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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

  

De 23 a 29 de janeiro de 2023


Em “Nova Teoria do Sebastianismo” (D. Quixote, 2014) Miguel Real interroga-se sobre Portugal e não apenas sobre o mito sebastianista, permitindo-nos procurar entender a nossa identidade complexa.

 

À DESCOBERTA DE PORTUGAL
A épica e a lírica de Camões, o império do espírito de Vieira, o drama e a poética de Garrett, o querer de Herculano, o sentido crítico de Antero e da sua geração, a Mensagem de Pessoa, a presença da pouca terra e do muito mar e o desafio trágico, lírico e picaresco estão sempre presentes… Miguel Real mobiliza-nos na leitura e no diálogo sobre Portugal. Partindo do Repensar Portugal do Padre Manuel Antunes, o escritor leva-nos a refletir sobre quem somos, o que queremos e quais os desafios a que temos de responder. E o humanismo universalista é tudo menos uma marca redutora ou providencialista. Quando lemos o Padre António Vieira da Clavis Prophetarum, percebemos que as ideias de povo eleito ou de uma vocação imperial caem, de facto, por terra – abrindo caminho ao reconhecimento da dignidade humana como património comum e como objetivo a partilhar pela humanidade… E Miguel Real nos vários registos da sua escrita e da sua reflexão, romance, drama, ensaio tem procurado demarcar-se da tentação de uma certa predestinação de um povo ou de uma existência…


Deste modo, a leitura sobre o risco da mediocridade nacional insere-se na tradição das correntes de pensamento que desde tempos imemoriais olham a nossa realidade numa perspetiva crítica, com a preocupação de assegurar uma séria articulação de esforços, capaz de negar o fatalismo do atraso e de criar condições para podermos viver uma melhor defesa do bem comum. Fala-se do escárnio e maldizer, do picaresco, do “Pranto de Maria Parda”, do não nos levarmos demasiado a sério no “País relativo”, mas também do querer viver ao ritmo do mundo civilizado, como, no Auto da Lusitânia, Todo o Mundo e Ninguém – os elementos são vários e as personagens da nossa cultura apresentam-se com características contraditórias, o que as leva a não se eximirem ao sentido fortemente crítico, que não deve ser confundido com puro negativismo. António José Saraiva falava do “estar-se onde não se está”, o que leva os portugueses a serem religiosos e heréticos; ortodoxos, mas heterodoxos; emigrantes, mas não colonizadores (por força da miscigenação); aventureiros, mas radicados (como na Diáspora); pobres, mas generosos; e atrasados, mas crentes num destino (messianismo). De Gil Vicente a António José da Silva, de Garrett a Camilo e Eça de Queiroz encontramos a exigência crítica como contraponto à indiferença ou ao conformismo. E que é o país de suicidas de Unamuno, que hoje já não seria assim entendido, senão a manifestação séria de um inconformismo, que apenas visa combater a passividade e a irrelevância?


SER E REPRESENTAÇÃO
A abrir “Portugal – Ser e Representação”, Miguel Real cita, sintomaticamente, ainda o Padre Manuel Antunes: “Reencontrar o antigo, por vezes mesmo o mais antigo, para criar algo de novo (…). A nossa história multissecular de Povo independente é feita de espaços de continuidade e de espaços de rutura, de períodos de deterioração e de períodos de recuperação, de anos de sonolência e de momentos de crítico despertar, de estados de descrença e de instantes largos de esperança quase tão ampla como o universo” … Uma história antiga, com raízes culturais múltiplas, as alternâncias entre continuidade e recusa, entre altos e baixos (numa ciclotimia de euforia e pessimismo) e o encontro entre vontade e destino – tudo se soma, numa Ibéria em que a nossa “maritimidade” se contrapõe à “continentalidade” de Espanha, projetando nos dois símbolos contrapostos – Fernão Mendes Pinto, como personagem múltipla no mundo, e D. Quixote, como imaginação e sonho. A multiplicidade da aventura da “Peregrinação” sublima-se na vontade do povo que Herculano encontra como explicação da independência e da unidade. O Brasil é a imagem grandiosa da frente marítima europeia de Portugal, enquanto as Espanhas se projetam na América em múltiplos países, em razão das autonomias metropolitanas…


A Portugal, segundo Eduardo Lourenço, faltou mentalidade europeia desde a segunda metade do século XVI. E o que nos ensinou Antero? A não nos escondermos no nosso passado (o Messias de Portugal é o nosso próprio passado). O sebastianismo, além de prova póstuma da nacionalidade, é uma alucinação mental delirante, sentimentalmente verdadeira e racionalmente falsa (para Miguel Real). “Como nó central do imaginário português, o mito sebastianista sintetizou os quatro complexos culturais recorrentemente sofridos pelos portugueses: o complexo de Viriato ou viriatino, o complexo de Padre António Vieira ou vieirino; o complexo do Marquês de Pombal ou pombalino e o complexo canibalista, vinculado à inveja individual e à intolerância coletiva. De origem histórica negativa, o sebastianismo constitui igualmente uma espécie de motor ético dos portugueses, forçando-os a acreditarem dever o futuro ser melhor do que o presente, mesmo que para tal se sintam obrigados a fugir da medíocre elite portuguesa, que do País se apodera como uma coutada sua e emigrar como o fazem hoje” (o autor escrevia em 2013 na Nova Teoria do Sebastianismo).


TENTATIVA DE SÍNTESE
Aqui se encontra uma síntese, que explica, afinal, a severa crítica, em que Miguel Real aprofunda a exigência de termos de fazer mais do que nos adaptarmos, como se afirma no universo romanesco do autor... Como José Mattoso ou Eduardo Lourenço têm dito, não somos nem melhores nem piores que outros – somos um país médio, com responsabilidades e oportunidades, mas tudo depende do que formos capazes. Um messianismo larvar, a sombra sebástica, a tensão permanente das contradições do nosso código genético, o uso crítico dos nossos mitos para os podermos superar pela emancipação – tudo isto constitui pano de fundo do nosso ser… O melting pot intelectual e ético que nos forma articula menos a ideia de “povo eleito” e mais a exigência de sabermos lidar com a imperfeição, através do “saber só de experiências feito” … Nem providencialismo, nem indiferença - Pascoaes e Sérgio estão sempre a encontrar-se, a contradizer-se e a completar-se. Esta a base para a célebre “psicanálise mítica do destino português”. Nós somos realmente uma mistura de fatores contraditórios. E neste ponto, não podemos deixar de recordar a importância de Matias Aires (1705-1763). A verdadeira felicidade não é a ilusória: do poder, da riqueza e da fama; é, sim, a “da aproximação incessante à verdade, exigindo o desmascaramento da vaidade individual e social, findando no estado interior de serenidade de quem sabe (…) que tudo é vaidade”…

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença