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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

  

De 5 a 11 de dezembro de 2022


No centenário de José-Augusto França recordamos os passos fundamentais da sua vida como referência fundamental da cultura portuguesa.


HOMENAGEM DA UNESCO
Quando a então Diretora-Geral da UNESCO, Irina Bokova, homenageou José-Augusto França, em 2012, na passagem dos seus noventa anos, sublinhou o que representou um reconhecimento internacional da maior justiça. Disse então: “Grande historiador, crítico de arte e escritor prolífico, os trabalhos de J.-A. F. alargaram consideravelmente o nosso olhar sobre os séculos XIX e XX, em particular sobre a criação artística em Portugal e na Europa. Especialista mundialmente reconhecido na arte portuguesa, autor de um livro fundamental sobre o Romantismo em Portugal, o Professor França teve um papel esclarecedor sobre as origens da nossa própria modernidade, explorando algumas das mais importantes fases da história da civilização europeia. A sua obra é testemunho de uma infinita curiosidade pela cultura sob todas as suas formas: arte, literatura, teatro, cinema, alargando as fronteiras de qualquer destas disciplinas. A sua paixão e o seu empenho ressoam no coração das atividades da UNESCO, mostrando de maneira brilhante a importância da cultura para a compreensão da sociedade em geral”. O percurso e a obra de José-Augusto França merecem uma análise circunstanciada, nos diversos campos em que desenvolveu atividade. Quando hoje relemos “Une Ville des Lumières: la Lisbonne de Pombal” compreendemos a importância do que ocorreu na sequência da catástrofe de 1755, na profunda renovação do urbanismo, nos alvores da chamada idade contemporânea. Como nos casos de S. Petersburgo e de Washington, D.C., na reconstrução global da cidade de Lisboa deparamo-nos com a antecipação de um tempo no qual emergiu uma nova conceção e organização das sociedades. Os três casos são, assim, considerados internacionalmente como modelares e o caso da capital portuguesa assume um especial significado por se tratar de uma sociedade destruída, que foi referida por Voltaire e Kant, e para a qual houve capacidade para começar de novo.


A RECONSTRUÇÃO DE LISBOA
O processo de planeamento e reedificação de Lisboa foi estudado criteriosamente pelo historiador, que afirmou: “A sua criação tornou-se possível graças a uma legislação que soube ligar o facto urbanístico ao facto político, dentro duma visão global onde se verificam perspetivas sociais e económicas, tanto como culturais e ecológicas. Entender a cidade como um todo foi a razão de ser do fenómeno sócio-cultural pombalino, num processo de prática coletiva ligado ao passado tanto quanto ao futuro, à tradição tanto quanto à modernidade, necessários ambos para a definição de um discurso ideológico coerente. Dentro dele, o interesse público era devidamente sublinhado, novo valor que uma nova classe encarnava, com uma nova função. Tal função expressou-se na ‘Praça do Comércio’, na sua monumentalidade tanto como no seu nome, ambos adequados ao papel simbólico, senão mítico exercido no quadro duma sociedade reformada por via iluminista”. A compreensão da obra complexa de Pombal aliou-a José-Augusto França ao estudo do que se seguiu a esse segundo terramoto, que foi a edificação de uma nova cidade. Como ficaria demonstrado no extenso estudo sobre o Romantismo, o estudioso procurou olhar a realidade social, económica e cultural de Portugal em termos complexos e dinâmicos – procurando olhar a modernização a partir das raízes pré-existentes, articulando a tradição e as resistências conservadoras às forças e intenções modernizadoras, bem como aos seus resultados. E a Lisboa pombalina nasceu dos esforços conjugados de três gerações diferentes e de três perspetivas geracionais, representadas por Manuel da Maia, um velho general com mais de oitenta anos, que procurou “acordar” o antigo e o moderno; por Carlos Mardel, vindo de fora, para quem o barroco “ganhara desinências de elegância cosmopolita” mais moderna, e por Eugénio dos Santos, falecido jovem, esgotado de trabalho, para quem era necessária uma cultura nova adequada às circunstâncias. Maia representou a transição de dois séculos, Mardel, o fim do primeiro quartel de setecentos e Eugénio dos Santos, os meados racionais do século.


Se virmos bem, o percurso de vida de J.-A- França foi feito sempre com larga intervenção no campo da cultura, designadamente no período surrealista, na Galeria de Março e em “Unicórnio” e seguintes, representando na escrita e na historiografia a capacidade de ligar o pensamento e a ação. A análise pioneira do Romantismo, considerado com um longo período corresponde a essa ambivalência criativa. Afinal, o caminho português obrigaria a entender a História, desde os prolegómenos iluministas de Pombal, da relevância das guerras peninsulares até às origens do liberalismo, da Revolução de 1820 à vitória liberal de 1834, início do processo romântico português, a culminar em 1880, “no momento em que se caracteriza uma viragem da sociedade portuguesa, e onde sobretudo esta sociedade toma consciência dos seus próprios valores – e da sua própria falência”. E as datas charneira são 1835, 1850, 1865 e 1880. E é neste ponto que o historiador passa do reconhecimento da importância do naturalismo oitocentista, com os seus avanços e recuos, para o seu esgotamento e para a génese do modernismo do século XX. E não por acaso Rafael Bordalo Pinheiro surge como referência especial, na transição, ao caricaturar o romantismo que decai e se transforma. E são 1915 e “Orpheu” que emergem no novo século XX com intensa energia – na heteronímia de Fernando Pessoa, ao lado de Amadeo de Souza-Cardozo, “o Português à Força” e de Almada Negreiros, “o Português sem Mestre”.


UM AUTOR MULTIFACETADO
A obra rica e multifacetada de escritor leva-nos ao romance, de que é um exemplo “A Bela Angevina” (2005), baseado numa estada de Eça de Queiroz no Hotel du Cheval Blanc, em Angers, onde poderia ter encontrado uma jovem, cuja fotografia conhecemos. Tê-la amado e sido amado por ela, cerca de 1880? J.-A. França cria esse encontro, com base em documentação conhecida e também imaginada, numa história atraente que passa por Paris, Bristol, Lisboa e sobretudo por Angers, onde Eça teria escrito o “Mandarim”, enquanto ia andando às voltas com “Os Maias”. A biografia do historiador de Arte é significativa – professor da Universidade Nova de Lisboa, presidente do Centro Nacional de Cultura (1974-76), do Instituto de Língua e Cultura Portuguesa (1976-79), diretor da revista Colóquio – Artes (1971-76), diretor do Centro Cultural Português da Fundação Calouste Gulbenkian de Paris (1983-89), membro do Comité do Património Mundial (UNESCO) (2001-2005), presidente do Conselho Literário do Grémio Literário, sócio emérito das Academias das Ciências e Nacional de Belas-Artes (a que presidiu em 1976-79), presidente de honra da AICA – Association Internationale des Critiques d’Art. Em qualquer destas funções teve sempre um papel fundamental. Ao recordarmos as ações que desenvolveu é impressionante o que nos legou como chave essencial dos tempos que atravessou e soube sempre interpretar de modo inexcedível. Não é possível conhecer a história da Arte portuguesa dos dois últimos séculos sem estudar o que o mestre nos deixou, com o rigor e a sabedoria que são dignos da melhor memória, num permanente diálogo entre o autor e o crítico, como na luta entre Jacob e o anjo, capa do seu derradeiro livro.     

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença