ANTOLOGIA
O DESLUMBRANTE "MOMIJI"
por Camilo Martins de Oliveira
Minha Princesa de mim:
Está um outono lindo, sinto-me com alma japonesa. O "ryokan" em que me alojaram nesta visita a Kyoto fica à beirinha de um ribeiro de águas claras, na parte oriental da cidade, no sopé do Higashiyama, em terra de arvoredo e águas, propícia a longos passeios a pé até ao recolhimento de templos budistas, com os seus jardins "zen" ou a surpresa de verduras mansas. Mas, nesta altura do ano, deslumbram-me os "momiji"! É inigualável o esplendor colorido do envelhecimento das folhas dos bordos ("érables" em francês, no texto), visto do patamar do Kyomizu, como se o anúncio do Inverno que se aproxima, branco e frio, fosse já um aleluia à primavera, ao renascimento depois do silêncio (como o silêncio do abismo inicial sobre o qual pairava o Espírito)... Penso que, na alma do japonês, todos, todos, ciclicamente recolhemos à mansão dos mortos, onde nos reunimos com os que foram a nossa vida antes de nós... E ressurgimos na comunhão de todos connosco e com a natureza a que chamamos universo... Há aí um sentimento que - não me custa imaginá-lo - Francisco Xavier "compaixonou", ao ponto de afirmar que nenhum outro povo do Oriente seria tão fecunda seara para a boa nova do Senhor Jesus... Ocorre-me, minha Princesa de mim, muitas vezes, pensar como o bom louco desse missionário ainda tão venerado na longínqua Ásia, talvez, no fundo da sua alma consagrada à missão do seu Deus, tivesse, em verdade consigo, preferido a alegria do encontro místico - atingível, mas intangível e inefável - à afirmação dogmática - escolástica, argumentista, apologética - de princípios quiçá inteligíveis e, portanto, pelo menos discutíveis na moldura intelectual de uma cultura cujas referências "lógicas" são estruturalmente estranhas a outros. O "Ocidente" tem cometido o erro - que, não devo ocultá-lo, é fruto também duma crença de benquerer - de pretender transmitir e, infelizmente, muitas vezes, impor um encontro com a verdade formatado pelas suas próprias coordenadas culturais. É certamente bom que cada povo ou sociedade ou civilização. procure identificar-se com as raízes e parâmetros da sua cultura, isto é, do como a sua história o construiu. Pois só na consciência de nós nos assumimos como sendo. Mas somos sempre, sempre, ontologicamente, seres em relação. Com Deus, o mundo, os outros. O nosso próprio faz a nossa diferença. O reconhecimento desta deve levar-nos ao reconhecimento dos outros. Para que possamos entender como partilhar o que nos é querido. A essência do amor é a comunicação. Guardo no coração, profundamente, essa intuição judia de família agnóstica que, lenta e refletidamente, se aproximou da Igreja Católica, sem nunca ter, aos olhos dos homens - e certamente por magnífica (e quando digo magnífica penso no "magnificat" de Maria como aceitação de uma vontade acima das nossas pretenções) iluminação - escreveu: "Antes de tudo mais, Deus é amor. Antes de tudo Deus ama-se a si mesmo. Esse amor, essa amizade em Deus é a Trindade..." E ainda: "O verdadeiro Deus é o Deus concebido como todo poderoso, mas como não comandando em toda a parte onde tem poder; porque Ele está nos céus, ou então, aqui em baixo, no segredo". Tenho deambulado pelo acolhimento desta natureza que, diria a Simone Weil, respira a beleza que nos afaga a alma carnal. Passeando, sinto-te muito neste coração que habitas e dou comigo a murmurar (em português, vê tu bem!) uns versos que o nosso Alberto recitava: "teu coração dentro do meu descansa / teu coração desde que lá entrou / e tem tão bom dormir essa criança /deitou-se, ali caiu, ali ficou"... Dizia o Alberto que o autor, António Nobre, era o poeta do coração português. Faz-me isto pensar em como a minha lembrança de ti é esta tua presença no meu peito. De ti, não recordo nem prazeres nem zangas. Tampouco te imagino. Estás aqui, incessantemente presente, e nós sempre à espera um do outro. Nem a proximidade nos junta, nem nos separa a distância. Entrámo-nos, e o nosso futuro é esta presença que espera estar adiante. Connosco estamos fora do tempo que dura, o nosso encontro pertence ao tempo eterno. Quando, há mais de uma década, vim a Kyoto pela primeira vez, foi em meados de agosto, na despedida do Verão. Para o "Dai-monji", vos fogos que alumiam a cidade, em que se apagaram luzes e "néons" publicitários, para que surjam os "incêndios" provocados nas encostas de cinco montes do Higashiyama. Chamam-lhes "Lumes de Escolta", luzes flamejantes acesas para o acompanhamento das almas que regressam aos espaços celestes. Yasunari Kawabata - grande e trágico romancista, nascido ainda na era Meiji, e por isso tão sensível ao que, para muitos dos seus contemporâneos, foi a "estrangeirização" do Japão - diz-nos no seu "Kyoto": "As tintas das montanhas abrasadas pelos ´Lumes da Escolta´, essas, lá de longe, das trevas do céu, despertavam, no coração de Chieko, os tons do Outono nascente". Apesar do choque de uma qualquer inculturação, permanecem verdades mais sentidas do que eloquentemente dizíveis. Serão essas, talvez, as universais, ininformáveis. As que não se transmitem por argumentação, nem, através da tortura, por imposição. Só pelo reconhecimento de que Deus habita o coração dos homens, criados à sua imagem e semelhança. O nosso tempo escatológico - sujeito a dramatismos milenaristas - parece opor-se à serenidade do tempo circular destes orientais. Mas é facto que, ano após ano, a nossa liturgia católica vai celebrando, não a nossa pressa ocidental de acabar depressa o máximo possível, mas a contemplação da história de Deus entre os homens, como esgotamento do tempo-duração e esperança de eternidade. Aconchego-me-te. E contigo me deslumbro na contemplação dos "momiji". Dizem-nos, no seu esplendor cromático, cheio de sol intrínseco, que o Outono da vida será uma Primavera, depois da morte aparente do Inverno. À sua maneira, budistas e shintoístas, os japoneses também comungam com os santos. Deus é grande». Hesitei em traduzir e transcrever esta carta de Camilo Maria. Convenceu-me a sinceridade do Marquês de Sarolea e sua atualidade, décadas depois, num mundo que se interroga (ou devia) sobre os valores da sua "globalização".
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 05.04.13 neste blogue.