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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

  

De 2 a 8 de janeiro de 2023


Graça Morais e Lídia Jorge têm pontos de encontro. Há um diálogo entre as obras de ambas, que nos permite entender como a cultura portuguesa contemporânea, para ser adequadamente compreendida, necessita de uma procura das raízes e dos seus desenvolvimentos.


UMA IDENTIDADE PRÓPRIA
A obra de Graça Morais tem uma identidade própria, em que violência e ternura se encontram, na expressão de Fernando de Azevedo. Não podemos compreender a sua pintura sem entender o sentido do caminho trilhado e a ligação às raízes.  Assim se compreende que “As Escolhidas” fossem “trabalhadoras de uma classe que viveu mal, todas elas falam de uma infância em que passaram fome e andaram descalças. Havia o domínio do masculino sobre o feminino”. Graça Morais é uma artista comprometida. O clima duro e adverso transmontano está vivo na sua pesquisa, através da representação das pessoas concretas que são protagonistas da sua obra. E a sua mãe, forte e corajosa, é quem lhe transmite a determinação e a agudeza do olhar. Como disse Jeanette Zwingenberger: “a paleta de Graça é a da terra e a da luz. Nos seus desenhos a sépia e a tinta-da-china, regista com um traço a força vital da natureza: a eclosão de uma romã, um ramo de oliveira, cerejas, o voo de um inseto ou a agitação febril de um cão. A série da perdiz, seu animal totémico, traduz o ciclo da maturação, do voo, e mais tarde da decomposição”. E o imaginário da infância está bem presente, correspondendo o bestiário a uma verdadeira metáfora da vida. Os gafanhotos evocam tanto as mulheres lutadoras como “anjos de asas translúcidas”, ainda na expressão de Zwingenberger. E são os mitos da natureza e da vida que encontramos nos temas que a artista escolhe. Como diria Octavio Paz e também Eduardo Lourenço: “vemos numa coisa outra coisa”. E a ideia de metamorfose torna-se essencial para entendermos a originalidade da obra. Segundo Fernando Pernes, “os frutos aludem caprichosamente à fecundidade dos ventres maternais”. E, na palavra de Nuno Júdice, há “uma descoberta de passados secretos, revelando que nada morre”. As raízes populares, que Graça Morais vai recordando, esclarecem-nos sobre essa continuidade.  Os caretos representam a interrogação dos mitos e a força da relação múltipla no seio da natureza, entre vencedores e vencidos. Por isso, a pintora faz a natureza dialogar em si mesma trazendo à luz do dia a diversidade da vida. E nessa demanda encontramos as referências fundamentais que a influenciam: Miguel Ângelo, Goya, Van Gogh, Picasso e Bacon. Mas a poesia e o romance também a atraem – Torga, Sophia, Saramago, Nuno Júdice, Agustina, Maria Velho da Costa, Vasco Graça Moura, Manuel António Pina, além da omnipresença de Ovídio nas “Metamorfoses” ou de Dante na “Comédia”. E o teatro, de Shakespeare a Jean Genet está igualmente evidente. Há, deste modo, uma permanente procura da identidade da artista, através da interrogação sobre a existência e a busca do universo.


CONTRA O MEDO, A DETERMINAÇÃO
O medo, a violência, a incerteza, as dúvidas misturam-se com a determinação e a luta. A série “A Caminho do Medo”, apresentada na exposição “Tudo o que eu Quero”, na Gulbenkian e depois em Tours, revelam-se proféticas. Tendo sido concebida em 2011, durante a crise económica, a austeridade e a emergência da chegada dos refugiados, anuncia já a pandemia e a guerra, numa sucessão de momentos dramáticos, representados por uma estranha máscara cirúrgica, apanágio do confinamento que viria depois. E os tempos que aqui se configuram (crise, drama dos refugiados, pandemia e guerra da Ucrânia) definem a incerteza e o medo, que continuam a pôr a humanidade de sobreaviso. A liberdade e a dignidade tornam-se, deste modo, fatores capazes de contrariar o puro ceticismo, seguindo os passos determinados das mulheres, e em especial de sua mãe, trazidas à ribalta na sua produção artística. Como Helena de Freitas lembra: num diário na aldeia, a artista “corporiza a perdiz, o animal que na cadeia da sobrevivência é o animal caçado, que na representação simbólica evoca o feminino na sua duplicidade de luxúria e morte”. “As minhas personagens (lembra a artista) são sempre vítimas, mas que resistem”. E temos assim um inequívoco sinal de esperança, que a dinâmica constante e interminável das metamorfoses nos dá. O mundo transforma-se e aperfeiçoa-se. Se há um paralelo digno de nota entre duas mulheres artistas na cultura portuguesa contemporânea, é o encontro entre Graça Morais e Lídia Jorge. Ambas representam, de modo diferente, uma ligação íntima e insofismável às raízes. E se Trás-os-Montes e o Algarve são distantes, o certo é que têm proximidades maiores do que pode parecer à primeira vista. Portugal é, afinal, o continente em miniatura, que está cheio de tensões e complementaridades que a pintura de Graça Morais e a literatura de Lídia Jorge revelam de um modo exemplar. Tradição e modernidade são chamadas a conciliar-se, num caminho emancipador. E as mães de ambas são símbolos que as aproximam, como intérpretes e mediadoras, cuja influência se projeta nas respetivas obras. Se nos ativermos, aliás, a Misericórdia (D. Quixote, 2022) podemos entender em que medida há uma especial ligação às raízes, à presença e à ausência, à continuidade e à interrogação a respeito do choque entre esperança e desespero. E Lídia Jorge sente uma angústia semelhante à de Graça Morais: “Há trinta anos, nós tínhamos um programa para sair da ruralidade da escola. Aconteceu que, entretanto, o mundo tecnológico veio contrariar esse projeto. E está provado que os países que têm menos tradição letrada e cultural incorporam acriticamente a informação, tendo uma noção de vanguarda – porque é muito fácil uma pessoa quase analfabeta manejar com muita facilidade todos os gadgets – e transitaram de uma cultura iletrada para uma cultura tecnológica, sem passagem pelo filtro civilizante. Foi o caso da sociedade portuguesa, que não tinha suficientes hábitos de leitura, de crítica, de liberdade ou de ousadia da expressão do pensamento para o evitar” (entrevista, revista “Ler”, Inverno de 2022). Lídia Jorge vê aqui o perigo de uma nova barbárie, que pode resultar da recusa da coragem de assumir as diferenças e os riscos, sem a tentação do complexo por não se ser o melhor e o mais avançado, esquecendo que importa cuidar do nosso jardim, sem pretendermos ser melhores ou piores, mas tão só nós mesmos, abertos à compreensão dos outros e dum caminho de verdadeiro diálogo de culturas, baseado no melhor conhecimento mútuo.


UM DIÁLOGO PORTUGUÊS
O diálogo na sociedade portuguesa passa por esta tensão, representada nos dois polos sobre que Graça Morais e Lídia Jorge procuram refletir, o respeito das raízes e a recusa do fatalismo do atraso, num sentido de emancipação, capaz de entender os riscos do medo e da uniformização, da indiferença e do esquecimento. O compromisso deve ser com a humanidade e a dignidade do ser. As personagens que são vítimas resistem e o sinal de esperança baseia-se na ideia da metamorfose, num mundo que se transforma e aperfeiçoa. Eis o ponto em que Graça e Lídia se aproximam.  

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença