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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ANTOLOGIA

  


A MAGIA DO PRESÉPIO
por Camilo Martins de Oliveira


Para nos apercebermos bem das origens populares (que se encontram em textos apócrifos ou em múltiplas tradições escritas ou orais, por vezes de difícil identificação) da maioria da literatura e iconografia que a devoção cristã foi produzindo sobre temas da infância de Cristo, bastará olharmos para representações de cenas ou episódios da vida da família de Jesus, e dele mesmo, antes do momento entre os doutores, este diretamente inspirado no relato do Evangelho de S. Lucas. Vejamos:


1. As representações e histórias de S. Joaquim e Santa Ana, pais da Virgem Maria, o nascimento e a educação desta (lembramo-nos da enternecedora cena de Santa Ana ensinando Maria a ler), a sua apresentação no templo e o seu casamento com S. José, tudo isto não está nos textos canónicos e foi retomado por Tiago Voragino de outras fontes, entre as quais está sempre o Proto Evangelho de S.Tiago.


2. S. José é referido nos evangelhos de S. Lucas e S. Mateus, surge em episódios do Pseudo Mateus e do Proto de S. Tiago, mas ganha uma biografia no apócrifo grego do séc. V "A História de José, o Carpinteiro"... É cheia de antevisão da cruz a cena em que Georges Latour (numa pintura de 1640 que está no Louvre) representa S. José furando uma peça de madeira à luz de uma vela segura nas mãos do Menino Jesus.


3. As representações da Anunciação inspiram-se em S. Lucas, mas também no Proto pela Legenda Áurea, enquanto que as imagens da Senhora do Ó, ou Virgem grávida, correspondem a visões naturalistas da piedade popular, e surgem, ainda que raras,  por toda a cristandade até ao séc. XVI.


4. As representações do presépio (que significa curral, tal como crèche quer dizer manjedoura) seguem o evangelho de S. Lucas, mas sobretudo replicam, como temos visto, as personagens e cenas do Proto e do Pseudo, tal como são traduzidas na obra do Voragino. Se a adoração dos pastores é claramente inspirada em Lucas, já todos os evangelistas omitem o episódio da parteira Salomé, que assiste ao livramento de Maria e confirma - como S. Tomé o Cristo vivo depois da Ressurreição - a virgindade ante et post partum. Esta cena vem do Proto e do Pseudo até à Legenda, como ilustração e confirmação de um dogma pela piedade popular.


5. A jornada e a adoração dos magos têm fonte no Evangelho de S. Mateus. Mas muitos pormenores da extensa iconografia destes episódios foram inspirados, sempre por via da compilação feita por Frei Tiago Voragino, nos apócrifos já referidos e em muitas lendas e narrativas sírias, arménias e gregas.


A Incarnação ou Natividade do Senhor surge na tradição popular da cristandade (vox populi, vox Dei) como a penetração de Deus na totalidade do cosmos, através da sua realização na carne e na história do ser humano. Os deuses pagãos e as forças animistas são projeções de medos e ansiedades, defeitos e virtudes, pedidos de socorro, turbulências do coração humano. O Natal é o momento em que o Criador das cinco categorias de seres, de que fala Voragino, se revela, aquém do Outro absoluto que os monoteísmos descobriram, como Aquele que é tudo em todos. Já O vimos manifestado pela terceira categoria, a dos animais (o boi e o burro), e pela primeira, a dos corpos materiais (opacos, translúcidos e transparentes, e celestes ou luminosos). Mas diz-nos ainda frei Tiago que "a Natividade foi mostrada e manifestada pelas criaturas que possuem a existência e a vida, como as plantas e as árvores. Nessa noite, como testemunha Bartolomeu na sua compilação, as vinhas de Engadi, que produzem o bálsamo, floriram, produziram frutos, e deram-nos o licor balsâmico"...


Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 07.12.12 neste blogue.