Camilo Martins de Oliveira

Obs: Reposição de texto publicado em 27.03.13 neste blogue.