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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

 

A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA

 

A GRAVIDADE E A GRAÇA.

 

1 - Antigamente, era lamúria de lavradores. Todos os anos eram maus, sobretudo todos eram piores do que o ano passado, que já tinha sido péssimo. Agora, continuam a ser os lavradores - ao que parece, espécie em vias de extinção - mas também todos os que não são lavradores. Por exemplo, e para me acercar do meu terreno de hoje, os editores e livreiros. 
Não há ninguém que não vos diga que "isto" é um "sítio" de analfabetos (até os analfabetos). Nunca se venderam menos livros, nunca se leram menos livros, etc, etc. À primeira vista, parece que têm carradas de razão. Basta entrar numa livraria (das raras sobreviventes, fora das muralhas dos "centros comerciais") à busca de um livro que não seja o último de Margarida Rebelo Pinto ou de Paulo Coelho. Ou nos respondem logo que não há ou está esgotado, ou nos fazem perder 20 minutos diante de um computador, em aparente e opaca pesquisa, para chegar à mesma conclusão. Sobretudo se o livro procurado for "velho" (por "velho" se entendendo tudo o que foi publicado há mais de seis meses). Pior ainda, se for um "clássico". Pois, pois. Mas é igualmente certo, por razões misteriosas e plurilaterais, que é raro o mês que não se editam obras obnóxias, que aparecem e desaparecem vertiginosamente, sobretudo para a banda das traduções. Para além da minha própria experiência (e quantas boas surpresas não tenho tido!), verifica-se, de cada vez que faço a asneira de escrever, por aqui ou por ali, que saiu a primeira tradução portuguesa do livro de A ou de B. O meu correio de leitores aumenta logo, com editores a corrigir-me certeiramente, lembrando que A ou B já foram publicados por eles, em 1979, em 1987, em 1993 ou em 2001. Envergonhado, peço desculpa e vou à procura. Inútil procura. Levaram sumiço. A única hipótese é a Feira do Livro, mas mesma dessa me dizem que nunca correu pior. Quando me tentam pacientemente explicar o que sucede, a explicação foi ainda mais misteriosa do que o facto. Mas hoje não venho para maledicências, antes para estimas. E estimei - estimei mesmo muito - quando o Jorge Silva Melo me disse que tinha acabado de sair na Relógio d'Água (numa coleção chamada Antropos) "A Gravidade e a Graça", tradução portuguesa de Dóris Graça Dias de "La Pesanteur et la Grâce" de Simone Weil. Simone Weil, finalmente em português (não ouso dizer que em vez primeira, mas é verdade que não me recordo doutras) neste ano de 2004? Bem verdade! Graças a Deus!

 

2 - Alguns portugueses conhecerão de nome Simone Veil, política francesa de certo destaque, que, sendo bem da direita, se celebrizou, enquanto ministra, por ter feito passar a lei que despenalizou o aborto em França e que é, "de certo modo, uma pessoa respeitável", como José Miguel Júdice disse que Álvaro Cunhal é. Muitos menos conhecerão Simone Weil (1909-1943) que, de comum com ela, só tem o primeiro nome, um apelido parecido e a origem judia. O livro da Relógio d'Água não ajuda muito. A um curto excerto, na contracapa, do texto de George Steiner "Simone Weil's Philosophy of Culture" se reduz a informação disponibilizada. Nem prefácio, nem mais nada. Como se abundassem em Portugal os leitores para os quais "La Pesanteur et la Grâce" faça parte dos "encontros primordiais" e se conte entre esses "raros livros que nos pode acompanhar ao longo da vida". Sucede - não desfazendo - que esse é o meu caso e que a descoberta de Simone Weil - lá volto eu aos anos 50 - marcou mesmo a minha vida. Por isso "aqui estou", como Jesus disse à criança, por isso fiquei feliz quando soube do caso e caso o é. 
E jorraram em catadupa muitas e antiquíssimas memórias. Nos bons tempos da Morais e do "Círculo do Humanismo Cristão", do António Alçada e do Pedro Tamen, Simone Weil, santa da casa, foi convocada, como não podia deixar de o ser. Como me pediram a mim um livro sobre Mounier, pediram ao M.S. Lourenço - de todos nós, quem a conhecia melhor - um livro sobre Simone Weil, introdução à obra dela, com ampla antologia de textos. O M.S. Lourenço fê-lo. Mas nem o António nem o Pedro gostaram do resultado. Se Simone Weil já não era muito ortodoxa - ela que se recusou a entrar na Igreja, permanecendo no limiar, imóvel, en "úpomoné" (na expectativa) "para assim ficar ao lado de todos os que não puderam entrar no recetáculo universal da Igreja" - M.S. Lourenço foi achado heterodoxíssimo. Já bastavam à Morais trapalhadas políticas com a Igreja. Trapalhadas teológicas (um famoso comentário ao Padre Nosso que "O Tempo e o Modo" publicou, oito anos depois, no caderno "Deus O Que É?") pareceram-lhes ultrapassar as marcas. O livro, chamado "O Possível e o Impossível", foi achado impossível. Ficou eternamente no prelo. Descobri agora, quando o pedi ao autor, para beber da fonte e para comparar a tradução dele com a de Dóris Graça Dias, que nem mesmo ele o tem. Eu, que julgava ter cópia do original, também não a achei. Quem sabe se existe traço desse primeiro coiso interrompido entre um português e Simone Weil? Talvez não. Perdemos tudo. 
É certo - lembro-me agora, recuperada a memória ao correr da pena - que uns anos depois (1967, salvo erro) a Morais publicou dela "Opressão e Liberdade", em tradução de Maria Velho da Costa (eu não vos dizia que há sempre um antes da primeira vez?). Mas se é admirável obra, não o é ao plano de "La Pesanteur et la Grâce". Ou de "Atteinte de Dieu". Ou da "Lettre à un religieux". Esses, sim, os cumes do que abusivamente chamo a "teologia negativa" de Simone Weil.

 

3 - Chegou a altura de vos dizer um pouco quem foi Simone Weil. Antes de se licenciar em Filosofia em 1925 (aos 16 anos) já a sua "excentricidade" e a sua cultura tinham dado que falar. Diz-se que, aos cinco anos, se recusava a comer açúcar porque os soldados de 1914 também o não comiam, como se diz que, aos seis, sabia Racine de cor. Não são só anedotas. O sofrimento do mundo e o mundo da cultura foram obsessões perenes dela. Professora de Filosofia, trocou uma carreira brilhante por um emprego humilhante numa fábrica de automóveis, para viver entre os operários. Teve um breve namoro marxista, mas, em 1932, já perdera as ilusões sobre o "paraíso soviético" e já achava que revolução era termo sem conteúdo algum. "O progresso, se se quiser falar em termos rigorosamente matemáticos, é uma regressão" e a classe operária não era portadora de salvação. Doentíssima, desde muito nova quase não comia, para saber, no corpo, o que era a fome. 
Em 1936, juntou-se em Espanha a um grupo anarquista, mas o seu pacifismo proibiu-lhe combater e depressa se desentendeu com os novos companheiros. Foi então que veio até Portugal. Escreveu: "O que eu sofri nessa ocasião marcou-me de uma forma muito particular e muito profunda, de tal modo que, ainda hoje, quando um ser humano qualquer, em quaisquer circunstâncias, me fala sem brutalidade, não consigo deixar de pensar que há um engano, engano que, infelizmente, vai acabar. Desde a minha vida como operária, recebi para sempre a marca da escravidão, como a marca de ferro em brasa que os romanos impunham aos escravos mais desprezados. Desde esse momento, considero-me, também, escrava. Foi nesse estado de espírito e num estado físico miserável, que cheguei, sozinha, numa noite de lua cheia, a uma aldeiazinha portuguesa muito miserável. As mulheres dos pescadores iam numa procissão, em torno dos barcos, com velas acesas, cantando cantigas certamente antiquíssimas e de uma tristeza lancinante. Nada pode servir para dar uma ideia. Nunca ouvi coisa alguma tão triste, exceto os cânticos dos barqueiros do Volga. Foi aí que tive, subitamente, a certeza de que o cristianismo é a religião dos escravos, a religião a que os escravos, ou eu ou os outros, se não podem recusar." Data desse período (entre 1938 e 1940) a sua aproximação ao catolicismo, como desses anos data a maior parte dos seus escritos místicos e filosóficos numa produção teórica quantitativa e qualitativamente inacreditável, que alguns aproximaram de espiritualidade cátara e outros da ascese da patrística grega ("La Source Grecqe" é outra das suas obras maiores). Mas, de uma obra com 18 títulos (só reunida em edição definitiva em 1999), nada publicou em vida. 
Fugiu de Paris quando os alemães chegaram, depois de escrever "Quelques reflections sur les origines de l'hitlerisme" e fixou-se em Marselha, onde dirigiu os "Cahiers du Sud". Recusou-se ao baptismo, para não se separar do povo judeu perseguido. Em 1942, fixou-se nos Estados Unidos, mas pouco se demorou, decidida a reunir-se à França livre em Inglaterra. Desentendeu-se também com os gaulistas. Tuberculosa, morreu aos 34 anos, num sanatório em Ashford. O seu primeiro livro - justamente este que acaba de sair em Portugal - publicou-se em 1947.

 

4 - Foi nos anos 50, simultaneamente em França e em Inglaterra (Simone Weil foi dos raros pensadores franceses do século XX a conhecer enorme projeção em Inglaterra), que começou a fama dela, para a qual Graham Greene contribuiu poderosamente. 
Heterodoxa politicamente, heterodoxa teologicamente, heterodoxa filosoficamente, creio que foi a confluência entre "a truer liberty" e a "silent question", a que se referiu Buber, que suscitaram a paixão de alguns em Portugal, nos idos de 50 ou desde os idos de 50 até hoje. 
Isso e aquilo a que ela chamou o "ateísmo purificador". Gosto de terminar, citando o primeiro parágrafo do capitulo de "A Gravidade e a Graça", que tem exatamente aquele título. Onde ela diz o que dela mais tenho citado ao longo da minha vida e que transcrevo, por fidelidade e por gosto, na tradução de M.S. Lourenço: "Estou certa de que não existe Deus no sentido em que estou certa de que nada de real se assemelha àquilo que eu concebo quando pronuncio esse nome. Mas aquilo que eu não posso conceber não é uma ilusão."

 

João Bénard da Costa
4 de junho 2004 in Público

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

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130. RITUAIS

 

De rituais é o fim de ano.

Uma expetativa que se renova.

Balanços, soma de rotinas consagradas por costumes, tradições, hábitos ou normas que devem ser executadas, de modo useiro, uma vez por ano.

À meia-noite da passagem de ano, arremessasse mentalmente o futuro pensando doze desejos ingerindo, por exemplo, outras tantas passas, uma por cada mês.

Há quereres, promessas de mudança, aspirações a outra vida para viver, organizar melhor o que está sempre em construção ou num caos permanente.

Votos assumidos de metamorfose, tentando saciar uma necessidade de mudança de vida, individual ou em comunidade, festejando rituais em que é preciso acreditar ou fantasiando admiti-lo.

Queremos ser arquitetos da nossa vida, no que depende da nossa vontade, sabendo não o conseguimos sós, porque interdependentes.

Num sentido figurado rituais são rotinas, mesmo uma só vez por ano.

Segundo Yuval Noval Harari, num tom erudito, são passos de magia que tornam o abstrato concreto e o ficcional real.

Queremos estar em permanente mudança, a todo o tempo em construção, suportando voluntariamente uma dose considerável de formalidades, etiquetas, cerimoniais, presumindo ou julgando-as necessárias, em conjugação com o gradual progresso da natureza, sob pena de, se incapazes para tal, nos divorciarmos dos impulsos vitais do ambiente com que interagimos, quais flores que murcham.

Como num permanente ritual e querer de que “Este ano vou mudar, prometo!”, mesmo se apenas vontade de sentir que há esperança de mudança e nada se altere, tendo como adquirido que um quinhão aceitável de aborrecimento ou rotina do dia a dia é parte do nosso viver.

30.12.22
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

Vejo as aves marinhas das nossas vidas

  

Chega-se a um final de ano no século XXI, em que em muitos espaços do território Terra, o governar, é uma busca constante para que a perfeição do governo resida na justificação da desumanidade.

Deveria haver uma deportação perpétua para um lugar onde se isolassem estas gentes que queimam viva a paz, e seguissem elas para um entreposto de onde nunca mais saíssem, e ali, aninhadas, num gargalo, entre nada e nada, nunca desistiriam, seguramente, de se torturarem, de se matarem, numa avaliação de pares.

Contudo, há quem nos queira destinar a vaguear como nos sonhos, para deles sairmos derrotados, secos.

Justificar o poder absoluto e a brutalidade do mesmo, é justificar a criatividade do controlo humano para reprimir.

Homens e mulheres devem ser seres sub-humanos que não podem resistir à opressão.

A modernidade tecnológica só deve ser usada para a mais minuciosa vigilância que cumpra a abrangência do mundo para o anti-humanismo.

O desrespeito pelo ser humano individual implica o controlo do Estado pelo próprio pensamento.

E se tudo isto resultar, qual a popularidade até nossas casas?

Quantos saberão identificar o sentimento liberdade sem recorrer a um sistema de vídeo de vigilância?

Apenas posso dizer que, do ponto onde estou, vejo as aves marinhas das nossas vidas, ainda fora do controlo, musas que unem verso e reverso, e, possuídas de um voo que se não deixará atalhar.

E virão sempre, elas, as aves marinhas,

soalheiras.

 

Ah! Virão, virão,

sim!

 

Teresa Bracinha Vieira

UMA COPEJADA DE ATUM

UMA COPEJADA DE ATUM.jpg

 

Manuel Teixeira Gomes escreveu em 1927, na “Seara Nova” um texto memorável sobre o copejo do Atum, de que hoje damos conta.

“Ainda a madrugada não dava sinais de romper, já nos encontrávamos no bote que nos devia levar à armação (…). A companhia, como viera duas horas antes, acabava os últimos preparativos para a pesca, ensebando os cabos, experimentando as roldanas e reforçando as pulseiras dos arpões. À volta da armação aglomerava-se grande número de lanchas de carga, vindas durante a noite, dos portos vizinhos, onde o telégrafo levara aviso da grande copejada em perspetiva. Essas lanchas, pela ordem da sua chegada, destinavam-se a carregar peixe que se pescasse, para conduzir à lota de Vila Real de Santo António, o grande mercado do atum. Mas no enorme agrupamento de gente, batéis e lanchas, de que se distinguiam já claramente as formas e os movimentos, o que surpreendia era o silêncio, inesperado e sempre admirável na gente do mar, e sobretudo em algarvios de tão falaruca fama”. Depois do romper do sol, concentrados entre si, os homens “começavam a levantar o céu da armação” de modo a confinar os atuns no copo. Daí a pouco, avistados os primeiros atuns de bom calibre, os pescadores davam-se a uma tremenda gritaria e começava a “tourada”. Até alguns poucos marujos, numa cena helénica, cavalgavam alguns peixes, condenados à rendição, espetados por ganchorras e bicheiros.

Esta faina tremenda e cruel durou centenas de anos, com ganhos vultosos para os armadores. E nos séculos XIV e XV as velhas almadravas (antecedentes das armações) foram reforçadas com as reses de cerco também empregues na pesca da sardinha. E deste modo o Algarve tornou-se o grande centro da pesca do atum da Europa do sul. Note-se que as pescarias da costa algarvia foram doadas em concessão ao Infante D. Henrique, sendo as pescarias reais designadas como caçadas. Depois foram-se multiplicando as almadravas, tendo D. Manuel criado em Lagos uma Feitoria específica para essas armações. E o feitor encarregava-se de fiscalizar a coleta dos direitos régios, relacionadas com pescaria do atum, para verificar a venda do pescado que pertencia à Coroa. E Lagos tornou-se capital do atum, principal exportador do atum em salmoura para o Mediterrâneo. Foi o século XVI o de maior prosperidade nas pescarias, sucedendo-lhe no final da centúria uma fase de declínio e estagnação, soçobrando as armações. Perante essa evolução, Sebastião José, futuro marquês de Pombal, criou a Companhia Geral das Reais Pescas do Reino do Algarve para reanimar a pesca do atum, mas também da sardinha, estando ambas relacionadas por o peixe mais miúdo vir para a costa ameaçado pela voracidade do atum.

Lagos, Tavira, Faro e Fuseta foram as armações que melhor se mantiveram. Depois da revolução liberal deu-se a desamortização do mar, aboliram-se os direitos senhoriais e liberalizou-se a atividade piscatória, mas ficou um tratamento especial, criando-se a Companhia das Pescarias do Algarve, em lugar da sociedade majestática pombalina. Até aos dias de hoje houve profundas alterações na pesca e acompanhamento dos atuneiros.

Os conhecimentos científicos e técnicos, as investigações dos movimentos das espécies e das correntes tem permitido uma maior qualidade do atum para alimento, mas fica o eco da tradição e a reminiscência desta cultura atlântica e mediterrânica, hoje globalizada.

GOM

 

NATAL: O EMMANUEL

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       Há já alguns anos, o meu bom e ilustre amigo, o eurodeputado Paulo Rangel, e eu tivemos uma conversa muito agradável para mim sobre (imagine-se) Deus e a tentativa de dizê-lo e nos relacionarmos com Ele. Dela resultou um texto de Paulo Rangel, com o significativo título “Deus é Aquele que está”. Numa longa entrevista recente a Inês Maria Meneses, voltou ao tema, confessando a sua fé no Deus de Jesus, o Emmanuel, o “Deus connosco”. Para ele, Deus é “Aquele que está”, Deus não é “esse ser distante e estático” construído a partir da ontologia grega, o Deus que é, “mas antes o ser próximo e interactivo que está e estará connosco, Aquele que acompanha, Aquele que não abandona. Deus é Aquele que está, o Emmanuel.”

      Concordando plenamente com o amigo Paulo Rangel, volto, já em pleno Natal, ao tema, essencial nesta data. De facto, corre-se permanentemente o perigo de esquecer o determinante, já não referindo sequer a ameaça de se ficar amarrado a um consumismo devorador e à concorrência dos presentes: tenho de dar isto e aquilo de presente, para não ficar mal; não posso esquecer este, esta, e aquele, aquela, porque no ano passado também deram…  É preciso parar e reflectir, em primeiro lugar, para se não ficar encerrado em dogmas, quando a fé cristã se dirige a uma pessoa, Jesus confessado como o Cristo (o Messias) e, através dele, a Deus que Jesus revelou como Pai e poderemos e deveremos também dizer como Mãe, com todas as consequências que daí derivam para a existência.

       O que diz o Credo cristão, símbolo da fé? “Creio em Jesus Cristo. Gerado, não criado, consubstancial ao Pai. Nasceu da Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, ressuscitou ao terceiro dia.” Segundo a fé cristã, isto é verdade? Sim, é verdade. Mas segue-se a pergunta fundamental: o que deriva dessas afirmações para a nossa existência de homens e mulheres, cristãos ou não? O Credo é teologia dogmática, especulativa, em contexto linguístico da ontologia grega. Ora, a teologia dogmática tem que ver com doutrinas e dogmas, com uma estrutura essencialmente filosófica. Pergunta-se: os dogmas movem alguém, convertem alguém, transformam a existência para o melhor, dizem-nos verdadeiramente quem é Deus para os seres humanos e estes para Deus?

      Exemplos mais concretos, um do Antigo Testamento e outro do Novo, até para se perceber a passagem do universo hebraico em que Jesus se moveu e o universo grego no qual aparecem redigidos os Evangelhos. No capítulo 3 do livro do Êxodo aparece a manifestação de Deus na sarça ardente e Moisés dirige-se a Deus: se me perguntarem qual é o teu nome, que devo responder-lhes? E Deus: “Eu sou aquele que sou”. Dir-lhes-ás: “Eu sou” enviou-me a vós. A fórmula em hebraico: ehyeh asher ehyeh (“eu sou quem sou”, “eu sou o que sou”) é o modo de dizer que Deus está acima de todo o nome, pois é Transcendência pura, que não está à mercê dos homens, mas diz também (a ontologia hebraica é dinâmica) o que Deus faz: Eu sou aquele que está convosco na história da libertação, que vos acompanha no caminho da liberdade e da salvação. Depois, com a tradução dos Setenta, compreendeu-se este ehyeh asher ehyeh como “Eu sou aquele que é”, “Eu sou aquele que sou”, o Absoluto. Filosofando sobre Deus, a partir daqui, Santo Tomás de Aquino dirá que Deus é “Ipsum Esse Subsistens” (O próprio ser subsistente), Aquele cuja essência é a sua existência. Isto é verdade, mas significa o quê para iluminar a existência? Perdeu-se a dinâmica do Deus que está presente e acompanha a Humanidade na história da libertação salvadora.

     No Novo Testamento, João Baptista, preso, mandou os discípulos perguntar a Jesus se ele era o Messias. Jesus não afirmou nem negou. Mas deu uma resposta existencial, prática: “Ide dizer-lhe o que vistes e ouvistes: os coxos andam, os cegos vêem, a Boa Nova é anunciada, a libertação avança, a salvação está em marcha”.

     O que é que isto significa? A teologia, a partir da Bíblia, é, antes de mais, teologia narrativa e não dogmática. Quer dizer: tem uma estrutura existencial, histórica. Na teologia especulativa, o centro de interesse é o ser; na teologia narrativa, o decisivo é o que acontece. Assim, na perspectiva cristã, o essencial consiste na pergunta: O que é que acontece quando Deus está presente? Na linha dogmático-doutrinal, exige-se e até se pode dar um assentimento intelectual, subordinando-se, mas a existência continua inalterada. Corre-se então o perigo de uma “fé” em fórmulas doutrinais coisistas, petrificadas, sem qualquer transformação da vida. Ora, a vida cristã, se quiser ser verdadeiramente cristã, no discipulado de Jesus, tem de ser determinada mais pela ortopráxis do que pela ortodoxia (sem menosprezo, evidentemente, pela ortodoxia, segundo uma hermenêutica adequada): Jesus louvou a cananeia pela sua fé, que não era ortodoxa, deu como exemplo o samaritano, que não seguia a ortodoxia, mas praticava a misericórdia, e, sobretudo, leia-se o Evangelho segundo São Mateus, no capítulo 25 sobre o Juízo Final, no qual não há perguntas sobre fórmulas teóricas religiosas, mas sobre a prática: “Destes-me de comer, de beber, vestistes-me, visitastes-me na cadeia e no hospital...”.

     A Igreja só se justifica enquanto vive, transporta e entrega a todos, por palavras e obras, o Evangelho de Jesus, a sua mensagem de dignificação de todos, mensagem que mudou a História. Bom Natal!

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 24 de dezembro de 2022

A VIDA DOS LIVROS

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   De 26 de dezembro de 2022 a 1 de janeiro de 2023

 

“Fainas Épicas do Mar Português” de Álvaro Garrido (CTT, 2022) é uma obra que nos permite compreender a relação dos portugueses com o mar, através do conhecimento das suas diversas realidades.

 

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As pescas do bacalhau e do atum e a caça à baleia estão ligadas a um imaginário épico que permite compreender em toda a sua beleza e dramatismo parte da relação dos portugueses com o mar. As três grandes fainas que a obra trata partilham um registo estético ligado a uma violência que foi alvo de atenção de grandes escritores, que souberam projetar essa aventura humana para além da sua expressão económica e prática. Destas três fainas, “aquela que tem uma dimensão mais global e multicultural é sem dúvida a da baleia, dadas as ligações geográficas e humanas que as ilhas dos Açores há muito estabeleciam com os portos baleeiros da América do Norte”. De facto, a baleação açoriana é indissociável das relações no Atlântico Norte, tendo quer nas Artes quer na Literatura “uma expressão muito rica e pujante que cedo interessou grandes escritores europeus e norte-americanos”. Além das três epopeias, poderia também falar-se da arte xávega, artesanal, da pesca da sardinha nas traineiras ou das artes do cerco, bem ligadas à cultura piscatória da costa atlântica portuguesa. No entanto, as três áreas objeto desta obra, extremamente bela e educativa, constituem exemplos referenciais, que permitem obter uma informação e um conhecimento muito ricos sobre a diversidade das relações dos portugueses com o mar e sobre os desafios atuais lançados e as respostas necessárias no tocante ao aperfeiçoamento das técnicas de navegação e de orientação em mares agrestes e desconhecidos. Mais do que exaltar as imagens de sugestões épicas, há que compreender, pois, a motivação que levava aqueles homens a embarcar campanha após campanha… Apesar da dureza da pesca do bacalhau, era comum ouvir-se a um experiente homem do mar com trinta campanhas feitas que voltaria a embarcar se o pudesse fazer. Hoje, porém, mais importante do que imaginar um passado mítico ou do que fazer julgamentos retrospetivos, importará, segundo o autor, “descobrir e valorizar, num registo multicultural, a cultura marítima portuguesa – os grandes empreendimentos humanos das pescas e da navegação comercial, as pescas longínquas e costeiras, a vida marítima entranhada nas comunidades litorâneas”.

Para Orlando Ribeiro: “as pescas foram o motor de todas as fainas do mar e dos rios: cabotagem, navegação fluvial, extração do sal (…), portos de estuário e de rio hoje assoreados, estudados minuciosamente por Cortesão), navegação do largo”. A orla marítima desempenhou um papel importante na identidade portuguesa, apesar de uma situação paradoxal, segundo a qual há uma importância reduzida do mar na economia nacional, em termos globais. Apesar de ser um “país de costa” (na expressão de Raul Brandão), “nem por isso Portugal produziu grandes expressões de cultura marítima”. Se olharmos, por exemplo, a pintura naturalista de Silva Porto ou de João Vaz encontramos menos o romantismo e a fúria e mais o retrato melancólico e de falsa harmonia… O peso da ruralidade corresponde a uma reduzida expressão social das profissões marítimas. No conjunto dos Estados da União Europeia, Portugal é o que mais depende de capturas obtidas no exterior para abastecimento do mercado interno – o bacalhau do Atlântico Norte e a pescada do Sudeste Atlântico – com baixa produtividade da pesca costeira, sobretudo importante para as comunidades do litoral.

Começando pela faina dos bacalhoeiros, recorde-se o que Bernardo Santareno designou como “drama épico”, com uma prática multissecular, desde o século XVI, que hoje se limita a uma “produção nacional” de 2 por cento do consumo anual de bacalhau salgado seco no mercado interno português, por termos passado do domínio do Estado protecionista e autárcico do corporativismo (numa lógica paralela à da campanha do trigo) para a lógica atual das zonas económicas exclusivas. No auge da pesca transatlântica, em 1950 e 1960, uma campanha durava cerca de seis meses. De 1935 a 1974 matricularam-se vinte mil pescadores portugueses na faina, em todos os tipos de navios, desde os velhos lugres sem motor auxiliar aos arrastões pela popa. O lugre “Creoula” é uma referência histórica. Chegados aos bancos da Terra Nova e à costa oeste da Gronelândia, os pequenos dóris eram lançados e tudo se organizava para pescar o mais possível, carregar os navios com o maior ganho para o armador e indiretamente para os pescadores.

A literatura mundial atribui uma importância mítica à baleia e ao cachalote, com destaque para os baleeiros açorianos e norte-americanos. Herman Melville com “Moby Dick” e Júlio Verne ou a pintura de William Turner, mas também Luís Sepúlveda com a “História de uma Baleia Branca” invocam essa aventura. Lembremos que o porto da Horta foi no século XIX o maior entreposto baleeiro norte-americano no Atlântico. “Os pátios de desmancho eram lugares dantescos onde as crianças e os velhos vinham observar o esquartejar dos cachalotes, um acontecimento total na vida das povoações baleeiras…”. As condições eram, porém, precárias, numa atividade insalubre. O arpoamento era feito em chalupas e botes baleeiros, embarcações elegantes e esguias que permitiam uma grande versatilidade. A evolução das tecnologias e das mentalidades fez transformar a relação com a atividade baleeira. Em “Mulher de Porto Pim” António Tabucchi romanceia a memória dos baleeiros: «Fui lá com uma mitologia: ver como era uma caça à baleia. E outro motivo: ver os lugares de Antero, e por isso comecei por São Miguel, visitei a ilha, o cemitério, a casa e o sítio onde ele se suicidou. Depois, como não consegui encontrar por lá baleeiros, comecei a tentar as outras ilhas, até que consegui encontrar um, no Faial. E embarquei com ele…»

Falando do atum, apreciadíssimo desde a Antiguidade, temos de dizer que as águas algarvias têm condições excecionais para a passagem em dois movimentos entre o Atlântico e o Mediterrâneo. O rei D, Carlos foi dos primeiros a estudar o comportamento dos atuns na costa algarvia. O atum de direito desloca-se de ocidente para oriente, gordo e de ovas cheias e o atum de revés magro e voraz. Raul Brandão fala-nos das armações e dos arraiais, respetivamente em Tavira e na Ponta da Baleeira em Sagres. A armação era a arte da pesca em si mesma, o empreendimento humano, verdadeira obra de engenharia enquanto sistema de redes de captura, enquanto o arraial era a estrutura de apoio. O copejo do atum é um verdadeiro espetáculo, invocado por Raul Brandão e Teixeira Gomes. “O espetáculo é único. Quase inédito no Mundo. É tourada no mar. O campo verde da batalha não é agora mais que líquido viscoso. Alucina e entontece”. Eis outro lado dessa magia!

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE MARGARIDA VALE DE GATO

  


Mulher ao Mar


MAYDAY lanço, porque a guerra dura
e está vazio o vaso em que parti
e cede ao fundo onde a vaga fura,
suga a fissura, uma falta - não
um tarro de cortiça que vogasse;
especifico: é terracota e fractura,
e eu sou esparsa, e a liquidez maciça.
Tarde sei, será, se vier socorro:
se transluz pouco ao escuro este sinal,
e a água não prevê qualquer escritura
se jazo aqui: rasura apenas, branda
a costura, fará a onda em ponto
lento um manto sobre o afogamento.


in Mulher ao Mar, 2010


Woman Overboard


MAYDAY I break out: the hard war endures;
empty is the vessel from which I part -
it slacks in the deep, bored by the sway,
a leaking slit, a lack - not in the least
a cork pail with pores made to drift.
I specify: it's terracotta, it cracks
and I am sparse in dense fluidity.
Too late, I know, help will come, if ever
so feebly I flash in obscurity
and the writing does not stay on water;
here I lie: hardly an erasure, less
than a seam the wave will slowly stitch
a slumbering quilt over where I sink.


© Translated by Margarida Vale de Gato, 2010
in Poems from the Portuguese

 

ANTOLOGIA

  


A MAGIA DO PRESÉPIO
por Camilo Martins de Oliveira


Para nos apercebermos bem das origens populares (que se encontram em textos apócrifos ou em múltiplas tradições escritas ou orais, por vezes de difícil identificação) da maioria da literatura e iconografia que a devoção cristã foi produzindo sobre temas da infância de Cristo, bastará olharmos para representações de cenas ou episódios da vida da família de Jesus, e dele mesmo, antes do momento entre os doutores, este diretamente inspirado no relato do Evangelho de S. Lucas. Vejamos:


1. As representações e histórias de S. Joaquim e Santa Ana, pais da Virgem Maria, o nascimento e a educação desta (lembramo-nos da enternecedora cena de Santa Ana ensinando Maria a ler), a sua apresentação no templo e o seu casamento com S. José, tudo isto não está nos textos canónicos e foi retomado por Tiago Voragino de outras fontes, entre as quais está sempre o Proto Evangelho de S.Tiago.


2. S. José é referido nos evangelhos de S. Lucas e S. Mateus, surge em episódios do Pseudo Mateus e do Proto de S. Tiago, mas ganha uma biografia no apócrifo grego do séc. V "A História de José, o Carpinteiro"... É cheia de antevisão da cruz a cena em que Georges Latour (numa pintura de 1640 que está no Louvre) representa S. José furando uma peça de madeira à luz de uma vela segura nas mãos do Menino Jesus.


3. As representações da Anunciação inspiram-se em S. Lucas, mas também no Proto pela Legenda Áurea, enquanto que as imagens da Senhora do Ó, ou Virgem grávida, correspondem a visões naturalistas da piedade popular, e surgem, ainda que raras,  por toda a cristandade até ao séc. XVI.


4. As representações do presépio (que significa curral, tal como crèche quer dizer manjedoura) seguem o evangelho de S. Lucas, mas sobretudo replicam, como temos visto, as personagens e cenas do Proto e do Pseudo, tal como são traduzidas na obra do Voragino. Se a adoração dos pastores é claramente inspirada em Lucas, já todos os evangelistas omitem o episódio da parteira Salomé, que assiste ao livramento de Maria e confirma - como S. Tomé o Cristo vivo depois da Ressurreição - a virgindade ante et post partum. Esta cena vem do Proto e do Pseudo até à Legenda, como ilustração e confirmação de um dogma pela piedade popular.


5. A jornada e a adoração dos magos têm fonte no Evangelho de S. Mateus. Mas muitos pormenores da extensa iconografia destes episódios foram inspirados, sempre por via da compilação feita por Frei Tiago Voragino, nos apócrifos já referidos e em muitas lendas e narrativas sírias, arménias e gregas.


A Incarnação ou Natividade do Senhor surge na tradição popular da cristandade (vox populi, vox Dei) como a penetração de Deus na totalidade do cosmos, através da sua realização na carne e na história do ser humano. Os deuses pagãos e as forças animistas são projeções de medos e ansiedades, defeitos e virtudes, pedidos de socorro, turbulências do coração humano. O Natal é o momento em que o Criador das cinco categorias de seres, de que fala Voragino, se revela, aquém do Outro absoluto que os monoteísmos descobriram, como Aquele que é tudo em todos. Já O vimos manifestado pela terceira categoria, a dos animais (o boi e o burro), e pela primeira, a dos corpos materiais (opacos, translúcidos e transparentes, e celestes ou luminosos). Mas diz-nos ainda frei Tiago que "a Natividade foi mostrada e manifestada pelas criaturas que possuem a existência e a vida, como as plantas e as árvores. Nessa noite, como testemunha Bartolomeu na sua compilação, as vinhas de Engadi, que produzem o bálsamo, floriram, produziram frutos, e deram-nos o licor balsâmico"...


Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 07.12.12 neste blogue.

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  

 

129. O PRAZER DE LER E TER LIVROS


A morte do livro foi anunciada com o digital, às mãos do e-book. 

Enganaram-se. O livro persiste, o que é bom, uma boa notícia.

Ler livros não é um mero prazer estético.

Também é um prazer tátil único. Entre outros prazeres…   

Tem as vantagens do analógico sobre o digital, pode ser dobrado, guardado no bolso, na mala, na pasta, leva-se para qualquer lugar, não consome energia elétrica, é mais funcional e pessoal de anotar, sublinhar, pode ser lido e relido a todo o tempo à luz do dia, da vela e do candeeiro de tempos idos, à luz artificial atual, adaptando-se à nossa dimensão física e humana e ao tempo e espaço de cada época. 

Há um milhão de leituras se um livro for lido por um milhão de pessoas diferentes.

Ler é ser livre, com a nossa imaginação e memória navegando, sonhando e voando.

Os livros não envelhecem, são firmes e leais, são amigos úteis, o que dizem hoje, dirão amanhã, daqui a anos ou séculos.

O hábito de ler e ver, dia a dia ou amiudadas vezes um livro, faz com que acabemos por lhe ter amizade. À força de se nos tornarem familiares, os livros acabam por se tornar nossos amigos, em que um instintivo e estranho animismo nos leva, por vezes, quase a atribuir alma às coisas inanimadas. 

Há livros que são transformadores, contagiantes, podendo salvar-nos ou marcar o nosso destino, que nos fazem leitores, provocando uma sensação gratificante de não estarmos sós, amigos inalteráveis e constantes na saúde ou na doença, no trabalho ou no ócio, uma companhia com o seu não ruído em silêncio.   

Estimulam a aquisição de conhecimento, o aumento e enriquecimento de vocabulário, o perguntar, interrogar, questionar, uma imaginação e um sonho que nos liberta, um escape, uma fuga, uma compensação.

Quem lê e ama os livros tem espaço e mentalidade para pensar, refletir, questionar, para nos transcendermos, ter asas para voar, ir mais além daquilo que é tido como básico, diário, quotidiano, afastando a lassidão e a rotina, mesmo que esta seja vital para o nosso conforto.

Sem esquecer o arrumar da biblioteca pessoal que conta a história das nossas vidas, o enriquecimento da associação livre de grupos de leitura, as edições de autor e a partilha do seu testemunho, uma liberdade de escolha e de leitura que não nos limita, desde os livros que devoramos, saltamos páginas ou paramos de ler. 

E há os amorosos do livro para os quais é uma coisa imprescindível à vida, tendo-o como parte de si mesmos. 

Porém, os não amorosos e indiferentes excluem-no de fotos e vídeos para compra e venda de casas endinheiradas exemplificando-o, quase sempre, o sua não visualização nas respetivas buscas via internet, como sinal de declínio, e não prestígio, dominando o culto do dinheiro, ao invés do saber acumulado por milhares de anos de leitura.

Há quem só navegue na net para os ler, quem se recuse, ou faça ambas as coisas, sendo bom saber que o livro sobrevive ao digital, nem sempre este sendo o ideal, pois sendo nós analógicos (não biónicos ou digitais) aquele agarra mais de perto os nossos sentidos que se manifestam em sentimentos e hábitos não substituíveis pelo e-book.

Se perdurou, no decurso de séculos, a ditaduras que inúmeras vezes o tiveram como transgressor e perigoso, espera-se que também resista à digitalização progressiva e seus inconvenientes de fiscalização automática, sendo mais durável e menos sujeito, até agora, a danos físicos do que os dispositivos ou materiais eletrónicos de acessibilidade mais remota.                

23.12.22
Joaquim M. M. Patrício 

CRÓNICA DA CULTURA

NATAL


As paredes eram de pedras sobre pedras que já mal se aparelhavam, e por entre elas, as frinchas largas, sem qualquer argamassa, permitiam que entrasse luz e frio, naquele dezembro de rigor. O telhado de ardosias partidas mal continha as águas do céu. Dentro e por cima do chão de terra pisada, os acrescentos de bosta e palha e erva entrançavam coroas que formavam cama de escasso recurso, e os restolhos e os restos não úteis de algo cardado, tudo emaranhado, arredondavam-se em jeito de um cesto muito aberto e amplo, que se oferecia daquele modo que mais não pode.

Ali o universo do asno e das vacas na exemplaridade da lição quando só o silêncio é certo.

Ali a experiência de cada um.

Ali o lugar de um pão maior.

Descalça, Antunes entrou, entrou, fechando de arrasto a velha porta atras de si. E entrou, sabendo que Manuel lá a aguardava, também descalço, de traje sujo da labuta, mas ambos conhecendo a verdade da hora venturosa, conhecendo o destino de cada um nas mãos do outro.

Deitaram-se, deitaram-se, parecendo-lhes que eram os primeiros do mundo a chegar àquela felicidade, e logo se confiaram.

Beijos, abraços, sussurros e outras bênçãos, tudo um merecimento de quem entende o início, e logo as roupas foram afastadas dos corpos, enquanto ali tudo era terra à terra, e a barriga logo cresceria numa vontade de brilho assombroso seguro nos olhos do casal.

A malga de água, mal fora trocada e os lábios já mordiam o rebordo.

A hora, era a da hora da dor boa.

O pensamento alegrava-se com o mistério seguro pelo grosso novelo umbilical.

A estrela, veterana destes aconteceres, quiçá voltou pelo mesmo caminho, anunciando que na manjedoura um outro primeiro choro.

Natal.

 

Teresa Bracinha Vieira

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