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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

  

De 9 a 15 de janeiro de 2023


Nascido em 19 de janeiro de 1923, há cem anos, Eugénio de Andrade é um dos grandes poetas contemporâneos. Cuja leitura permite a abertura de portas amplas para a compreensão da contemporaneidade da nossa cultura.


É URGENTE UM BARCO NO MAR
Qual a força de Eugénio de Andrade (1923-2005) para tornar o Porto ainda mais heroico, dramático e sentimental? Por um momento, percebemos, como a transparência se liga ao granito, à saudade e ao humor melancólico. «A transparência é aqui nostalgia: até a luz terá a cor do granito. Mas o granito é às vezes de oiro velho, e outras azulado, como o luar escasso que nesta noite de outono escorre dos telhados. Quando o sol, mesmo arrefecido, incide nos vidros, as mil e uma claraboias e trapeiras e mirantes da cidade enchem o crepúsculo de brilhos – o Porto parece então pintado por Vieira da Silva: é mais imaginário que real». E ouvimos o poeta: «É urgente o amor. / É urgente um barco no mar. / É urgente destruir certas palavras, / ódio, solidão e crueldade, / alguns lamentos, / muitas espadas. /É urgente inventar alegria, / multiplicar os beijos, as searas, / é urgente descobrir rosas e rios / e manhãs claras. / Cai o silêncio nos ombros e a luz / impura, até doer. /É urgente o amor, é urgente permanecer». As palavras marcam a ligação íntima entre pessoas e pessoas, entre pessoas e lugares. E continuemos a ouvi-lo: «1. Sê tu a palavra, / branca rosa brava. / 2. Só o desejo é matinal. / 3. Poupar o coração / é permitir à morte / coroar-se de alegria. /4. Morre de ter ousado / na água amar o fogo. /5. Beber-te a sede e partir / - eu sou de tão longe. / 6. Da chama à espada / o caminho é solitário. / 7. Que me quereis, / se me não dais / o que é tão meu?». E como não recordar, como procura do essencial: «Colhe todo o oiro»: «Colhe todo o oiro do dia / na haste mais alta / da melancolia?» E o poeta que clarifica: «É contra a ausência do homem no homem que a palavra do poeta se insurge, é contra esta amputação no corpo vivo da vida que o poeta se rebela».


ESTREIA AUSPICIOSA
Estreando-se em 1939 com o livro “Narciso”, ainda sob o seu nome civil, José Fontinhas, Eugénio de Andrade vai-se tornando conhecido, em especial quando em 1942 dá à estampa “Adolescente” Entretanto, é incentivado a prosseguir, por António Botto, com quem entra em contacto, que reconhece a qualidade indiscutível do novel poeta. Mas é com a publicação de “As Mãos e os Frutos” que se verifica o reconhecimento público, através da receção positiva da melhor crítica, como Jorge de Sena e Vitorino Nemésio. E José Saramago resume com felicidade o carácter lírico dessa poesia, que se singulariza por uma permanente referência ao corpo, a que chega através de uma depuração contínua. De Lisboa vai para Coimbra e depois para o Porto – e começa a publicar com regularidade: “Os Amantes sem dinheiro” (1950); “As Palavras interditas” (1951); “Ostinato rigore” (1964); “Véspera da água” (1973); “Escrita da terra e outros epitáfios” (1974); “Limiar dos pássaros” (1976); “Memória doutro rio” (1978); “Matéria Solar” (1980); “Rente ao Dizer” (1992); “Ofício de Paciência” (1994); “O Sal da Língua” (1995); “Os Lugares do Lume” (1998) ou “Os Sulcos da Sede” (em 2003 Prémio de Poesia do Pen Clube). São exemplos de uma maturidade poética adquirida num permanente exercício, como num cuidado produto de oficina de artesão… Também publica em prosa: “Os Afluentes do Silêncio” (1968); “Rosto precário” (1979) ou “À sombra da memória” (1993), além de obras infantis como “A história da Égua Branca” (1977) e “Aquela Nuvem e as Outras” (1986). Traduz Federico Garcia Lorca, António Bueno Vallejo, René Char e Jorge Luís Borges… E em 2001, ser-lhe–ia atribuído o Prémio Camões, graças a uma obra segura e consistente, que se afirma como de primeira grandeza na poesia portuguesa do século XX.


A MEMÓRIA DE MONTAIGNE
Em carta de junho de 1949 (leia-se a “Correspondência - 1949-1978 entre Jorge de Sena e Eugénio de Andrade”, publicada pela Guerra e Paz, 2016) Jorge de Sena era muito claro a propósito de “As Mãos e os Frutos”: “Não sei se alguma vez lhe disse da estima que a sua poesia me merece, pela categoria autêntica, tão diferente do que a nossa desvairada geração tem produzido (…). Lembro-me que, em tempos, o acusaram de desumanidade. Não encontro, todavia, senão uma pagã humanidade; e mais vale uma humanidade assim, que só se importa com o que liricamente toca, do que fingir sentimentalidades oportunas”. É difícil dizer melhor. O tempo confirmou e afinou essas qualidades e a coerência. E vem à memória Montaigne: “l’essentiel est dit: deux êtres singuliers se rencontrent et comprennent en un éclair, que leur vie ne sera plus jamais comme avant». E Eugénio de Andrade fala dos Amigos com especial cuidado: «Os amigos amei /despido de ternura/ fatigada;/uns iam, outros vinham, /a nenhum perguntava /porque partia, /porque ficava; /era pouco o que tinha, / pouco o que dava, / mas também só queria / partilhar / a sede de Alegria / - por mais amarga». E chegamos a La Boétie, que não existiria na nossa memória sem o testemunho admirável de Montaigne: “parce que c’était lui, parce que c´était moi!”. «A partir de 1986, Dario Gonçalves foi, ao mesmo tempo, causa e consequência de muitos versos de Eugénio de Andrade. Passou a ser uma espécie de afinador de palavras e grande fonte de inspiração. Leia-se o postal de outubro de 1987 sobre uma viagem do Porto até Ribatua. Aí se nota a proximidade e a cumplicidade que permitem uma partilha quase perfeita de sentimentos e de sensações. “Querido Amigo. Retomo a tradição dos postais em viagem. Saímos do Porto atrasados, comemos bogas fritas, já perto do Pinhão, e mal chegamos a casa, por volta das quatro, o Laureano acendeu o lume e aqui me tem à lareira a escrever-lhe. Só para lhe dizer que tem de ter cuidado consigo, que tem que alterar o seu ritmo de vida, essas correrias tiram-lhe anos de vida e eu quero que V. dure muitos anos, porque a sua amizade me é preciosa, além do livro sobre o Porto».

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença